4. EFEITOS
Segundo a disposição do art. 717 do CPC, decretado o usufruto, perde o executado o gozo do bem até o pagamento da dívida e de seus acessórios. Assim, o executado perderia o direto aos frutos do bem (gozar = fruir), mas o usufruto judicial pode implicar também perda do direito ao uso do bem pelo executado.
De sumo proveito para o esclarecimento dos conceitos básicos acerca dessa questão são as seguintes lições de Caio Mário da Silva Pereira (análise de direito material) e de Pontes de Miranda (análise em comentário à norma do art. 717, do CPC):
"O direito de usar – jus utendi - consiste na faculdade de colocar a coisa a serviço do titular, sem modificação de sua substância. O dono a emprega em seu próprio benefício, ou no do terceiro. Serve-se da coisa. Mas é claro que também pode usa-la, guardando-a ou mantendo-a inerte. O direito de gozar – jus fruendi – realiza-se essencialmente com a percepção dos frutos, sejam os que da coisa naturalmente advêm, como ainda os frutos civis" [96]
"A fruição pode ser admitida sem uso; e o uso, sem a fruição. Donde ser falsa a regra fructus sine usu esse non potest. Em diferentes lugares, as leis romanas a desmentem. Quem usa retira da coisa utilidades que não são os frutos; quem frui pode não usar. O usufruto compreende a fruição e o uso; mas é a destinação da coisa, não só econômica, que determina modo e quantidade ao fruir e ao usar." [97]
O usufruto judicial é, portanto, daquelas hipóteses em que o nu-proprietário, no caso o executado, como já afirmamos, deve perder não só o direito de fruição (gozo), mas também o direito de uso, para assim possibilitar, ou mesmo maximizar, os rendimentos do bem.
Assim o entendimento manifestado de maneira bastante esclarecedora por Maria Antonieta Zanardo Donato:
"Analisando-se as disposições concernentes ao usufruto de imóvel, parece-nos que a fruição direta estaria vedada ao credor, eis que a lei coloca-o sempre em posição de credor desses frutos ou rendimentos, e não na posição de produtor dos mesmos.
Entretanto, entendemos ser possível ao credor, a favor de se instituiu o usufruto de imóvel, a possibilidade de vir a utilizar ou servir-se do bem diretamente, a fim de auferir os rendimentos ou os seus frutos.
Nosso posicionamento se dá por duas razões: se o credor é nomeado administrador da coisa, deverá procurar mantê-la como está e não alterá-la, sob pena de, em caso de culpa ou dolo, responder pessoalmente pelos prejuízos causados ao devedor.
A segunda razão reside no fato de vislumbrarmos que o direito de gozo conferido ao usufrutuário só poderá ser exercido se lhe for transferida a posse do imóvel, pois, do contrário, estar-se-ia em face da simples adjudicação de rendimentos em favor do credor, refugindo totalmente ao que parece ser a ratio legis.
[...]
O direito de gozo outorgado ao credor em razão do usufruto de imóvel compreenderá a sua posse, a sua administração – se assim determinado pelo juízo – podendo competir-lhe ainda o uso da coisa. A admissão do direito ao uso da coisa pelo credor será destinada unicamente á produção dos frutos ou rendimentos, consubstanciando-se porquanto num jus utendi específico á promoção dos rendimentos da coisa. Seria, em verdade, possibilitar-se a fruição da coisa, ainda que para tanto fosse necessário outorgar o seu uso ao credor." [98]
Diante disso, nos parece equivocado o entendimento segundo o qual o bem deve estar produzindo renda para que haja a instituição do usufruto judicial [99], pois o imóvel pode muito bem estar desocupado, e caso esteja ocupado pelo executado, outra será a razão para a possível negativa do usufruto.
Nessa linha de pensamento, o juiz deve agir com acurada cautela ao analisar os pressupostos do art. 716, do CPC, pois caso a perda desses direitos reais possa causar ao devedor gravosidade em valor maior do que o devido, deve ser afastado esse meio de pagamento em execução (exemplo do devedor que reside no imóvel) – a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo é permeada de precedentes nesse sentido [100].
Nada impede, portanto, que o próprio credor utilize o bem em abatimento da dívida, desde que já instituído o usufruto judicial.
4.2. Ineficácia dos atos de disposição do domínio e subsistência dos efeitos da penhora sobre o bem
O bem permanece sob os efeitos da penhora até a extinção da dívida, isto é, até o término do seu pagamento.
Ovídio Batista da Silva sustenta que a alienação não seria considerada ineficaz por fraude à execução, pois o usufruto judicial, por força da seqüela, seguiria o bem [101].
Araken de Assis, entretanto, a nosso ver com razão, discorda dessa posição sob o fundamento principal de que, considerada a característica pro solvendo do usufruto judicial, esse mecanismo pode se revelar inapto para solver a obrigação, caso em que ao exeqüente resta o direito de levar o bem à hasta pública.
Por conseguinte, não haveria como se conceber alienação eficaz do bem na pendência do usufruto, devendo persistir esse efeito da penhora sobre o imóvel até a quitação da dívida [102].
5. CONCLUSÃO
As conclusões acerca dos tópicos especificamente estudados sobre o pagamento ao exeqüente com usufruto de móvel ou imóvel já foram oportunamente expressadas no corpo do trabalho. Cumpre-nos nesse tópico tecer conclusão geral acerca do instituto estudado, além de apresentarmos nossa proposta de lege ferenda para seu aperfeiçoamento.
Verificamos que o art. 716 é norma que confere ao juiz o exercício da atividade judicante por excelência, ou seja, a ponderação de princípios postos em colisão.
No sistema atualmente consagrado na legislação, ou seja, com a desnecessidade de concordância do executado para instituição do usufruto, resta às partes em contraditório e ao juiz em seu livre convencimento motivado, estabelecerem ou não a presença dos requisitos do art. 716 do CPC, não havendo rigidez quanto ao momento ou outros requisitos (salvo a necessidade de requerimento do exeqüente), sendo que o art. 716 a todo questionamento atrai, como um verdadeiro "buraco negro".
De lege ferenda, entendemos que deve ser dispensada a exigência do requerimento do exeqüente, tanto para o caso de bem móvel quanto de bem imóvel, pois já há a possibilidade de este apresentar impugnação justificada, sempre tendo como norte a ponderação do art. 716, do CPC. Além disso, deve ser o termo "sentença", do art. 719, caput, substituído por "decisão", bem como deve ser prevista expressamente no art. 722, §1º, a necessidade de averbação do usufruto de bens móveis sujeitos a registro (ex: automóveis e embarcações).
A conclusão que se extrai do estudo empreendido é a de que o usufruto judicial é instituto que embora muito pouco prestigiado, se mostra de inafastável proveito em situações práticas específicas das mais diversas. Por tal motivo, o instituto merece melhor atenção da doutrina e dos operadores do direito.
Diante disso, a "popularização" do instituto depende de desenvolvimento maior da doutrina a seu respeito e da divulgação de suas vantagens em situações concretas, mas sem regredir em fixar limites preestabelecidos abstratamente, pois a lei assim não cuidou do instituto e não cabe aos operadores do direito assim proceder.
De mais a mais, é evidente que o instituto depende de maior maturação doutrinária, até para facilitar a digestão das alterações legislativas, a ensejar frutos na atividade jurisdicional e, por conseguinte, na sociedade.
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