EXCELENTÍSSIMA SENHORA MINISTRA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – DD. CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA – RELATORA DA ADI N.º 4068
O SINDICATO NACIONAL DOS PROCURADORES DA FAZENDA NACIONAL – SINPROFAZ, entidade de direito privado inscrita no CNPJ sob o n.º 64.711.260/0001-58, sediada no SCN sul, quadra 06, conjunto A, bloco A, Edifício Venâncio 3000, sala 908, na cidade de Brasília–DF, CEP 70716-900, por seus advogados in fine assinados, com escritório à Rua Ivo Leão, nº 693, bairro Centro Cívico, na cidade de Curitiba–PR, CEP 80530-105, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, com fulcro no artigo 5º, inciso XXI, da Constituição Federal e no artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, requerer seu ingresso, na qualidade de
AMICUS CURIAE,
no procedimento referente aos autos da
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4068
ajuizada em 14 de abril de 2008 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, contra o disposto no artigo 16, § 1º, da Lei Federal nº 11.457/07, pelos motivos que passa a expor:
1. DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Trata-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil objetivando seja decretada a inconstitucionalidade do artigo 16, § 1º, da Lei nº 11.457/07. Argumenta-se que o dispositivo citado ofende (i) os princípios do Estado de Direito e do devido processo legal (arts. 1º, caput, e 5º, LIV, respectivamente, da Constituição Federal), por inobservância do postulado normativo da razoabilidade como congruência; (ii) o princípio da continuidade do serviço público e (iii) o princípio da eficiência administrativa (art. 37, caput, CF).
Na fundamentação do pedido, o requerente alegou, em síntese, que:
(i) a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) opera há algum tempo com absoluta sobrecarga de atividades, além de estrutura precária e carência de recursos humanos e materiais;
(ii) a norma impugnada (condizente com a implantação da Super- Receita) determina a transferência para a União (e, por conseguinte, para a PGFN) de todo o acervo da dívida ativa do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE);
(iii) sem que cargos sejam providos e seccionais sejam criadas, a PGFN não estará apta a exercer a representação judicial da União nos feitos decorrentes da nova atribuição legal;
(iv) frente a esse quadro fático, requer a declaração da inconstitucionalidade circunstancial do art. 16, § 1º, da Lei nº 11.457/07, sem pronúncia de nulidade, suspendendo seus efeitos até se materializarem as condições necessárias para o trabalho da PGFN decorrente da implementação da Super-Receita;
(v) a solução almejada, segundo o requerente, encontra guarida na teoria constitucional, na previsão legal de possibilidade de suspensão dos efeitos da lei impugnada e de modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, e em precedentes do Supremo Tribunal Federal.
Prestaram informações a Presidência da República e o Congresso Nacional. A Advocacia-Geral da União, na sua função de curadoria da lei [01], igualmente pronunciou-se.
A manifestação ora apresentada a Vossa Excelência intenta contribuir para o debate democrático que o controle concentrado de constitucionalidade permite, apontando argumentos para a compreensão da incompatibilidade do dispositivo impugnado com a Constituição Federal.
2. DA ADMISSIBILIDADE DA MANIFESTAÇÃO DO SINPROFAZ NA QUALIDADE DE AMICUS CURIAE NOS AUTOS DA ADI 4068
Dispõe do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99:
"Art. 1º - Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade.
§ 2º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades."
Depreende-se da regra citada que é admissível, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, a manifestação de órgãos e entidades, desde (i) que tenham representatividade, e (ii) a matéria discutida na ação tenha relevância.
Sobre a figura do amicus curiae, lecionam Nelson e Rosa NERY:
"Amicus curiae. O relator, por decisão irrecorrível, pode admitir a manifestação de pessoa física, professor de direito, associação civil, cientista, órgão ou entidade, desde que tenha respeitabilidade, reconhecimento científico ou representatividade para opinar sobre a matéria objeto da ação direta. Trata-se da figura do amicus curiae, originário do direito anglo-saxão. No direito norte-americano, há a intervenção por consenso das partes ou por permissão da Corte. O sistema brasileiro adotou a segunda solução, de modo que a intervenção do amicus curiae na ação direta de inconstitucionalidade dar-se-á de acordo com a decisão positiva do relator. O amicus curiae poderá apresentar razões, manifestação por escrito, documentos, sustentação oral [02], memoriais, etc. Mesmo que não tenha havido a intervenção do amicus curiae, na forma da norma ora comentada, o relator poderá pedir seu auxílio na fase de diligências complementares, segundo a LADin art. 9º, § 1º." [03] -g.n.-
A admissão da intervenção de entidades na qualidade de amicus curiae já foi objeto de pronunciamento positivo em julgados do Supremo Tribunal Federal. Dentre eles, apresenta-se a irretocável decisão do ilustre Ministro Celso de Mello:
"ADI 2130 MC / SC (DJ 02/02/2001)
MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Relator Min. CELSO DE MELLO
Julgamento 20/12/2000
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INTERVENÇÃO PROCESSUAL DO AMICUS CURIAE. POSSIBILIDADE. LEI Nº 9.868/99 (ART. 7º, § 2º). SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DA ADMISSÃO DO AMICUS CURIAE NO SISTEMA DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE ADMISSÃO DEFERIDO.
No estatuto que rege o sistema de controle normativo abstrato de constitucionalidade, o ordenamento positivo brasileiro processualizou a figura do amicus curiae (Lei nº 9.868/99, art. 7º, § 2º), permitindo que terceiros - desde que investidos de representatividade adequada - possam ser admitidos na relação processual, para efeito de manifestação sobre a questão de direito subjacente à própria controvérsia constitucional.
A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais.
Em suma: a regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99 - que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae - tem por precípua finalidade pluralizar o debate constitucional.
[...]
Cabe registrar, por necessário, que a intervenção do amicus curiae, para legitimar-se, deve apoiar-se em razões que tornem desejável e útil a sua atuação processual na causa, em ordem a proporcionar meios que viabilizem uma adequada resolução do litígio. Na verdade, consoante ressalta PAOLO BIANCHI, em estudo sobre o tema ("Un´Amicizia Interessata: L´amicus curiae Davanti Alla Corte Suprema Degli Stati Uniti", in "Giurisprudenza Costituzionale", Fasc. 6, nov/dez de 1995, Ano XI, Giuffré), a admissão do terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões do Tribunal Constitucional, viabilizando, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize a possibilidade de participação de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. Presente esse contexto, entendo que a atuação processual do amicus curiae não deve limitar-se à mera apresentação de memoriais ou à prestação eventual de informações que lhe venham a ser solicitadas. Cumpre permitir-lhe, em extensão maior, o exercício de determinados poderes processuais, como aquele consistente no direito de proceder à sustentação oral das razões que justificaram a sua admissão formal na causa. Reconheço, no entanto, que, a propósito dessa questão, existe decisão monocrática, em sentido contrário, proferida pelo eminente Presidente desta Corte, na Sessão de julgamento da ADI 2.321-DF (medida cautelar). Tenho para mim, contudo, na linha das razões que venho de expor, que o Supremo Tribunal Federal, em assim agindo, não só garantirá maior efetividade e atribuirá maior legitimidade às suas decisões, mas, sobretudo, valorizará, sob uma perspectiva eminentemente pluralística, o sentido essencialmente democrático dessa participação processual, enriquecida pelos elementos de informação e pelo acervo de experiências que o amicus curiae poderá transmitir à Corte Constitucional, notadamente em um processo - como o de controle abstrato de constitucionalidade - cujas implicações políticas, sociais, econômicas, jurídicas e culturais são de irrecusável importância e de inquestionável significação.
Tendo presentes as razões ora expostas - e considerando o que dispõe o art. 7º, §2º, da Lei nº 9.868/99 -, entendo que se acham preenchidos, na espécie, os requisitos legitimadores da pretendida admissão formal, da ora interessada, nesta causa: a relevância da matéria em exame, de um lado, e a representatividade adequada da entidade de classe postulante, de outro.
Ministro CELSO DE MELLO – Relator" -g.n.-
Ainda, a doutrina nacional festeja a participação, no processo, dos possíveis afetados pela decisão sobre a inconstitucionalidade. Veja-se a afirmação de Gustavo BINENBOJM:
"Trata-se de inovação bem inspirada, que se insere no contexto de abertura da interpretação constitucional no país, permitindo que os indivíduos e grupos sociais participem ativamente das decisões do Supremo Tribunal Federal que afetem seus interesses. (…)
A norma, se bem utilizada, poderá ensejar significativo efeito democratizante nos processos objetivos de controle de constitucionalidade. É que, a par de permitir a apresentação formal de memoriais de conteúdo jurídico – o que, por si só, já seria medida salutar – o dispositivo possibilita ao Supremo Tribunal Federal ter conhecimento das posições daqueles que vivenciam a realidade constitucional e sofrem a incidência da lei objeto do controle. Ao menos em termos ideais, o cidadão é elevado de sua condição de destinatário das normas jurídicas para atuar simultaneamente como intérprete da Constituição e das leis, com direito a ter sua opinião ouvida e devidamente considerada pelo Tribunal Constitucional." [04] -g.n.-
"Em última análise, toda lei é criada visando à produção de efeitos concretos sobre a realidade, e só assim, no confronto com situações concretas, é que a norma revela todo o seu conteúdo significativo. Assim, a análise da compatibilidade de uma determinada lei com o texto constitucional não deve ser empreendida no plano meramente teórico, senão que deve levar em conta os problemas jurídicos concretos ensejados pela incidência da lei sobre a realidade." [05]
No mesmo sentido as lições de Gilmar MENDES:
"O instituto em questão [amicus curiae], de longa tradição no direito americano, visa a um objetivo dos mais relevantes: viabilizar a participação no processo de interessados e afetados pelas decisões tomadas no âmbito do controle de constitucionalidade. Como há facilmente de se perceber, trata-se de medida concretizadora do princípio do pluralismo democrático que rege a ordem constitucional brasileira.
Para além disso, o dispositivo em questão acaba por ensejar a possibilidade de o Tribunal decidir as causas com pleno conhecimento de todas as suas implicações ou repercussões." [06]
Confirmada a possibilidade de participação de amigos da Corte no controle concentrado de constitucionalidade, resta qualificar a entidade que pretende contribuir para o deslinde desta ADI.
O Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional representa no âmbito nacional os membros da Procuradoria-Geral da Fazenda, categoria profissional tratada pela Constituição como função essencial à justiça [07]. Este sindicato tem por finalidade, conforme seu estatuto:
"Art. 3º - Além das prerrogativas legais, cabe ao SINPROFAZ
I - representar e defender os interesses e direitos coletivos e individuais dos filiados, relativos à sua atividade profissional e compatíveis com o interesse geral da categoria, perante autoridades administrativas e judiciárias;
II - fazer valer, em Juízo e fora dele, as prerrogativas da carreira que representa;
III - fazer valer as prerrogativas inerentes à carreira previstas no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil;
IV - promover negociações coletivas e movimentos reivindicatórios tendentes a assegurar a dignidade da carreira, a melhoria das condições de trabalho e a sobrevivência condigna de seus integrantes;
V - promover a carreira junto aos meios de comunicação, culturais, universitários, políticos, inclusive à Ordem dos Advogados do Brasil, de forma a levar a público as conquistas realizadas pelos filiados, bem como as suas aspirações e necessidades, visando a implementar meios de mobilização interna e externa;
VI - lutar:
a) pela efetivação do princípio do concurso público como forma de ingresso na carreira;
b) pelo preenchimento de todos os cargos em comissão, inclusive os de recrutamento amplo, e pelo exercício das funções de confiança por Procuradores da Fazenda Nacional integrantes da carreira;
c) pela antigüidade e pelo mérito, alternadamente, como forma de promoção em todos os níveis da carreira de Procurador da Fazenda Nacional, observados critérios objetivos e transparentes;
d) pela preservação dos direitos adquiridos ou em vias de aquisição pelos seus filiados;
e) pela estabilidade dos Procuradores da Fazenda Nacional.
f) por remuneração justa e compensa que atenda à expectativa e ao grau de formação de seus filiados." -g.n.-
Assim, o SINPROFAZ preenche o requisito legal da adequada representatividade para postular sua participação no feito na qualidade de amicus curiae. Ademais, a matéria é relevante e diretamente vinculada ao desempenho profissional de seus filiados, razão de seu inegável interesse em manifestar-se, mormente para demonstrar a inconstitucionalidade da norma neste caso impugnada.
O dispositivo de lei questionado na presente Ação Direta afetará de modo imediato a categoria profissional representada pelo SINPROFAZ. Ao transferir para a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional toda a atribuição tributária em matéria previdenciária e também a relativa ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (antes de incumbência da Procuradoria-Geral Federal) sem capacitação prévia e qualquer adaptação de infra-estrutura, sujeitar-se-á os Procuradores da Fazenda Nacional a uma carga insuportável de trabalho, com conseqüentes prejuízos (i) físicos e psicológicos aos servidores, (ii) materiais ao Estado, e (iii) funcionais aos cidadãos dependentes do serviço da PGFN.
Ressalte-se que o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional já teve admitido seu ingresso como amicus curiae em demandas ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal. É o caso da ADIn nº 3786, em que é discutida a terceirização da cobrança da dívida ativa de Estados e Municípios; e também da ADIn nº 3396, versando sobre o afastamento da incidência do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil nas relações entre advogados empregados em empresas públicas, sociedades de economia mista, Administração Direta, autárquica e fundacional. Ambas as demandas envolvem matérias de grande interesse para a carreira dos Procuradores da Fazenda Nacional, sendo de fato pertinente que o Sindicato atue na defesa dos interesses de seus membros.
Resta comprovada a representatividade do SINPROFAZ, sendo notória a relevância da matéria discutida na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade; há razões suficientes para a entidade postular sua intervenção no feito, nos termos do § 2º do art. 7º da Lei nº 9.868/99, com a juntada desta manifestação aos autos e a sustentação oral dos argumentos aqui exarados perante esta Colenda Corte Constitucional.
3. DA OCORRÊNCIA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Vários fatores corroboram a inconstitucionalidade do dispositivo ora impugnado. Cumpre, então, discorrer sobre os fundamentos jurídicos que sustentam a procedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade.
Desde já cabe firmar que não se trata de mera inconstitucionalidade reflexa, caracterizada quando "norma inferior extravasa conteúdo de norma superior (mas não a Constituição), normalmente a lei, resultando em juízo de ilegalidade, ainda que possa vir, oblíqua ou reflexamente, a atingir a Constituição." [08] Esse tipo de vício meramente reflexo não é apreciado pelo Supremo Tribunal Federal. Exige-se que o ato inconstitucional contrarie diretamente norma Constitucional e não outra norma infraconstitucional.
Nesse sentido, não cabe ADIn quando "o confronto do ato questionado com os dispositivos da Carta teria que passar, primeiramente, pelo exame in abstracto de outras normas infraconstitucionais, de tal forma que não haveria confronto direto da lei em causa com a Constituição" [09]. Do mesmo modo, na ADIn nº 1347, o relator, Ministro Celso de MELLO, afirmou: "Revelar-se-á processualmente inviável a utilização da ação direta, quando a situação de inconstitucionalidade – que sempre deve transparecer imediatamente do conteúdo material do ato normativo impugnado – depender, para efeito de seu reconhecimento, do prévio exame comparativo entre a regra estatal questionada e qualquer outra espécie jurídica de natureza infraconstitucional."
Como o caso em análise não reclama comparação da regra impugnada com qualquer outra disposição infraconstitucional, podendo-se extrair da própria normativa a sua incompatibilidade direta com a Constituição – como restará evidente ao final desta argumentação – é perfeitamente possível seu questionamento por meio de ADI.
A. A NORMA IMPUGNADA
A presente Ação Direta de Inconstitucionalidade volta-se contra o disposto no art. 16, § 1º, da Lei nº 11.457/07 (Lei da Super-Receita):
CAPÍTULO II
DA PROCURADORIA-GERAL DA FAZENDA NACIONAL
"Art. 16 - A partir do 1º (primeiro) dia do 2º (segundo) mês subseqüente ao da publicação desta Lei, o débito original e seus acréscimos legais, além de outras multas previstas em lei, relativos às contribuições de que tratam os arts. 2º e 3º desta Lei, constituem dívida ativa da União.
§ 1º A partir do 1º (primeiro) dia do 13º (décimo terceiro) mês subseqüente ao da publicação desta Lei,
o disposto no caput deste artigo se estende à dívida ativa do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE decorrente das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei." -g.n.-
Nos termos do dispositivo impugnado, a dívida ativa do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) passa a integrar o montante da dívida ativa da União.
Sabe-se que o órgão competente para representar a União na execução de sua dívida ativa é a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, conforme o art. 131, § 3º da Constituição:
"Art. 131 - A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
(…)
§ 3º - Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei."
O volume de trabalho dos Procuradores da Fazenda Nacional é imenso, como já demonstrado na petição inicial. O disposto na Lei nº 11.457/07 contribui para agravar essa situação, uma vez que aumenta, pela incorporação de créditos de origem diversa, o montante da dívida ativa da União a cargo da PGFN.
O acréscimo das atribuições decorre da implantação da Super-Receita, que objetiva tornar a administração e a arrecadação dos tributos federais mais eficiente. Trata-se de medida salutar para o país, devendo ser conservada e aprimorada.
A questão que permanece aberta, contudo, é se a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional tem condições de assumir o volume de trabalho que lhe foi atribuído em razão da implantação da Super-Receita. Trata-se de tema fundamental para o deslinde da demanda, envolvendo circunstância fática capaz de comprometer a legitimidade da norma impugnada.
B. ESTUDO SOBRE A REAL SITUAÇÃO DA PGFN
Para responder à questão acima, é necessário estudar as reais condições de trabalho no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
Já de início se pode afirmar que tais condições são insustentáveis. O próprio Supremo Tribunal Federal, mediante pronunciamento da Ministra Ellen GRACIE, deixou assentado que as unidades da PGFN "normalmente atuam com escasso número de procuradores e sobrecarga de trabalho." [10]
O contexto caótico de trabalho dos Procuradores da Fazenda restou bastante evidente pelos números trazidos na petição inicial. Desnecessário reproduzir as informações. Cabe apenas reforçá-las, por meio de dados complementares.
O seguinte trecho de artigo redigido por um Procurador torna públicas as condições de atividade da categoria:
"As condições atuais de trabalho dos Procuradores da Fazenda Nacional são, no geral, francamente insatisfatórias. São limitadas as unidades da PFGN que contam com condições logísticas adequadas. Várias unidades, inclusive, apresentam condições físicas claramente inaceitáveis. Outro fator fundamental para definir uma baixa qualidade do ambiente de trabalho experimentado pelos Procuradores da Fazenda Nacional consiste na ausência de um quadro de apoio administrativo especializado. Também não existe uma política de preparação ou atualização dos recursos humanos da instituição. A utilização das modernas vertentes da Tecnologia da Informação, elemento crucial na fixação de padrões de desempenho satisfatórios nas organizações modernas, registra melhorias crescentes. Entretanto, padece a área de uma política definida, onde sejam fixadas metas e prioridades.
Merece destaque especial a quantidade de processos ou expedientes a cargo dos Procuradores da Fazenda Nacional. Segundo o relatório de gestão de 2001, cada Procurador da Fazenda Nacional atuou, em média, naquele ano, em 6.031 processos ou expedientes [11].
(…)
Podemos dizer, de forma resumida, que as restrições orçamentárias e financeiras, aliadas a uma gestão não profissional da instituição, notadamente nos últimos anos, são diretamente responsáveis por um quadro preocupante em termos de condições de trabalho." [12] -g.n.-
Não obstante, a Procuradoria da Fazenda atua de forma louvável, com esforços hercúleos. O montante arrecadado pela União mediante o trabalho dos Procuradores mostra a importância e o empenho desses profissionais. Conforme os Relatórios de Gestão da PGFN, disponíveis em http://www.pgfn.fazenda.gov.br, no ano 2006 a arrecadação total obtida pela atuação da PGFN somou R$ 9.617.675.553,59. Ainda, a atuação do órgão evitou a perda pelo erário do montante de R$ 10.538.661.747,56. Assim, a atuação da PGFN contribuiu para que a Fazenda Nacional obtivesse ganhos totais no valor de R$ 29.156.337.300,56.
Em 2006, considerando a já citada arrecadação total da PGFN e o total de despesa gerado por suas unidades (R$ 243.391.183,15), chega-se ao percentual de 2,53%, o que se revela inacreditavelmente vantajosa a equação custo/benefício.
Compondo a força de trabalho da PGFN, em dezembro de 2006, estavam 1.126 Procuradores da Fazenda Nacional. Considerando que o número total de feitos e expedientes sob responsabilidade da PGFN (Dívida Ativa e Defesa, excluindo-se FGTS e Consultoria/ Assessoramento/ Representação Extrajudicial no Órgão Central) chegou, em 2006, a 10.820.846, verifica-se que a média de ocorrências por Procurador da Fazenda Nacional atingiu, no ano, a cifra de 9.610 processos/expedientes per capita. Tomando em conta que, no âmbito judicial, por exemplo, o número de atuações do Procurador, em cada processo, é de, no mínimo, três em cada instância, pode-se concluir que o volume de trabalho é deveras alto.
Quanto aos servidores em exercício nas unidades da PGFN, totalizavam, em dezembro de 2006, 1.573, salientando-se o fato da inexistência de carreira de apoio específica do órgão. Face ao volume de trabalho apontado, resta evidente a insuficiência do número de servidores, eis que grande parte deles são responsáveis pela logística necessária à Administração Tributária, não podendo, com efeito, auxiliar os Procuradores em suas atividades-fim (arrecadação da Dívida Ativa e processos de Defesa da Fazenda Nacional).
Em 2007, o resultado da arrecadação de receitas da União somou R$ 12,8 bilhões (R$ 3,6 bilhões referentes à Dívida Ativa da União e R$ 9,2 bilhões relativos às conversões de depósitos judiciais em renda da União), resultado ainda mais favorável à União. A arrecadação aumentou, o volume de feitos cresceu significativamente, mas o diminuto quadro de pessoal persistiu. Havia 1.443 Procuradores da Fazenda Nacional, 1.784 pessoas compunham o Plano Geral de Pessoal do Executivo, eram 865 os terceirizados, e havia 1.012 estagiários. Então, os resultados atingidos são muito significativos quando confrontados com a insuficiência de Procuradores da Fazenda Nacional e com a inexistência de uma Carreira específica para os servidores de apoio que atuam no Órgão.
Limitações orçamentárias e de outras ordens geram dificuldades no desenvolvimento das funções. A falta de recursos impossibilita um processo amplo de capacitação e adequação da estruturação do órgão em termos materiais e até o aperfeiçoamento efetivo dos serviços prestados.
Merece referência como ponto crítico também a ausência de criação e instalação de Procuradorias-Seccionais da Fazenda Nacional em Municípios do interior onde existem Varas Federais implantadas. O avanço do projeto de interiorização da Justiça Federal implica um enorme volume de processos judiciais nestes locais. Não estando a Fazenda Nacional presente de modo efetivo nesses locais, o trâmite e acompanhamento dos processos de seu interesse, em especial de execuções fiscais, fica prejudicado.
Nesse sentido, existem, segundo dados do Conselho da Justiça Federal, 846 Varas Federais instaladas em todo o país, somadas a 137 Juizados Especiais Federais. Por outro lado, permanecem apenas 62 Procuradorias Seccionais da Fazenda Nacional. Mencione-se, ainda, a competência da Justiça Estadual, prevista no art. 109, § 3º, da Constituição Federal [13], alargando ainda mais a gama de localidades em que a PGFN deve atuar.
Também se ressente a força de trabalho pela inexistência de Carreira de Apoio da PGFN. O quadro de apoio, atualmente, é composto por servidores provenientes de diversos órgãos da Administração, aqui incluídos aqueles redistribuídos ou oriundos de órgãos extintos, inclusive com cargos sem correspondência no Plano de Classificação de Cargos do Serviço Público Federal, além de empregados do Serviço Federal de Processamento de Dados. Este conjunto de fatos torna-se mais crítico quando se considera a especialização das atribuições da PGFN, órgão jurídico de status único na Administração Pública Federal, porquanto, ao lado da representação judicial da União nas causas de natureza fiscal e das atribuições de consultoria e assessoramento jurídicos no âmbito do Ministério da Fazenda, ainda contribui, de forma decisiva, para a arrecadação de receitas fundamentais à manutenção dos serviços públicos essenciais, por meio da apuração e inscrição da Dívida Ativa da União e da respectiva cobrança judicial. A inexistência, portanto, de servidores especializados contribui para a carência de otimização do desenvolvimento das funções institucionais da PGFN.
Conclui-se que o quadro de Procuradores da Fazenda Nacional é ainda insuficiente, o que se espera ver suprido com a realização de novos concursos públicos, de forma que a situação do Órgão seja contornada, para realizar plenamente as funções de extrema relevância que lhe são atribuídas no âmbito do Estado brasileiro, em benefício da própria sociedade. A isto acresce a necessidade de criação da carreira de apoio do Órgão.
Com a implantação da Receita Federal do Brasil, instituída pela Lei nº 11.457, de 16 de março de 2007, foram conferidas novas atribuições à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
Comparando o cenário de condições de trabalho esboçado, com as novas atribuições decorrentes da efetivação da Super-Receita, fácil perceber que a agregação de atribuições torna a rotina de trabalho do maior órgão jurídico de cobrança do país completamente insustentável. Consolida-se a completa ineficiência do Estado na administração e cobrança de seus créditos.
Tendo em vista as novas competências legais atribuídas à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional pela referida lei, e tendo-se ciência da débil estrutura de trabalho do órgão, estabeleceu a normativa, em seu art. 19, a criação de 1.200 (mil e duzentos) cargos efetivos de Procurador da Fazenda Nacional. Autoriza, ainda, a criação de 120 (cento e vinte) novas Procuradorias-Seccionais da Fazenda Nacional, a serem instaladas por ato do Ministro de Estado da Fazenda, em cidades-sedes de Varas da Justiça Federal ou do Trabalho.
Assim, apenas com a efetiva concretização das alterações estruturais mencionadas será possível o atendimento de forma plena e eficiente das novas competências atribuídas à PGFN. Sem a efetivação de tais alterações – situação atual – os Procuradores da Fazenda não têm condições de desempenhar suas atividades englobando as receitas transferidas pela Lei nº 11.457/07.
O cenário de difíceis condições de trabalho da PGFN é mascarado pelas informações prestadas pela Presidência da República, mediante a exposição de iniciativas que, a seu ver, se consubstanciam em providências para melhor estruturar a PGFN. São relatadas situações concernentes (i) à estruturação do quadro de pessoal e (ii) ao âmbito funcional e gestão da dívida ativa.
No primeiro grupo menciona: (a) nomeação de 523 novos Procuradores da Fazenda Nacional pelo Edital nº 70, de 15/05/2007; (b) provimento de 250 vagas, mediante concurso público com encerramento previsto para 19 de junho de 2008; (c) encaminhamento ao MPOG de anteprojeto de lei para criação de 2.400 cargos de Técnicos e Analistas e (d) absorção, por readmissão administrativa, de 52 servidores públicos federais exonerados por ocasião da reforma administrativa empreendida a partir de 1.990. Todavia, nenhuma destas medidas foi implementada, senão veja-se.
(a) No que se refere à nomeação de 523 Procuradores da Fazenda Nacional em 15 de maio de 2007, é corrente a informação de que a maioria dos Procuradores nomeados sequer toma posse e entra em exercício, sendo o índice de abstenção de aproximadamente 40% dos nomeados. Assim, para informações fidedignas acerca da estrutura da PGFN deve-se anotar o número exato dos Procuradores que, efetivamente nomeados, assumiram seus cargos. Aspecto também relevante na apreciação dos resultados consiste na constatação de que há grande evasão dos quadros da PGFN, especialmente de Procuradores.
(b) Em relação ao concurso em andamento, as 250 vagas previstas não servem de paliativo ao impacto ocasionado pela entrada em vigor do art. 16 da Lei nº 11.457/07. Ademais, informações da Presidência reconhecem que o encerramento do certame ainda não ocorreu. Sua última publicação data de 29 de maio de 2008, e teve por objeto a divulgação do resultado da análise dos documentos referentes à sindicância de vida pregressa e das notas atribuídas aos títulos apresentados pelos candidatos. Para que a PGFN possa contar com essa novel força de trabalho, não se pode olvidar do considerável lapso temporal a ser ainda transcorrido: nomeação dos aprovados, realização de exames médicos, posse e curso de formação.
(c) Apesar de ultrapassado o período anual da vacatio legis da Lei nº 11.457/06, o único avanço acerca da criação de cargos de técnicos e analistas é o encaminhamento de um anteprojeto de lei ao Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão, sem maiores resultados práticos.
Ainda, é importante suscitar o teor da Portaria Interministerial nº 45, de 05 de março de 2008, que fixou o exercício, na Procuradoria-Geral Federal, dos servidores que atuavam na dívida do INSS, descritos no caput do art. 21 da Lei nº 11.457/07 [14]. Ou seja, foram redistribuídas as atribuições, mas não os recursos humanos.
(d) Questionável é a menção de readmissão de 52 servidores exonerados em 1990. Tal readmissão não alterará o quadro descrito, bastando ver que são menos de dois funcionários por Unidade da Federação. Destaque-se, igualmente, que a força de trabalho ora oferecida pela Administração pode não estar devidamente qualificada, eis que provavelmente os servidores em disponibilidade remunerada há mais de 18 anos não se encontravam em capacitação constante enquanto aguardavam sua readmissão no serviço público.
No âmbito funcional, de gestão da dívida ativa, as providências em andamento citadas pela Presidência da República não contribuem, de fato, para a melhoria das condições de trabalho dos Procuradores.
As Portarias PGFN/RFB/PGF nº 01, de 29 de junho de 2007, e nº 02, de 27 de março de 2008, apenas dispõem acerca do parcelamento dos débitos anteriormente afetos à competência do INSS e, agora, administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Não se vislumbra qualquer relação com as condições materiais e humanas de trabalho. O mesmo se pode dizer dos Decretos nº 6.106, de 30 de abril de 2007, e nº 6.420, de 01 de abril de 2008, que somente transplantam a competência para a expedição da Certidão de Regularidade Fiscal quanto aos débitos previdenciários. Da mesma forma, a Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 01/2008 simplesmente aprova o Manual de Inscrição e Ajuizamento dos Créditos Previdenciários, não tendo impacto para a melhoria das condições de trabalho dos Procuradores da Fazenda Nacional.
A Portaria PGFN nº 131, de 11 de fevereiro de 2.008, cria "Grupo de Trabalho com o objetivo de propor medidas e eficiência para a cobrança das contribuições sociais previstas nas alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘c’ do parágrafo único do art. 11 da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, das contribuições instituídas a título de substituição e das contribuições devidas a terceiros por meio de uniformização, compatibilização e sistematização da legislação de regência de inscrição em Dívida Ativa, cobranças administrativa e judicial das referidas exações". Ora, pela dificuldade da organização de tal grupo, e pela própria complexidade da matéria, as conclusões advindas serão obtidas apenas após considerável lapso temporal. Ademais, aos estudos, devem ser somadas e concretizadas medidas práticas.
Os treinamentos previstos nas Portarias PGFN/PGF nº 03, de 27 de março de 2008, e nº 05, de 16 de abril de 2008, não receberam qualquer medida para concretização, até a presente data.
Finalmente, quanto à delegação à Procuradoria-Geral Federal (PGF) da representação judicial e extrajudicial da União nos processos perante a Justiça do Trabalho relacionados com a cobrança de contribuições previdenciárias e de imposto de renda retido na fonte, prevista na Portaria Conjunta PGF/PGFN nº 433, de 25 de abril de 2007, não há dúvidas de que houve a desoneração de parte das atribuições da PGFN. Todavia, a referida delegação mostrou-se imperiosa pelo simples fato de que a PGFN não conta com alcance espacial comparável à PGF, e muito menos à Justiça do Trabalho, sendo que, acaso inexistente a delegação em testilha, a cobrança das exações em questão seria inviável.
De todos os dados apresentados, conclui-se que a PGFN não possui condições operacionais para executar a dívida ativa da União no montante estipulado pela Super-Receita. Apesar da importância da carreira para a manutenção e o desenvolvimento econômico do Estado, o que há, de fato, é uma fragilidade organizacional que envolve insuficiência de elemento humano e subdimensionamento da estrutura administrativa em face da magnitude das tarefas, que impactam substancialmente nos interesses imediatos da coletividade de contribuintes devedores da Fazenda Nacional [15].
Não restam dúvidas de que, apesar de a fusão dos Fiscos ter sido um avanço sob o aspecto da eficiência na cobrança dos créditos tributários da União, sua efetivação sem a adequação à realidade material da PGFN consagra a necessidade de intervenção do Poder Judiciário para corrigir a equação "lei aprovada – realidade", à qual não se ateve o legislador.
C. A DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE SEGMENTO DO § 1º DO ART. 16 DA LEI Nº 11.457/07
Pelos dados trazidos, torna-se evidente a inconstitucionalidade de parte do § 1º, do art. 16 da Lei nº 11.457/07. Ressalte-se que a transferência integral do acervo da dívida ativa do INSS e do FNDE para a União, em si, é perfeitamente adequada, pois contribui para atingir os efeitos benéficos almejados pela implantação da Super-Receita. A inconstitucionalidade revela-se quanto ao momento fixado para esta transferência, como se passa a evidenciar.
Inicialmente, cabe breve explicação sobre a inconstitucionalidade parcial e sua ocorrência na situação em exame.
C.1. A declaração de inconstitucionalidade de segmento de norma
A inconstitucionalidade pode ser total ou parcial, conforme contamine todo o ato ou incida apenas sobre parcela dele. Da distinção é possível deduzir a regra da divisibilidade dos atos normativos. Ou seja, os atos normativos, para efeito de fiscalização de constitucionalidade, podem sofrer parcelamento. Gilmar MENDES reforça a idéia: "Adota-se, entre nós, a teoria da divisibilidade das leis, de momo que não se vislumbra dificuldade na pronúncia parcial de inconstitucionalidade de uma lei ou disposição, com a subsistência das partes isentas de vício" [16]. Assim, não deverá ser declarada a inconstitucionalidade total de uma lei caso apenas parte dela esteja tomada por vícios propiciadores de ilegitimidade constitucional. Neste caso, a decisão cassatória do órgão fiscalizador incidirá apenas sobre a parcela maculada do ato normativo.
Portanto, existem situações em que a inobservância de disposição constitucional dá lugar a uma inconstitucionalidade parcial. É o caso do dispositivo impugnado nesta Ação Direta. O § 1º do art. 16 da Lei nº 11.457/07 contém um segmento que não se compatibiliza com os princípios constitucionais da eficiência, da razoabilidade e da proporcionalidade. Trata-se do termo inicial para a transferência de dívidas de outros órgãos para a dívida ativa da União, provocando aumento do volume de trabalho da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional sem que existam, ainda, condições fáticas para assumir tal alargamento de atribuições. Apenas esta fixação de data não se compatibiliza com a Constituição Federal, e não todo o dispositivo normativo.
Lembre-se que não é indispensável que a inconstitucionalidade parcial corresponda a uma parcela autônoma de um ato normativo ou mesmo de um preceito (ser um artigo, parágrafo ou alínea, isoladamente). Nada impede que ocorra a incompatibilidade de um "segmento ou seção ideal" [17] de um artigo, parágrafo ou alínea, como ocorre nesta hipótese, em que o segmento insere-se num parágrafo em que se localizam também disposições compatíveis com os ditames constitucionais.
Ensina Lúcio BITTENCOURT que "Ainda que as prescrições inconstitucionais se encontrem num mesmo artigo em que se achem outras consideradas compatíveis com a Constituição, a regra pode prevalecer, julgando-se estas últimas plenamente eficazes, desde que possam permanecer por si próprias, separadas e distintas, sem que se considerem afetadas pela ineficácia das outras." [18] Ora, a declaração de inconstitucionalidade da data de transferência da dívida ativa do INSS e do FNDE para a União não afetará a transferência em si, nem qualquer outro dispositivo da Lei nº 11.457/07.
O legislador ordinário fixou o primeiro dia do décimo terceiro mês subseqüente ao da publicação da lei (1º de abril de 2008, portanto) para a realização da transferência integral do acervo da dívida ativa do INSS e do FNDE para a União. Considerou que até esta data teriam sido tomadas todas as providências para a re-adequação da estrutura da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional frente ao maior volume de trabalho. Todavia, não foram implementadas as medidas para tanto, medidas estas previstas na própria lei:
"Art. 18 - Ficam criados na Carreira de Procurador da Fazenda Nacional 1.200 (mil e duzentos) cargos efetivos de Procurador da Fazenda Nacional.
Parágrafo único. Os cargos referidos no caput deste artigo serão providos na medida das necessidades do serviço e das disponibilidades de recursos orçamentários, nos termos do § 1º do art. 169 da Constituição Federal."
"Art. 19 - Ficam criadas, na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, 120 (cento e vinte) Procuradorias Seccionais da Fazenda Nacional, a serem instaladas por ato do Ministro de Estado da Fazenda em cidades-sede de Varas da Justiça Federal ou do Trabalho.
Parágrafo único. Para estruturação das Procuradorias Seccionais a que se refere o caput deste artigo, ficam criados 60 (sessenta) cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores DAS-2 e 60 (sessenta) DAS-1, a serem providos na medida das necessidades do serviço e das disponibilidades de recursos orçamentários, nos termos do § 1º do art. 169 da Constituição Federal."
Logo, até que sejam implementadas essas condições materiais necessárias para a atividade dos Procuradores da Fazenda Nacional, a transferência não pode operar efeitos.
É nesse sentido que ganha relevância o precedente citado na petição inicial, em que o Supremo Tribunal Federal decidiu a compatibilidade de uma norma com a Constituição considerando as condições fáticas de implementação do programa normativo:
"Não é de ser reconhecida a inconstitucionalidade do § 5 do art. 1 da Lei n 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n 7.871, de 08.11.1989, no ponto em que confere prazo em dobro, para recurso, às Defensorias Públicas, ao menos até que sua organização, nos Estados, alcance o nível de organização do respectivo Ministério Público, que é a parte adversa, como órgão de acusação, no processo da ação penal pública." (HC 70514-RS, julgado em 23/03/94, sendo relator o Ministro Sydney Sanches. DJ 27/06/97, p. 30225) -g.n.-
Enquanto não organizadas e estruturadas as Defensorias Públicas em nível adequado, entendeu a Corte, corretamente, ser temerário deixar de conceder prazo em dobro para recurso. Sem o prazo dilatado, diante das condições de trabalho existentes no âmbito das Defensorias, o volume de afazeres seria de impossível gerenciamento, não conseguindo a entidade desempenhar adequada e satisfatoriamente suas funções essenciais à justiça; desapontaria a sociedade e prejudicaria o próprio Estado.
O mesmo raciocínio cabe ao caso em exame: enquanto não suficientemente organizada e estruturada a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, não é adequado transferir-lhe a representação judicial da dívida ativa do INSS e do FNDE. Ressalte-se que referida transferência, a partir de 1º de abril de 2008, pode ainda gerar total insegurança jurídica, em face da falta de especialização e de experiência da PGFN no trato de milhares de ações envolvendo o INSS na Justiça Federal e na Justiça do Trabalho.
A transferência referida no § 1º do art. 16 da Lei nº 11.757/07 somente poderá ser operada quando existentes as condições fáticas para que a PGFN possa responder ao aumento de suas atribuições decorrentes da implantação da Super-Receita, ou seja, preenchidos ao menos mais 1200 cargos de Procuradores e criadas 120 seccionais. Ao estipular esse momento futuro em que a norma será aplicada o Supremo Tribunal Federal de forma alguma estará exercendo função legislativa, eis que o próprio legislador já definiu, na própria Lei nº 11.457/07 que o acréscimo no volume de trabalho dos Procuradores da Fazenda deverá ocorrer quando reestruturado o órgão, conforme os artigos 18 e 19 já citados.
Entende-se, então, ser cabível a declaração de inconstitucionalidade da expressão "A partir do 1º (primeiro) dia do 13º (décimo terceiro) mês subseqüente ao da publicação desta Lei" contida no § 1º do artigo 16 da Lei nº 11.457/07, por violar os princípios constitucionais da proporcionalidade, da razoabilidade e da eficiência, além de afetar o princípio da continuidade dos serviços públicos, como será consistentemente comprovado.
Efeito da declaração de inconstitucionalidade da data de início dos acervos para a dívida ativa da União será uma lacuna quanto ao início da referida transferência. Todavia, esse vazio já foi suprido indiretamente pelo próprio legislador, cabendo ao Supremo Tribunal Federal apenas confirmar a solução. Assim, ao determinar, em consonância com o estabelecido em outros dispositivos da Lei nº 11.457/07, e com os princípios da eficiência, da razoabilidade e da proporcionalidade, que a transferência do acervo de dívidas em comento dar-se-á a partir da reestruturação da PGFN, o Tribunal estará sublinhando opção realizada pelo próprio legislador, e propiciará a regulação de situação que reclama disciplina.
Trata-se da declaração de inconstitucionalidade de norma que contém uma prescrição ao invés de outra, devendo ser declarada a interpretação adequada com a Constituição. Tais decisões, segundo Roberto BIN e Giovanni PITRUZELLA, são aquelas nas quais "a Corte declara a ilegitimidade duma disposição legislativa na parte em que prevê X ao invés de Y. Com aquelas, a Corte ‘substitui’ uma locução da disposição, incompatível com a Constituição, com outra, constitucionalmente correta." [19]
Ressalte-se que esta atuação da Corte de forma alguma modificará o sistema da lei ou seu sentido, pois o próprio legislador já atribuiu o sentido que será apenas confirmado pela Corte. Nesse sentido, não há qualquer razão para equiparar a atividade do tribunal à do legislador. "O complemento introduzido pelas decisões em exame, além de efeito indireto da declaração de inconstitucionalidade, não deriva de pura imaginação da Corte Constitucional, mas de integração analógica resultante de outras normas ou princípios constitucionais, cuja descoberta advém do engenho daquela." [20]Legítima a atuação do magistrado, pois "ao contrário do que acontece com o legislador, não se tem a elaboração de uma norma jurídica, com a discrição àquele peculiar, mas tão-só o complemento da existente, a partir de solução constante do sistema jurídico, cuja descoberta se deve ao labor do intérprete. Há, sem margem de dúvida, atividade de criação legislativa, sem embargo de inexistir típica ação legislativa." [21]
A supressão de lacuna em declaração parcial de inconstitucionalidade já foi operada pelo Supremo Tribunal Federal nos recentes julgamentos dos mandados de segurança nº 26.602, 26.603 e 26.604, em que se afirmou a fidelidade partidária. Também foi a resposta mais adequada para lidar com a inconstitucionalidade da "cláusula de barreira" instituída pelo art. 13 da Lei n° 9.096, no julgamento das ADI n°s 1.351 e 1.354. Logo, inexiste qualquer impedimento à providência solicitada. Sabe-se que há muito a jurisdição constitucional deixou de exercer apenas o papel de um legislador negativo [22], por não ser suficiente às demandas da realidade. Por essa razão observa Cristina QUEIROZ que os tribunais constitucionais assumem cada vez mais funções criativas, por meio de sentenças interpretativas (aditivas e substitutivas, por exemplo), decorrentes das mudanças institucionais ínsitas ao Estado Democrático e Social [23].
Logo, enfatiza-se o requerimento de declaração da inconstitucionalidade da expressão "A partir do 1º (primeiro) dia do 13º (décimo terceiro) mês subseqüente ao da publicação desta Lei" contida no § 1º do artigo 16 da Lei nº 11.457/07, substituindo-se o texto viciado pela disposição "A partir da reestruturação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, nos moldes dos artigos 18 e 19 desta Lei."
Resta salientar que a declaração de inconstitucionalidade parcial da norma, apesar de se distinguir do pedido gravado na petição inicial (inconstitucionalidade circunstancial), guarda com ele a identidade de ser um pedido de declaração de inconstitucionalidade do disposto no § 1º do art. 16 da Lei nº 11.457/07.
Nesse sentido, não se olvide que o Supremo Tribunal Federal não se limita aos argumentos suscitados na petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Assim, a Corte tem liberdade para examinar a inconstitucionalidade com base em outras normas da Constituição, como já restou expresso em diversas de suas decisões: "Na Ação Direta de Inconstitucionalidade cujo é processo é objetivo, não ‘inter-partes’, a ‘causa petendi’ pode ser desconsiderada e suprida, por outra, pelo S.T.F., segundo sua pacífica jurisprudência" [24].
Ações Diretas têm como uma de suas peculiaridades a causa de pedir aberta [25]. Isso decorre do caráter objetivo do controle concentrado de constitucionalidade, em que se intenta proteger o ordenamento jurídico, a ordem constitucional. O Supremo não pode iniciar ex officio o processo constitucional. Mas uma vez provocado, embora não possa ampliar o pedido [26] – de desencadeamento da fiscalização concentrada e abstrata da inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados na petição inicial –, a Corte pode examinar a constitucionalidade das normas atacadas em face de toda a Constituição Federal, encontrando outros fundamentos jurídicos ao pedido [27]. Nesse sentido, sendo o Supremo Tribunal Federal o guardião da Constituição – e não apenas dos preceitos que o autor da ação reputa violados – pode averiguar a (in)compatibilidade da norma questionada com todas as normas constitucionais [28].
Portanto, a presente manifestação na condição de amicus curiae, embora traga como mais adequada a declaração de inconstitucionalidade de segmento do § 1º do artigo 16 da Lei nº 11.457/07 – seguida do efeito de determinar, como termo inicial para a transferência das novas atribuições, a implementação das condições fáticas de trabalho no âmbito da PGFN –, igualmente clama pela procedência desta Ação Direta, pelos argumentos a seguir, manifestando o mesmo pedido (embora com solução diversa).
C.2. Violação do princípio constitucional da eficiência
Para uma correta interpretação da Lei nº 11.457/07, é necessário considerar a exposição de motivos que acompanhou o projeto de lei. "Observando os motivos que resultaram na elaboração da norma, as forças políticas que concorreram para sua elaboração e o momento histórico em que ela foi instituída é possível vislumbrar o fim para o qual se destina e um vetor interpretativo." [29]
Nesse sentido, ganha relevo o método histórico de interpretação, como pontua Celso BASTOS:
"O método histórico busca alcançar o sentido da lei através da análise de seus precedentes legislativos, quais sejam, os relatórios, debates em plenário ou discussões em comissões. Procura-se aqui ressaltar o contexto histórico da lei no momento em que esta foi promulgada, bem como todo o seu processo de elaboração, para que assim possa-se prever as suas conseqüências no futuro. No entanto, o método histórico não fica restrito apenas à análise do contexto sócio-econômico que circundava a lei no momento de sua elaboração, mas leva em conta também qual seria o intuito da lei frente aos fatos atuais." [30] -g.n.-
Apesar de serem mais festejados atualmente outros elementos de interpretação, não se pode ignorar que o método histórico pode contribuir para bem interpretar os dispositivos normativos. Principalmente no caso em apreço, uma vez que a norma questionada é bastante recente, têm grande peso argumentativo as razões que a motivaram. Nesse sentido, em lição aplicável ao caso em exame, afirma GEBRAN NETO que o método histórico "tem peculiar importância nas primeiras exegeses de determinadas normas, principalmente quando se trata de regulação de situação jurídica absolutamente nova, o que requer seja analisada a intenção do legislador" [31].
A Exposição de Motivos Interministerial MF/MPS/MP/AGU n° 144, de 25 de novembro de 2005, acompanhou o Projeto de Lei que visava reorganizar a Administração Fazendária Federal por meio da criação da denominada "Super-Receita".
O escopo principal e urgente da proposta encaminhada era reorganizar a administração fazendária da União, mediante a simplificação de processos e outras medidas de eficiência, que permitiriam incrementar a arrecadação correspondente a tributos federais. Necessário frisar que a alavanca impulsionadora do projeto foi a necessidade de maior eficiência, traduzida no incremento da racionalização e da otimização dos trabalhos da administração fazendária da União, tendo em vista o aperfeiçoamento dos sistemas de controle e de atendimento que sua integração gerariam.
Nesse sentido, objetivou-se a unificação, nos órgãos do Ministério da Fazenda, da administração de todos os tributos constitucionalmente atribuídos e destinados à União, inclusive e especialmente as contribuições sociais que se encontravam sob a esfera de competência do Ministério da Previdência Social. Foi extinta, portanto, a Secretaria da Receita Previdenciária e criada a Secretaria da Receita Federal do Brasil.
Essa transformação foi elevada ao grau máximo de importância, pois, conforme sublinha a exposição de motivos, criaria várias vantagens, tais como o aumento efetivo da força de trabalho, a eficiente prestação dos serviços demandados pela sociedade, o eficaz combate a crimes, a economia de tempo e precisão nas informações ao contribuinte, uma única administração tributária, a racionalização das estruturas administrativas e, por fim, o fato de que o Ministério da Previdência Social cuidaria apenas de sua atividade-fim – a área de benefícios –, aumentando a qualidade do seu serviço.
A despeito das reais vantagens que a criação da "Super-Receita" possa ter agregado para atividade concernente à administração fazendária da União, o que importa destacar nesse momento, com fulcro na exposição de motivos do projeto de lei, é a relevância legitimadora da própria medida, que foi entregue expressamente à necessidade de eficiência na atuação da Administração Pública. Nesse sentido, é possível afirmar que o real motivo da legislação, foi a "busca da eficiência da máquina arrecadadora", ou ainda, também conforme a exposição de motivos, "dotar a União de instrumentos que eficientemente promovam o incremento da arrecadação".
Resta evidente a razão de ser da Lei nº 11.457/07 (englobando todas as suas disposições): aumentar a eficiência na administração e arrecadação de receitas tributárias federais. Cabe, então, uma breve análise do princípio da eficiência.
José Afonso da SILVA esclarece que se atinge a eficiência administrativa mediante o melhor emprego dos recursos e meios (humanos, materiais e institucionais), para melhor satisfazer às necessidades coletivas [32]. Trata-se da utilização dos melhores meios sem se distanciar dos objetivos da Administração Pública, atingindo a satisfação do interesse público.
Por sua vez, COSTÓDIO FILHO enuncia o conteúdo jurídico do princípio da eficiência nos seguintes termos: "a Administração Pública deve atender o cidadão na exata medida da necessidade deste com agilidade, mediante adequada organização interna e ótimo aproveitamento dos recursos disponíveis." [33]
Ensina Maria Sylvia Zanella DI PIETRO que o princípio da eficiência pode ser compreendido sob dois aspectos:
"(…) podendo tanto ser considerado em relação à forma de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atuações e atribuições, para lograr os melhores resultados, como também em relação ao modo racional de se organizar, estruturar, disciplinar a administração pública, e também com o intuito de alcance de resultados na prestação do serviço público" [34]. –g.n.-
No mesmo viés, cabe referir a mais recente obra [35] de Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO, em que o autor investiga a transformação sofrida pela atual ação administrativa do Estado. Enfatiza as novas referências paradigmáticas que, somadas às anteriores (existência, validade e eficácia) pautam a Administração Pública: legitimidade, finalidade, eficiência e resultado. Sobre a eficiência, o autor sublinha o seguinte:
"Não mais, tampouco, aceita como simplesmente referida à eficiência econômica, entendida como o incremento da produção de bens e serviços, com redução de insumos e aumento de lucros, mas, com outra e mais ampla percepção, como a que produz um complexo de resultados em benefício da sociedade – portanto, uma eficiência sócioeconômica – um conceito híbrido, que consiste em produzir bens e serviços de melhor qualidade o mais rápido, na maior quantidade possível e com os menores custos para a sociedade, para efetivamente atender a suas necessidades cada vez mais demandantes." [36] -g.n.-
Resta evidente a preocupação com a obtenção de resultados; mais do que isso, resultados adequados aos comandos constitucionais e à realidade social. Nesse sentido, para alcançar os resultados almejados, a administração pública deve empregar mecanismos que efetivem o princípio da eficiência nos órgãos públicos, como a capacitação de agentes e a adequada oferta de condições materiais de trabalho (pessoal de apoio, infra-estrutura, material de trabalho, etc.). As lições de MOREIRA NETO igualmente frisam a necessidade de apoio material à atuação administrativa eficiente:
"(…) a eficiência na condução dos interesses públicos merece não apenas ser constitucionalmente enunciada, como de fato o é (art. 37, CF), mas ser interpretada como um mandamento constitucional inafastável, de modo que o devido processo legal, por meio do qual se realiza a gestão pública, a aparelhe com os meios técnicos (tais como índices, parâmetros, prazos, verificações etc.) necessários para que ela venha a ser controlada em todas suas fases, até efetiva realização dos resultados." [37] -g.n.-
Considerando as condições de atuação da Administração, o mesmo autor argumenta que a idéia de eficiência tem várias implicações, e uma delas é sobre "o próprio conteúdo da competência, entendida esta não apenas como um complexo de atribuições funcionais cometidas a um órgão ou a um agente, mas como um meio para lograr os resultados legitimamente esperados." [38] Assim, também a distribuição de competências aos órgãos estatais deve ser eficiente, constatação essencial para a análise da norma objeto da presente ADI. O aumento de atribuições da PGFN, proposta pela Lei da Super-Receita, não foi eficiente, pois sua operacionalização ocorreu em momento inoportuno.
O princípio da eficiência vincula a atuação administrativa e – por que não dizer – toda a atuação estatal. Impõe o aperfeiçoamento dos serviços prestados, buscando otimizar os resultados e atender o interesse público com os maiores índices de adequação, eficácia e satisfação possíveis. Assim, a Administração Pública deve estar atenta às suas estruturas e organizações, evitando a manutenção de entidades mal-utilizadas ou que não atendam às necessidades da população.
Cabe relacionar a eficiência com o princípio da continuidade dos serviços públicos. Ao lado da prestação eficiente, o Estado não pode descurar da contínua prestação de seus serviços à sociedade. Tal dever decorre da proteção do interesse público. Sendo a função da PGFN essencial à justiça, como define o texto constitucional, resta evidente que não pode ser negligenciada. Como bem ressalta MOREIRA NETO, "a Administração Pública está necessariamente vinculada ao cumprimento da Constituição e, por isso, os resultados devem ser alcançados" [39].
A PGFN assume fundamental importância na medida em que atua para existência de uma política fiscal justa, que ao mesmo tempo reduza as desigualdades regionais, propicie a redistribuição da renda, desonere a produção e o consumo de bens e serviços essenciais, combata a fraude e a sonegação fiscal, reduza a carga tributária especialmente sobre os salários de cidadãos de baixa renda, e ainda permita recursos suficientes ao acesso e prestação de serviços públicos qualificados.
Necessidade premente de aumentar a recuperação de créditos fiscais e de outras naturezas da União, líquidos e certos, para satisfação de serviços públicos essenciais. Esforços para angariar outros créditos, como depósitos judiciais a serem convertidos em renda. Foco na recuperação de débitos para com o Estado preferencialmente à criação de novas formas de obtenção de receitas. A ação da Procuradoria, estrategicamente sustentada nesses conceitos, contribui para a transparência e melhoria da receita para composição dos recursos federais.
Frente à importância das funções da PGFN, de total pertinência para o caso em exame é a lição de Celso Antônio Bandeira de MELLO, em relação à continuidade dos serviços públicos:
"O princípio da continuidade do serviço público é um subprincípio, ou, se se quiser, princípio derivado que decorre da obrigatoriedade do desempenho da atividade administrativa. Esta última, na conformidade do que se vem expondo, é, por sua vez, oriunda do princípio fundamental da ‘indisponibilidade, para a Administração, dos interesses públicos’ (…).
Com efeito, uma vez que a Administração é curadora de determinados interesses que a lei define como públicos e considerando que a defesa, e prosseguimento deles, é, para ela, obrigatória, verdadeiro dever, a continuidade da atividade administrativa é princípio que se impõe e prevalece em quaisquer circunstâncias. (…)
O interesse público que à Administração incumbe zelar encontra-se acima de quaisquer outros e, para ela, tem o sentido de dever, de obrigação. Também por isso não podem as pessoas administrativas deixar de cumprir o próprio escopo, noção muito encarecida pelos autores. São obrigadas a desenvolver atividade contínua, compelidas a perseguir suas finalidades públicas." [40] -g.n.-
Logo, se atribuídas mais tarefas à PGFN do que se pode faticamente realizar, haverá quebra da continuidade de atividade estatal relevante, afetando seriamente o interesse público. Mais uma razão que atesta ser insustentável o termo inicial disposto no § 1º do art. 16 da Lei nº 11.457/07.
Considerando todo o âmbito protegido pelo princípio da eficiência (que envolve a continuidade do serviço, como ressaltado), resta dizer que seu respeito pelos atos estatais é passível de controle jurisdicional [41]. Reforçando a afirmação, MOREIRA NETO defende que "a obrigação de atingir resultados qualificados pela legitimidade e pela eficiência, tanto nos meios quanto nos fins, que efetivamente executem as diretrizes constitucionais, possa ser objeto de controle judicial." [42] Ocorre que "é dever constitucional do Estado atingir efetivamente os resultados que concorram para o atendimento de seus cometimentos públicos." [43]
Diante de argumentos claros e insofismáveis, o juiz poder aferir se o comportamento estatal adotado, não obstante formalmente hígido, revela-se no mundo fático a solução mais eficiente. Tal exame é necessário no caso em apreço.
O princípio constitucional da eficiência administrativa deve ser pensado através do "contraste entre os resultados atribuíveis à ação administrativa em vista das previsões normativas; relação entre o concretamente realizado e a perspectiva ideal da atividade administrativa" [44]. A eficiência administrativa impõe que o cumprimento da lei seja concretizado com um mínimo de ônus sociais, buscando o puro atendimento do interesse público de forma ideal, sempre em benefício do cidadão.
Nesse sentido, para preservar obediência ao princípio constitucional da eficiência administrativa, os efeitos decorrentes da aplicação da lei devem espelhar mais que legalidade; devem alcançar teleologicamente o interesse público. De nada adiantaria a aplicação de normas cujos efeitos se dessem à revelia do interesse social e, nesse sentido, violassem o princípio da eficiência. Pertinente, portanto, o argumento de MOREIRA NETO: "Presumidamente, toda ação, seja pública ou privada, deve ser eficiente, de outro modo não atingirá o resultado que dela se espera. Mas este logro de resultados, que até certo ponto possa ser meramente dispositivo na gestão privada de interesses, é rigorosamente mandatório, quando referido à gestão de interesses públicos pelo Estado." [45]
Para lograr os melhores resultados com a atuação estatal, e, conseqüentemente, para constatar o respeito ao princípio da eficiência, a verificação dos efeitos da aplicação da lei são de suma importância. Por essa razão, MOREIRA NETO sustenta ser indubitável a consideração do futuro na norma jurídica, "o que a faz merecedora de uma cuidadosa atenção prospectiva, tanto por parte dos seus elaboradores, quanto dos seus aplicadores." [46] Nessa avaliação prospectiva insere-se o exame dos resultados que podem ser alcançados pela norma. A experiência de uma norma pode demonstrar sua contradição com a perspectiva ideal da atividade administrativa e, muitas vezes, o controle de determinada norma é possível apenas considerando seus efeitos práticos.
É exatamente essa contradição que se observa do cotejo do § 1° do art. 16 da Lei nº 11.457/07 com o princípio da eficiência estampado no caput do artigo 37 da Constituição Federal. As mudanças provocadas pelo citado dispositivo normativo em relação à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional são incompatíveis com a referida busca de maior eficiência.
A primeira transformação no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) deu-se com a migração (i) do contencioso judicial do Instituto Nacional do Seguro Social da Secretaria de Receita Previdenciária do MPS para a representação a cargo da PGFN, e (ii) da atual dívida ativa do INSS e do FNDE para o sistema de dívida ativa da União.
A segunda medida destacada merece maior atenção, tendo em vista o referido mote da eficiência. É acompanhada da "necessidade de adaptação, desenvolvimento e modernização das suas (PGFN) atividades frente aos novos desafios atualmente caracterizados na fiscalização e cobrança dos tributos federais" (grifamos). Depreende-se, desse trecho citado da exposição de motivos, que a proposta também ressaltava e efetivamente contava com uma readequação da infra-estrutura da PGFN, tendo em vista o alargamento de suas atividades.
Por essa razão, consta na Lei nº 11.457/07 a previsão da criação de cargos e unidades seccionais no âmbito da PGFN, medida já postulada na exposição de motivos, a qual afirmou que tal providência decorre da "premente necessidade de se atender ao volume desproporcional de serviço a que já esta submetido o órgão, situação agora reforçada pelas já referidas novas atividades que lhe advirão com a reorganização da administração fazendária da União" (grifamos).
Todavia, não foram tomadas as providências necessárias. As condições de trabalho dos Procuradores da Fazenda não são adequadas para os novos desafios trazidos pela Super-Receita. Sendo assim, a análise da situação fática criada pela aplicação do ora questionado § 1° do art. 16 demonstra um contraste negativo (verdadeira contradição) entre o ideal imaginado pela norma – qual seja, uma eficiente busca de arrecadação, incluindo modernização na infra-estrutura da PGFN (conforme referido na exposição de motivos da norma) – com o mundo dos fatos. Isso ocorre na medida em que é notória a debilidade de meios que a PGFN dispõe para exercer de forma adequada e eficiente as novas atribuições decorrentes do dispositivo ora atacado.
Conclui-se, pela noção de eficiência aclarada pela doutrina, e pelo exame dos fatos decorrentes da aplicação da norma, que a ofensa ao princípio constitucional da eficiência resta insuperável. O dispositivo atacado transfere encargos da Procuradoria-Geral Federal para profissionais treinados em matéria distinta, o que denota a existência futura de uma problemática extensa, pois os Procuradores da Fazenda Nacional estarão recebendo deveres apartados de seu treinamento e especialidade, além de excessivos à sua própria estrutura organizacional.
Dito de outra maneira, enquanto o ideal normativo visa a eficiência (no caso, relacionando-se com a racionalização da atividade arrecadatória da administração financeira da União), os efeitos práticos da aplicação do §1° do art. 16 da Lei nº 11.457/07 vão absurdamente de encontro a esse ideal, na medida em que obstaculizam essa eficiência pela impossibilidade de a PGFN atender, a partir de 01 de abril de 2008, ao alargamento funcional proposto.
Pode-se cogitar também, como referido, a ofensa ao princípio da continuidade do serviço público. Caso mantida a transferência de trabalho para a PGFN sem existirem condições materiais para atender a esse alargamento de afazeres, simplesmente se criará cenário de impossibilidade fática de desempenho desta função essencial à justiça. E tal resultado é extremamente prejudicial não só para o Estado como também para a sociedade, pois é de todos o interesse na proteção dos recursos públicos.
Assim, a resposta mais adequada a ser proferida pelo Poder Judiciário, por meio desta Corte, para corrigir o descompasso entre a atuação do legislador e o princípio constitucional da eficiência, é a declaração de inconstitucionalidade do termo inicial fixado no § 1º do art. 16 da Lei nº 11.457/07, sendo declarada como data de início das citadas transferências aquela derivada da reestruturação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, nos moldes dos artigos 18 e 19 da Lei nº 11.457/07.
C.2. Ofensa aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade
Ao lado da violação ao princípio constitucional da eficiência cabe demonstrar que o prazo estipulado no § 1º do art. 16 da Lei nº 11.457/07 ofende também os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, o que reforça o pedido de declaração de inconstitucionalidade do segmento normativo apontado.
Humberto ÁVILA, ao tratar do tema dos princípios, faz menção aos postulados normativos aplicativos. Tais postulados caracterizam-se como metanormas, situando-se em um grau elevado às demais normas, por estruturarem a aplicação destas. Os postulados normativos, então, são entendidos como "deveres estruturais, isto é, como deveres que estabelecem a vinculação entre elementos e impõem determinada relação entre eles." [47] São exemplos de postulados específicos a igualdade, a razoabilidade e a proporcionalidade. As duas últimas interessam para o caso em exame.
ÁVILA enfatiza três concepções da razoabilidade:
"Primeiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. Segundo, a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir. Terceiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas." [48] -g.n.-
Por sua vez, LAVAGNA afirma ser a razoabilidade indispensável para realização concreta dos comandos normativos abstratos. Assim desdobra-se o princípio, para o autor:
"a) a correspondência com situações e contextos humanos; b) o juízo de finalidade, que estabeleceria parâmetro de redução do fim da lei ao fim constitucional prevalecente; c) o juízo de pertinência ou de instrumentalidade que deveria existir entre os meios normativos assumidos e os fins a atingir; e d) o juízo de congruência, sobre a idoneidade – técnica ou valorativa dos meios escolhidos pelo legislador para realizar os fins constitucionais." [49] -g.n.-
No mesmo sentido, San Tiago DANTAS [50] desenvolveu o princípio da razoabilidade em máximas, interessando por ora referir a máxima da "evidência e compatibilidade com a natureza das coisas":
"(…) importa em dever de o legislador adotar leis que sejam conformes ou compatíveis com a ‘essência’ ou ‘natureza’ da coisa, do homem, das relações sociais, das relações econômicas, das relações familiares, enfim, do objeto regulado, valendo-se das contribuições das ‘ciências auxiliares ao Direito’. Não se pode enxergar aqui uma tentativa de hipostasiar determinada concepção de mundo ou ‘naturalizar’ relações de dominação. Cuida-se, ao contrário, de duas ordens dirigidas ao legislador: uma, de que se informe sobre o objeto a ser disciplinado, conheça-o em sua lógica e dinâmica; outra, que evite artificialismos. Ambas que se projetam no tempo para evitar ineficácia legislativa futura." [51] -g.n.-
Todas as referências colhidas explicitam que as normas devem recorrer a um suporte empírico existente. Significa dizer que a normativa deve ser examinada com seu entorno. "Daí se falar em dever de congruência e de fundamentação na natureza das coisas (…). Desvincular-se da realidade é violar os princípios do Estado de Direito e do devido processo legal." [52]
Com efeito, "A razoabilidade como dever de harmonização do Direito com suas condições externas (dever de congruência) exige a relação das normas com suas condições externas de aplicação, quer demandando um suporte empírico existente para a adoção de uma medida, quer exigindo uma relação congruente entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada." [53]
Luís Roberto BARROSO esboça que "é razoável o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar" [54]. Conseqüentemente, uma disposição normativa que não esteja em harmonia com a realidade circundante não será razoável.
Gustavo Ferreira SANTOS entende que a razoabilidade "age como legitimadora dos fins que o legislador ou o administrador escolhem para o seu agir." [55] O autor prossegue, afirmando a possibilidade de controlar a constitucionalidade dos atos estatais com base no princípio da razoabilidade:
"A razoabilidade necessita escorar-se no Texto Constitucional, sendo imprescindível a sua derivação da cláusula do devido processo, pois o reconhecimento de uma inconstitucionalidade baseada no princípio da razoabilidade não necessariamente será referida a um outro dispositivo constitucional." [56] -g.n.-
"(…) a irrazoabilidade de um ato não é o resultado da ofensa explícita a outras normas constitucionais, bastando não ser o ato razoavelmente justificável no sistema. Uma lei determinada que seja assim caracterizada será considerada inconstitucional pela pura e simples ofensa ao conteúdo material da cláusula do devido processo legal" [57].
Importa reforçar, então – considerando o necessário exame da razoabilidade, no sentido da congruência da norma com a realidade –, que "até mesmo no chamado controle abstrato de normas não se procede a um simples contraste entre a disposição do direito ordinário e os preceitos constitucionais. Ao revés, também aqui fica evidente que se aprecia a relação entre a lei e o problema que se lhe apresenta em face do parâmetro constitucional." [58]
Relevante considerar "a realidade normada, os fatos que embasam (tornam verossímil) o comando textual normativo." [59]O concreto é fundamental para a compreensão do direito; deve-se permitir o influxo dos fatos na norma jurídica. Nesse sentido afirma Eros GRAU "a importância do relato dos fatos (= narrativa dos fatos a serem considerados pelo intérprete) para a interpretação." [60] Deve haver uma correspondência entre "a disciplina legal ou a sua justificativa e o âmbito material de incidência, os fatos e situações por ela pressupostos ou a sua configuração na realidade" [61].
No mesmo passo, BARROSO e BARCELLOS enfatizam a importância, para a interpretação, dos fatos e das conseqüências práticas da incidência da norma:
"Embora princípios e regras tenham uma existência autônoma em tese, no mundo abstrato dos enunciados normativos, é no momento em que entram em contato com as situações concretas que seu conteúdo se preencherá de real sentido. Assim, o exame dos fatos e os reflexos sobre eles das normas identificadas na primeira fase (detecção, no sistema, das normas relevantes para a solução do caso) poderão apontar com maior clareza o papel de cada uma delas e a extensão de sua influência." [62] -g.n.-
A interpretação, portanto, deve considerar o caso concreto. Isso significa afirmar que a validade da norma é aferida não mais apenas no plano abstrato, mas também perquirindo o eventual resultado decorrente. A solução adequada, em conformidade com a vontade constitucional, somente pode ser alcançada analisando os elementos do caso concreto, sendo importante considerar o impacto do resultado sobre a realidade [63].
A partir da interpretação concreta da lei, atribuindo relevância a aspectos econômicos e sociais, pode-se melhor reconhecer os limites da tutela jurídica prevista [64].
Nesse sentido, ressalta ÁVILA que "Nem toda norma incidente é aplicável. É preciso diferenciar a aplicabilidade de uma regra da satisfação das condições previstas em sua hipótese. Uma regra é aplicável a um caso se, e somente se, suas condições são satisfeitas e sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência de um princípio que institua uma razão contrária." [65]
Esclarece ÁVILA que "a razoabilidade serve de instrumento metodológico para demonstrar que a incidência da norma é condição necessária mas não suficiente para sua aplicação. Para ser aplicável, o caso concreto deve adequar-se à generalização da norma geral." [66] Aplicando a lição ao caso em exame, tem-se que o segmento de norma ora impugnado, apesar de estar no bojo de norma que prevê adequadamente a transferência de administração judicial de receitas para a União, a cargo da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, não pode ser aplicado, pois restam insatisfeitas as condições previstas em sua hipótese (falta de estruturas para trabalho).
Ainda, a razão que motiva a própria regra – a eficiência – será violada se aplicada a norma. É por isso que se admite a existência de "situações em que uma regra, perfeitamente válida em abstrato, poderá gerar uma inconstitucionalidade ao incidir em determinado ambiente ou, ainda, há hipóteses em que a adoção do comportamento descrito pela regra violará gravemente o próprio fim que ela busca alcançar." [67]
Pode-se notar que o legislador não percebeu adequadamente o objeto disciplinado ao estabelecer a data de 01 de abril de 2008 como adequada para a transferência de atribuições à PGFN. Desconsiderou a realidade de falta de condições fáticas de trabalho dos Procuradores. Assim, o § 1º do art. 16 ora em questão, especificamente quanto ao termo determinado, não é compatível com a realidade, desrespeitando, portanto, o princípio da razoabilidade.
É plausível conectar razoabilidade e proporcionalidade [68]. Como nota José Adércio Leite SAMPAIO, "O regramento proporcional, tanto em sentido vulgar, quanto em sentido técnico, é elemento indispensável de todo legislador razoável." [69] Aproveitando a constatação de que o termo estabelecido no § 1º do art. 16 da Lei nº 11.457/07 não se reveste de razoabilidade, diga-se também que não é proporcional ao fim pretendido.
O princípio da proporcionalidade é norma constitucional não escrita, derivada do Estado Democrático de Direito (na doutrina germânica), do princípio do devido processo legal (entendimento norte-americano) ou mesmo do princípio da isonomia (como entende, por exemplo, Paulo BONAVIDES [70]). Apesar de ser princípio implícito, é amplamente aceito como parâmetro para o controle de constitucionalidade. Nesse sentido, Willis Santiago GUERRA FILHO afirma que
"A ausência de uma referência explícita ao princípio no texto atual (da) Carta não representa obstáculo algum ao reconhecimento de sua existência positiva, pois ao qualificá-lo como ‘norma fundamental’ se lhe atribui o caráter ubíquo de norma a um só tempo ‘posta’ (positivada) e ‘pressuposta’ (na concepção instauradora da base constitucional sobre a qual repousa o ordenamento jurídico como um todo)." [71]
O Supremo Tribunal Federal acompanha as mudanças que vêm, há certo tempo, reconfigurando o discurso constitucional [72]. Por isso a ponderação, a compreensão da Constituição como ordem normativa comportando regras e princípios e o princípio da proporcionalidade como meio de testar a racionalidade das medidas tomadas pelo legislador não implicam intervenções estrangeiras ao universo argumentativo presente nas decisões da Excelsa Corte.
Expressa referência ao princípio da proporcionalidade aconteceu em diversas decisões prolatadas pelos ilustres Ministros do STF. Os exemplos abundantes demonstram que a proporcionalidade apresenta-se já como parâmetro de controle de constitucionalidade incorporado ao cotidiano da atividade jurisdicional da Suprema Corte brasileira.
Para entender a idéia da proporcionalidade, é interessante a afirmação de André Ramos TAVARES: "A proporcionalidade, numa primeira aproximação, é a exigência de racionalidade, a imposição de que os atos estatais não sejam desprovidos de um mínimo de sustentabilidade." [73]
Nesse sentido, tem-se que os atos estatais, considerando as circunstâncias do caso concreto (Alexy [74]) devem, sob pena de invalidade, ser adequados (apropriados), necessários (exigíveis) e proporcionais (justa medida). É sob tal constatação que Raquel STUMM afirma que o princípio da proporcionalidade "Possui uma função negativa, quando limita a atuação dos órgãos estatais, e uma função positiva de obediência ao conteúdo do princípio da proporcionalidade" [75], composto pelos subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
ÁVILA traz uma útil síntese do princípio:
"O postulado da proporcionalidade exige que o Poder Legislativo e o Poder Executivo escolham, para a realização de seus fins, meios adequados, necessários e proporcionais. Um meio é adequado se promove o fim. Um meio é necessário se, dentre todos aqueles meios igualmente adequados para promover o fim, for o menos restritivo relativamente aos direitos fundamentais. E um meio é proporcional, em sentido estrito, se as vantagens que promove superam as desvantagens que provoca. A aplicação da proporcionalidade exige a relação de causalidade entre meio e fim, de tal sorte que, adotando-se o meio, promove-se o fim." [76] -g.n.-
Diante da orientação que se firma no Pretório Excelso, o teste a ser realizado para a aferição da constitucionalidade da lei envolve o transitar por três níveis de análise: (i) adequação, (ii) necessidade e (iii) proporcionalidade em sentido estrito. Verifica-se, neste teste, que o termo inicial estabelecido no § 1º do artigo 16 da Lei nº 11.457/07 não passa sem mostrar incompatibilidade. Seu defeito é não ser meio adequado para alcançar o fim pretendido pela norma: maior eficiência na administração e arrecadação de tributos federais.
No exame da adequação, "meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objectivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim" [77]. O que significa dizer que os meios manejados devem manter uma equação razoável com o fim almejado; devem, antes de tudo, ser adequados para alcançar o fim pretendido.
Com efeito, determinar que a partir de 1º de abril de 2008 ocorreria a transferência integral, para a dívida ativa da União, das dívidas do INSS e do FNDE, ocasionando aumento no volume de trabalho da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, sem que existam condições fáticas para a realização deste trabalho, é nitidamente violar o princípio da proporcionalidade. Sobrecarregar um órgão operando já em condições humanas e materiais insuficientes é absolutamente inadequado, ainda mais caso se pretenda, com isso, alcançar maior eficiência. Trata-se de disparate a ser corrigido pelo Judiciário. Mostra-se, então, pertinente esta Ação Direta de Inconstitucionalidade.
O Supremo Tribunal Federal já considerou a proporcionalidade e a razoabilidade como parâmetros para a aferição da constitucionalidade de norma:
O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador." (ADI/MC 1407-DF, julgada em 07/03/96, sendo relator o Ministro Celso de Mello. DJ 24/11/2000, p. 86) -g.n.-"
Considerando os argumentos tecidos, e também os precedentes desta Corte, tem-se que a solução adequada para o caso em apreço é a declaração de inconstitucionalidade da data fixada no § 1º do art. 16 da Lei nº 11.457/07, por não atender à realidade de insuficiência das condições humanas e materiais de trabalho da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, e também por não ser proporcional (ausência de adequação entre meio – data de início da transferência de atribuições – e fim – eficiência). De tal modo, coerente com a declaração de nulidade parcial do § 1º é a determinação, pela Corte, de que o momento adequado para o início da transferência de atribuições é a devida reestruturação da PGFN, tal como estipulou o legislador, nos arts. 18 e 19 da Lei nº 11.457/07.