Quando uma sociedade experimenta momentos de intenso conflito e ataque às suas estruturas é natural a imersão de preocupações e necessidades anteriormente sequer imaginadas.
Nesse sentido, não se devem desconhecer as decorrências do recente surgimento, no Brasil, do fenômeno da defesa, por parcela da população, de ruptura institucional e estabelecimento de modelo autoritário de poder. Ao passo em que há movimento estruturado, de forma muito evidente, na defesa da ruptura do pacto democrático, necessária resposta afirmando os valores democráticos.
Comparativamente, é interessante observar a experiência da Alemanha após segunda guerra mundial, onde floresceu movimento de verdadeiro ativismo democrático, com o objetivo de reestruturar as instituições e desenvolver valores que foram, ao longo do período nazista, corroídos, com a paulatina acomodação da sociedade à experiência do Estado totalitário.
No caso brasileiro atual, felizmente, não se atingiu o nível extremo da experiência nazista, porém, vários indicativos de parcial acomodação da sociedade com mecanismos autoritários podem ser constatados, desde o apoio de parcela importante da sociedade a evidente caso de lawfare, até mesmo à defesa expressa da ruptura institucional e democrática, com ações violentas de invasão ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal.
A partir dessa realidade, não há nada de reprovável no surgimento de preocupações com o implemento de ações afirmativas da democracia, passando elas a pautar o funcionamento do Estado, com objetivo de superar estruturas de pensamento e práticas corrosivas das instituições, com capacidade produtora do acomodamento social com a lógica autoritária.
Em verdade, referida forma de estruturar as ações estatais está em consonância com a Constituição Federal, fundamentada na democracia, desde a expressa proclamação do seu parágrafo único do artigo 1º.
Nessa toada, a resistência de alguns setores com a recente medida do Ministro-Chefe da Advocacia Geral da União, no sentido de criar uma Procuradoria Especializada na Defesa da Democracia, é preocupante, pois, justamente demonstra o quanto ela é necessária, na medida em que patenteia o já normalizar da corrosão dos valores democráticos, por parcela significativa da sociedade brasileira, igualmente, demonstra como essa corrosão é objetivada por grupos e pessoas inseridas nos meios de comunicação e nas estruturas de poder.
Com efeito, a criação de uma Procuradoria de Defesa da Democracia, no âmbito da AGU, responsável pela defesa da União Federal, suas autarquias e fundações é algo não somente louvável como emergencial.
A proposta em comento, denota a rápida percepção de necessidade atual, sendo passo inaugural e visionário da estruturação de uma democracia afirmativa no Brasil, fundamental em um país submetido à instabilidade institucional, ao lawfare, aos ataques baseados em informações falsas, pulverizadas por meio das redes sociais e, mesmo, às ações violentas contra as estruturas de poder nacional.
Convém destacar ser absolutamente falso, vincular a ideia da criação de Procuradoria de Defesa da Democracia, a qualquer mecanismo de censura, sendo a tentativa de estabelecer esse tipo de simetria absolutamente eivada de má-fé.
A questão é simples, em um Estado Democrático não são todas as ideias passíveis de defesa, como, por exemplo, não é aceitável defender o nazismo e suas ações, não devendo o Estado permanecer passivo quando esse tipo de ideias é propagado, sob pena de se converterem em ações reações, como, recentemente, os discursos de invasão do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, propagados nas mídias sociais, tornaram-se reais, em ação de Golpe de Estado.
Defender um golpe de Estado é crime, regularmente tipificado, o que impõe ao Estado obrigação de ação, sendo que o financiamento de propagandas, mensagens, canais de comunicação, difusores de conteúdo com o objetivo da produção de referido resultado também o é, de sorte que não existe censura quando se combatem os mecanismos facilitadores e garantidores dessas ações delitivas, as quais objetivam a própria destruição das bases estruturantes da nação brasileira.
Em verdade, a lógica retórica de afirmar censura quando meios facilitadores da prática de graves delitos contra o Estado Democrático são atingidos, é eivada de indisfarçável objetivo corruptor das estruturas estatais e da sociedade, pois exclui das possibilidades de ação estatal, situações produtoras da fragilização democrática.
Não se descuide ser noticiada a existência de riscos à democracia também em outros pontos do mundo, o que faz a iniciativa da AGU, na criação de uma Procuradoria de Defesa da Democracia, ser precursora de um movimento, o qual tende a assumir características globais, o do Estado dotado de ativismo democrático.
Igualmente, o argumento de que a Procuradoria de Defesa da Democracia melhor se amolda ao Ministério Público Federal e não à Advocacia da União é raso, pois, descuida que dentro de suas competências específicas, os diferentes órgãos jurídicos do Estado podem atuar na defesa democrática, máxime em estrutura lógica baseada no comportamento afirmativo.
Como já tive oportunidade de analisar no artigo A missão do advogado público na defesa do estado democrático, publicado na Revista CEJ 55, o compromisso democrático dos membros da Advocacia Pública no Estado brasileiro é referencial de validade de sua própria atuação, ao passo que como também já apontei no artigo, A fragilidade dos filtros ao exercício do poder punitivo no âmbito administrativo disciplinar, publicado na Revista CEJ 81, nos últimos anos, essa noção não só se viu comprometida, como as próprias estruturas internas no âmbito da Advocacia Pública experimentaram claros movimentos do modelo autoritário de Estado e perseguição ideológica, travestidos de punições disciplinares.
Nesse viés, a contribuição da Procuradoria de Defesa da Democracia, na Advocacia Pública Federal brasileira, é ímpar, sob vários aspectos, como a democratização interna do próprio órgão, a geração de parâmetro áureo a inspirar demais órgãos da Administração Pública brasileira e a consolidação inflexível dos Direitos Humanos, afora, a possibilidade de rápida atuação judicial, quando praticados atos significativos de risco ou ameaça à democracia, o que facilmente se insere nas funções da AGU, como órgão de advocacia vinculado à atuação pautada nos valores democráticos.
Afora essas consequências, visualizáveis, em uma primeira reflexão, seguramente a prática poderá trazer muitas outras igualmente positivas, defendendo a sociedade, do que Zaffaroni tem apontado como “crise na democracia”, justamente combatível pelas ações afirmativas dos direitos humanos, das regras processuais e decisórias democráticas, entre outros elementos fundamentais.
Enfim, as críticas à proposta do novo Advogado-Geral da União, não encontram base mínima que lhes dê sustentação, somente transparecendo a preocupante tendência atual, na sociedade brasileira, de normalização do abuso.