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Homotransfobia e injúria racial.

Agenda 23/08/2023 às 13:47

Com a Lei nº 14.532, o art. 140, §3º, CP agora é um crime contra a honra. O STF decidiu que ofensas de homotransfobia configuram racismo, não mais injúria-preconceito.

Com o advento da figura da “Injúria Racial” agora prevista no artigo 2º-A da Lei 7.716/89, com nova redação dada pela Lei 14.532/23, o STF proferiu decisão, em data de 21.08.2023, no sentido de que ofensas relativas à denominada “homotransfobia” passam a configurar Crime de Racismo descrito no dispositivo acima mencionado e não mais a figura da “Injúria – Preconceito”, conforme disposto no artigo 140, § 3º, CP (ADO 26 e MI 4.733). 1

Já nos manifestamos a respeito dessa possível adoção de entendimento pelo Supremo Tribunal Federal, de acordo com suas manifestações antecedentes sobre o tema da “homotransfobia” e do Racismo. 2

No que diz respeito ao artigo 140, § 3º., CP, eram esperados dois entendimentos:

Seria bom lembrar (e seria bom que lembrassem também os mencionados Tribunais Superiores) o fato aduzido por Sannini e Gilaberte de que o STF “enxerga no termo racismo, constitucionalmente empregado, algo que vai muito além das questões de raça, consoante o exposto no HC 82.424 (Caso Ellwanger, 2003)”. 4 Como bem destacam os autores, de acordo com o entendimento do STF, “a palavra ‘racismo”, contextualizada na Constituição Federal de 1988, deve ser entendida como “um racismo social, que relega certas categorias de pessoas a uma situação de ‘semicidadãs’”. 5 Nesse passo não há elemento diferencial entre a discriminação derivada do artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 e aquela oriunda do artigo 140, § 3º., CP, tanto é fato que emanam da mesma fonte (antigo artigo 140, § 3º., CP). Se é que se pode esperar uma sistemática jurisprudencial ou coerência decisória, há que reconhecer que a Lei 14.532/23 em nada alterou o quadro que levou o STF e também o STJ a essas posições, não se justificando qualquer mudança interpretativa.

A condição de crime de racismo, com consequentes inafiançabilidade e imprescritibilidade do artigo 140, § 3º., CP prosseguiria na forma de um posicionamento jurisprudencial praticamente incontornável, enquanto que a “Injúria Racial” prevista agora no artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 passaria de um mero entendimento jurisprudencial para uma previsão expressa da lei em consonância com o preceito constitucional do artigo 5º., XLII, CF.

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Embora sustentemos firme dissenso com relação a alterações legislativas procedidas à fórceps pela via jurisprudencial, especialmente na seara penal, 6 o reconhecimento da figura do artigo 140, § 3º., CP como racismo é fato consumado, independente do seu mérito. As decisões são não vinculantes, mas na prática, chegando o caso às Cortes Superiores, prevalecerá o entendimento delas. Dessa forma, adotamos como mais correta a posição exposta no item “b” acima, a qual, a nosso ver, deveria prevalecer. Mesmo porque, ainda que por caminhos tortuosos, seria uma forma de diminuir a violação à proporcionalidade produzida pela Lei 14.532/23 ao deixar parcela da “Injúria Preconceito” na vala comum do Código Penal.

Acrescente-se, por oportuno, com as mesmas ressalvas e dissenso relativos às violações da Separação de Poderes e do Princípio da Legalidade, que também não se vê motivação alguma para que, com o advento da Lei 14.532/23 se afaste a condição reconhecida pelo STF de crime de racismo, nos casos de condutas previstas na Lei 7.716/89 por preconceito, discriminação ou segregação homotransfóbica. Embora a Lei 14.532/23 tenha perdido a oportunidade de tratar legalmente da questão, dando fim a uma analogia “in mallam partem” empregada na área penal por via jurisprudencial espúria, não se pode dizer que o surgimento dessa nova legislação tenha alterado em nada as razões de decidir do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 26, de relatoria do Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal. Discordar do ativismo judicial vilipendiador da legalidade e da constitucionalidade, não muda o fato de que essa decisão foi proferida na prática e não sofre qualquer espécie de influência da Lei 14.532/23. Pode surgir a dúvida, no caso da “Injúria”, se deveria continuar sendo aplicado o artigo 140, § 3º., CP, que era o vigente à época da decisão do STF quanto ao tema, ou se agora seria aplicável o novel artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 com nova redação dada pela Lei 14.532/23. A nosso ver, com a previsão da “Injúria Racial” na Lei de Racismo, a homotransfobia passa a configurar infração ao artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 porque na decisão do Pretório Excelso o que se afirma é que se deve aplicar a Lei de Racismo, com seus tipos penais respectivos, para a punição de eventuais condutas homotransfóbicas. Se antes se aplicava o artigo 140, § 3º., CP era por falta de uma previsão específica na Lei de Racismo e em virtude de outra decisão do STF que então considerou a “Injúria Preconceito” do Código Penal também como um crime de Racismo. Agora essa conjugação de jurisprudências e diplomas legais não é mais necessária, bastando cumprir o teor da decisão judicial que reconheceu as condutas homotransfóbicas como passíveis de tipificação na Lei 7.716/89 de acordo com seus tipos penais. 7 É preciso deixar claro, porém, que quem praticou “Injúria Racial ou Preconceito” antes da vigência da Lei 14.532/23 continuará respondendo nas penas mais brandas do artigo 140, § 3º., CP, tendo em vista que o artigo 2º. – A, da Lei 7.716/89 se apresenta como “novatio legis in pejus” sem possibilidade de retroação.

Quanto à questão de ser o crime de ação penal pública incondicionada, afastando-se o prazo decadencial e a necessidade de representação do ofendido, sabe-se que também pode haver discordância, pois há quem entenda que isso violaria o disposto no artigo 145, Parágrafo Único, “in fine”, CP. No entanto, não nos é compreensível como poderia um crime imprescritível ter a punibilidade extinta em 6 (seis) meses por decadência. Não obstante, é preciso ter em mente que, mesmo com a adoção da posição do item “b” essa discussão ainda restará indefinida (isso para o artigo 140, § 3º. CP, já que na Lei de Racismo a ação é induvidosamente pública incondicionada). Toda essa celeuma desnecessária se dá primeiro por uma ingerência indevida do Judiciário na seara legal e depois por uma atabalhoada alteração legislativa feita pela Lei 14.532/23.

Nesse quadro não é surpresa alguma, portanto, que o STF tenha decidido estender o tratamento da “Injúria Racial” ora prevista no artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 aos casos de “homotransfobia”. Na verdade, conforme exposto, essa já era nossa previsão, imaginando que houvesse uma posição coerente dos Tribunais Superiores com relações às suas decisões anteriores.

Fato é que assim como do bem, da verdade e da correção se podem esperar coerentemente bons, verdadeiros e corretos frutos, por seu turno e também com a mesma coerência, de um mal, do erro e da incorreção, somente se podem esperar, coerentemente, frutos maus, equivocados e incorretos. A coerência é uma virtude relativa. Sua relação com o bem produz o bem, mas sua relação com o mal produz o mal. Assim como se podem esperar de um homem manso e pacífico atitudes de mansidão e paz, também se pode ter a expectativa de que um homem violento e beligerante atue de forma agressiva e conflituosa.

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A partir do momento em que STF e STJ passaram a ingerir no seio do Direito Penal, alterando a legislação pela via jurisprudencial em atuação espúria violadora do Princípio da Legalidade, essa posição, por coerência maléfica e deletéria irá se reproduzir necessariamente, ao menos até que o ciclo de erro seja quebrado e corrigido mediante uma opção legislativa (e não jurisprudencial) clara e inequívoca.


REFERÊNCIAS

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Nova Lei de Racismo de Acordo com a Lei 14.532/23. Leme: Mizuno, 2023.

PEREIRA, Jeferson Botelho. Nova roupagem do crime de injúria racial. Disponível em https://jus.com.br/artigos/101958/nova-roupagem-do-crime-de-injuria-racial-repercussoes-processuais-no-deslocamento-topografico-da-figura-tipica, acesso em 23.08.2023.

SANNINI, Francisco, GILABERTE, Bruno. Lei n. 14.532/23 e o combate ao racismo. Disponível em https://jus.com.br/artigos/101994/lei-14-532-23-e-o-combate-ao-racismo, acesso em 23.08.2023.

SILVA, César Dario Mariano da. O STF e a Espada de Dâmocles: a imprescritibilidade da injúria racial. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-nov-11/cesar-dario-stf-imprescritibilidade-injuria-racial , acesso em 23.08.2023.

STF, ADO 26. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240 , acesso em 23.08.2023.

SUPREMO estende entendimento de crime de injúria racial à transfobia. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-ago-21/stf-estende-entendimento-crime-injuria-racial-transfobia, acesso em 23.08.2023.


Notas

1 SUPREMO estende entendimento de crime de injúria racial à transfobia. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-ago-21/stf-estende-entendimento-crime-injuria-racial-transfobia, acesso em 23.08.2023.

2 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Nova Lei de Racismo de Acordo com a Lei 14.532/23. Leme: Mizuno, 2023. Obra em fase de lançamento. No prelo.

3 Neste sentido: PEREIRA, Jeferson Botelho. Nova roupagem do crime de injúria racial. Disponível em https://jus.com.br/artigos/101958/nova-roupagem-do-crime-de-injuria-racial-repercussoes-processuais-no-deslocamento-topografico-da-figura-tipica, acesso em 23.08.2023. “Importante observar que a partir desse instante, se a imputação consistir em elementos referentes à religião, condição de pessoa idosa ou com deficiência, o crime será contra a honra, § 3º., do CP; ao passo que se a imputação for em razão de elementos referentes à raça, cor, etnia ou procedência nacional o crime será de Racismo, Lei n. 7.716/89”. Coerentemente com seu pensamento afirma também o autor que em casos de infração ao artigo 140, § 3º., CP por ofensas religiosas, etárias ou capacitistas, poderá o Delegado de Polícia arbitrar fiança em caso de Prisão em Flagrante, nos termos do artigo 322 e 325, CPP. Claramente, para Pereira, as decisões do STJ e do STF deixam de ser aplicadas aos casos relegados ao Código Penal.

4 SANNINI, Francisco, GILABERTE, Bruno. Lei n. 14.532/23 e o combate ao racismo. Disponível em https://jus.com.br/artigos/101994/lei-14-532-23-e-o-combate-ao-racismo , acesso em 23.08.2023.

5 Op. Cit. Sannini e Gilaberte também entendem que não há óbice para que o crime do artigo 140, § 3º., CP prossiga sendo reconhecimento como uma forma de racismo com base na jurisprudência do STJ e do STF e, assim sendo, imprescritível e inafiançável.

6 De acordo com nossas críticas veja-se à época a manifestação de Silva: SILVA, César Dario Mariano da. O STF e a Espada de Dâmocles: a imprescritibilidade da injúria racial. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-nov-11/cesar-dario-stf-imprescritibilidade-injuria-racial , acesso em 23.08.2023.

7 Observe-se o disposto no textualmente na ADO 26 STF: – “Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social , ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989(grifo nosso). Cf. STF, ADO 26. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240 , acesso em 23.08.2023.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Homotransfobia e injúria racial.: A coerência do erro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7357, 23 ago. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105735. Acesso em: 22 dez. 2024.

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