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Inocorrência de crime de desobediência em razão de descumprimento de medida judicial de proteção da Lei Maria da Penha.

Impossibilidade de prisão civil atípica imediata com base no art. 461, § 5º, do CPC

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Agenda 30/01/2010 às 00:00

Resumo: O presente trabalho visa demonstrar a inocorrência de crime de desobediência no descumprimento, pelo agressor, de medida de proteção da Lei Maria da Penha, em razão da existência de mecanismos civis e processuais de efetivação da tutela específica. Trata também da impossibilidade de decretação de prisão civil atípica imediata com base nos referidos mecanismos (previstos no art. 461, § 5º do CPC). O presente trabalho procura trazer as divergências doutrinárias acerca da possibilidade da prisão civil atípica (fora das hipóteses elencadas na Carta Magna), e demonstrar a doutrina que deve prevalecer (quanto à prisão civil) nos casos de descumprimento de medidas judiciais, em especial o descumprimento de medida judicial de proteção da lei 11.340/2006 (lei de violência doméstica e familiar). No decorrer do trabalho, demonstra-se combatividade na aplicação imediata da prisão civil àquele que descumprir ordem judicial, aplicando medidas de proteção à vitima de violência doméstica e familiar. Busca-se preservar os direitos fundamentais da vítima em detrimento do direito à liberdade do infrator (haja vista que nenhum direito é absoluto), evitando a denominada vitimização secundária, desde que prisão civil com base no artigo 461, § 5º do CPC seja utilizada com ultima ratio, ou seja, após esgotadas todas as medidas civis e processuais civis para alcançar a tutela específica ou resultado prático equivalente da medidas de proteção aplicadas.

Palavras-chave: Desobediência – inocorrência- Lei Maria da Penha.

Sumário: 1. Noções Gerais acerca da lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). 2. Implicações do descumprimento das medidas de proteção pelo agressor. 3. Implicações do descumprimento das medidas de proteção pelo agressor. 4. Prisão Civil na hipótese do artigo 461, § 5º do CPC por descumprimento à medida judicial de proteção à vítima. 5. Conclusão.


1.Noções Introdutórias acerca de lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

Certamente a lei 11.340/2006, batizada de Lei Maria da Penha em homenagem à mulher que se tornou um símbolo de resistência à crueldade masculina, trouxe um grande avanço à nossa sociedade, em especial em termos de ação afirmativa, ou seja, em termos de discriminação positiva, assim como ocorre no sistema cotas nas universidades públicas, a fim de se reparar injustiças advindas de séculos contra um enorme contingente de pessoas. É cediço que essa espécie de tratamento especial não fere nenhum princípio constitucional, pois o que é vedado em nossa Carta Magna é discriminação que cause prejuízo, que humilha, que oprima, espolia e viola os direitos humanos. Aliás, a regra da igualdade consiste em tratar igualmente aos iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam, como bem ensina RUI BARBOSA.

A plausibilidade da lei Maria da Penha não se deve somente quanto à rigidez da punição do delinqüente, mas se deve também com relação ao tratamento da vítima, pois esta deixou de ser mero objeto da ação.

A sistemática penal e processual penal, por seu tradicionalismo (que ainda se prega in totum), trata a vítima como mero objeto da ação penal, pois, em suma, tem-se em mente que o direito penal nada mais é do que normas que visavam o combate ao crime (em especial a aplicação da sanção penal ao infrator). Demonstramos essa visão meramente combatente do direito penal pela lição de ANIBAL BRUNO:

"O conjunto das normas jurídicas que regulam a atuação estatal nesse combate contra o crime, através de medidas aplicadas aos criminosos, é o Direito Penal. Nele se definem os fatos puníveis e se cominam as respectivas sanções – os dois grupos dos seus componentes essenciais, tipos penais e sanções. É um direito que se distingue entre outros pela gravidade das sanções que impõe a severidade de sua estrutura, bem definida e rigorosamente delimitada" [01].

A vítima, esquecida, em razão do foco do direito penal objetivar, via de regra, apenas a punição do criminoso, passou a sofrer a denominada sobrevitimização do processo penal ou a vitimização secundária, que na lição de LÉLIO BRAGA CALHAU é:

"(...) o sofrimento adicional que a dinâmica da Justiça Criminal, com suas mazelas provoca normalmente nas vítimas. No processo penal ordinário e na fase de investigação policial, a vítima é tratada com descaso, e muitas vezes com desconfiança pelas agências de controle estatal da criminalidade. A própria sociedade também não se preocupa em ampará-la, chegando, muitas vezes, a incentivá-la a manter-se no anonimato, contribuindo para a formação da malsinada cifra negra, o grupo formado pela quantidade considerável de crimes que não chegam ao conhecimento do sistema penal". [02]

Um dos reflexos que o Brasil teve em decorrência do menoscabo no tratamento da vítima nos processos criminais se verifica diante da série de denúncias encaminhadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que elaborou o relatório nº 54/2001, que documentou a trágica situação da nossa população feminina em termos de violência doméstica.

Com base nesse relatório e no clamor dos movimentos sociais, foi elaborada a lei Maria da Penha para combater a violência praticada contra a mulher dentro da própria casa, visando também melhorar a prestação jurisdicional em caso de violência doméstica.

Em suma, a lei em comento protege a mulher das variadas formas de violência que ela pode sofrer dentro da família, violências estas de ordem: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, na figura de esposa, filha, mãe, irmã ou enteada e inclusive namorada. Em todos esses casos, o agressor poderá ser preso em flagrante. Caberá, também, prisão preventiva por determinação judicial.

A lei prevê medidas de proteção à vítima (de urgência), tais como: obrigar o agressor a deixar o lar imediatamente; proibi-lo de se aproximar da vítima e das testemunhas até determinada distância mínima, estabelecida em metros, ou mesmo proibição de falar com a ofendida, ainda que por telefone; pagamento de pensão alimentícia; suspensão da posse ou porte de arma, caso ele tenha uma; determinar a separação de corpos ou o afastamento da mulher do lar sem prejuízo dos seus direitos aos bens do casal, guarda dos filhos e alimentos.

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2.Implicações do descumprimento das medidas de proteção pelo agressor.

Como o presente artigo não visa esmiuçar a lei 11.340/2009, mas sim, apenas, trazer considerações importantes acerca da não incidência imediata do crime desobediência pelo descumprimento das medidas de proteção pelo réu, trataremos, agora, acerca das implicações que podem vir a ocorrer no caso descumprimento das medidas de proteção ao agressor, para após discorrermos acerca do tema em análise.

A lei 11.340/2006 prevê em seu artigo 22, § 4º sanções de ordem civil e processual no caso de descumprimento das medidas protetivas aplicadas, com o fim de se conferir efetividade às decisões proferidas pelo Judiciário, remetendo o aplicador da lei ao artigo 461 do Código de Processo Civil, artigo, este último, que autoriza a imposição de multas, buscas e apreensões, remoção de pessoas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição policial. Vejamos a redação do artigo 22, § 4º da lei 11.340/2006 e do artigo 461 do Código de Processo Civil:

"Art. 22, lei 11.340/2006 (...)

§ 4º  Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5º e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil)."

Art. 461, CPC. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)

§ 1º A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)

§ 2º A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287). (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)

§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.(Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)

§ 4º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito(Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)

§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial. (Redação dada pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002)

§ 6º O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva(Incluído pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002)

Realizada uma leitura concatenada e atenta de ambos os dispositivos supra mencionados, nota-se com facilidade que o legislador foi expresso acerca dos reais intentos da lei no caso de descumprimento das medidas de proteção, intentos estes que se consubstanciam em providências civis e processuais civis que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento inserto no artigo 461 do Código de Processo Civil tão-somente.


3.Da não incidência do crime de desobediência quando não houver prévia tentativa de implementação de mecanismos civis e processuais de efetivação da tutela específica.

e RONALDO BATISTA PINTO, justificando os motivos da aplicação do artigo 461 do Código de Processo Civil à lei Maria da Penha, explana que:

"uma das maiores preocupações que sempre rondaram a doutrina foi de se garantir efetividade às decisões judiciais, de molde a propiciar um provimento que atinja seus objetivos de ordem prática, atendendo assim, a expectativa do cidadão que bate às portas do judiciário e mantendo-se, com isso, a credibilidade da justiça." [03]

Ocorre que, embora as intenções do legislador tenham restado claras (aplicação do artigo 461 do Código de Processo Civil), a prática forense tem tomado rumo diverso. Os membros do Ministério Público e membros da Magistratura, em vez de aplicar o artigo 461 do Código de Processo Civil aos réus que descumprem decisões judiciais de proteção à vítima nos processos de violência doméstica, têm se posicionado pela imediata responsabilização criminal dos réus com base no crime de desobediência (artigo 330, CP), justificando-se a referida responsabilização pelo fato de ser "inconcebível que o Poder Judiciário, destinado à solução dos litígios não tenha o condão de fazer valer os seus julgados" [04]. Colacionamos julgado para demonstrar, data venia, a inaplicabilidade do art. 461 do CPC e a responsabilização criminal imediata do agente descumpridor da medida protetiva a ele aplicada:

CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. ARTIGO 330, CP. MEDIDAS PROTETIVAS. LEI MARIA DA PENHA. DESCUMPRIMENTO. SUFICIÊNCIA DO CONJUNTO PROBATÓRIO. CONDENAÇÃO MANTIDA. PENA REDIMENSIONADA. Réu que deixa de cumprir medida protetiva de não se aproximar da vítima, imposta judicialmente, comete o crime de desobediência, vez que tinha ciência inequívoca da ordem. Comprovadas a materialidade e autoria do delito, é de ser mantida a condenação. RECURSO DESPROVIDO. (Recurso Crime Nº 71002245611, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Clademir José Ceolin Missaggia, Julgado em 28/09/2009)

No mesmo sentido tem se posicionado o brilhante jurista GUILHERME DE SOUZA NUCCI. Vejamos:

"Não se pode excluir a configuração de crime de desobediência, por parte do agente agressor, se, por exemplo, insistir em se aproximar da vítima, fora do limite mínimo previsto pelo magistrado" [05].

Em que pese a prática forense tenha demonstrado partidarismo pela aplicação imediata do artigo 330 do Código Penal (crime de desobediência) no caso de descumprimento de medida judicial de proteção aplicada ao réu em processo de violência doméstica, não é esse o entendimento que deve, data venia, prevalecer.

Como verificamos alhures a lei Marida Penha prevê medidas extrapenais no caso de descumprimento das ordens judiciais aplicando medidas de proteção à vítima, sendo inconcebível a responsabilização imediata do desobediente pela conduta típica prevista no artigo 330 do CPP, haja vista que não se configura o crime de desobediência quando alguma lei de conteúdo não penal comina penalidade administrativa, civil ou processual para o fato. Nesse sentido MAGALHÃES DE NORONHA, citado na obra do saudoso MIRABETE:

"A doutrina e a jurisprudência estão de acordo no sentido de que não se configura o crime de desobediência quando alguma lei de conteúdo não penal comina penalidade administrativa, civil ou processual para o fato RT 368/265, 372/190, 409/317, 410/301, 487/339, 495/378, 512/355, 516/345, 542/301; RF 187/365, 189/336, 257/298...)". [06]

Analisando o entendimento de NORANHA (acima), nota-se que ele adverte que a lei deve cumulativamente possuir conteúdo NÃO PENAL e deve cominar penalidade que não seja penal para não haver a configuração do crime de desobediência.

Nesse sentido surge a dúvida: Qual seria a natureza jurídica da lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha") em especial das medidas de proteção? Se a resposta for no sentido de que sua natureza jurídica é unicamente penal, encerramos o assunto e entendemos plenamente aplicável o crime de desobediência no caso de descumprimento da ordem judicial protetiva à vítima de violência doméstica e familiar. Agora, se a resposta for no sentido de que a lei 11.340/2006 tem natureza híbrida (civil e penal), deveremos fazer uma análise do artigo 22 da lei e seus parágrafos para se verificar se as medidas de proteção possuem ou não natureza civil, e, em se confirmando a natureza civil, poder-se-ia chegar à conclusão de que é inconcebível a aplicação do crime de desobediência no caso de descumprimento de ordem judicial protetiva à vítima de violência doméstica e familiar.

Sobre a natureza jurídica das medidas protetivas da lei 11.340/2006 transcrevemos, permissa venia, importante parte de um trabalho sobre o tema mui bem elaborado pelo Promotor de Justiça THIAGO ANDRÉ PIEROBON ÁVILA do Ministério Público do Distrito Federal, que tem posicionamento neutro com relação à natureza jurídica das referidas medidas, pois ora alega que a natureza jurídica é duvidosa, ora alega que é penal, e ora alega que a natureza jurídica é cível independente) . Veja-se:

"Na verdade, a lei não é clara quanto à natureza jurídica destas medidas cautelares, se cível, criminal ou híbrida. Certamente a interpretação da disposição deverá ser a que assegurar a máxima efetividade à proteção aos direitos fundamentais.

A medida prevista no art. 22, inciso V (prestação de alimentos provisórios), certamente possui natureza exclusivamente cível. Todas as demais medidas protetivas de urgência possuem natureza cautelar penal, pois visam assegurar a integridade física e moral da vítima em decorrência do crime, mas também é possível a construção de que possuem natureza cível independente.

Nos EUA, existem as protective orders e as restraining orders, sendo as primeiras com natureza criminal e as segundas com natureza cível. As medidas de natureza criminal possui duração limitada à duração da ação penal. Já as medidas cíveis possuem duração independente, estabelecendo-se o prazo adequado para sua validade. Regra geral, as medidas restritivas de natureza cível são muito mais adequadas que as de natureza criminal para conflitos familiares (...)" [07]

Embora haja entendimento contrário, o entendimento que deve prevalecer, data venia, é que, em regra, a natureza jurídica das medidas de proteção à vítima previstas no artigo 22 da lei Maria da Penha são de natureza jurídica civil independente.

Os incisos I, II, III, IV e V da lei 11.340/2006 possuem certamente natureza jurídica civil independente. Já, como exceção, o inciso I da lei 11.340/2006 possui natureza jurídica penal quando o agressor se encontrar nas condições mencionadas no caput e incisos do artigo 6º da lei n. 10.826 de 22 de dezembro de 2003 (conforme artigo 22, § 2º da lei 11.340/2006).

Passaremos, primeiramente, a argumentar acerca do porquê da natureza jurídica civil independente dos incisos I (com a restrição do artigo 22, § 2º da lei 11.340/2006), II, III, IV, V do artigo 22 da lei 11.340/2006.

A problemática maior em verificar a natureza jurídica dos incisos I (suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003); II (afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida); III (proibição de determinadas condutas, entre as quais:a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida) e IV (restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar), todos do artigo 22 da lei 11.340/2006, se encontra no fato de tais incisos pretenderem preservar a integridade física e moral da vítima (o que, conforme afirma ÁVILA, daria natureza jurídica penal aos institutos).

Contudo, tal problemática é resolvida ao trazermos a baila o seguinte questionamento:

Se os referidos incisos (Icom ressalva, II, III, IV e V) tivessem mesmo natureza jurídica criminal, por que o legislador trataria no referido artigo (22, § 4º da lei 11.340/2006) tais incisos (Icom ressalva, II, III, IV e V) como se fossem obrigações de fazer ou não fazer , remetendo o aplicador da lei ao artigo 461 do Código de Processo Civil, artigo este último que tem natureza jurídica civil (pois prevê providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento das obrigações civis)?

Assim, pelo simples questionamento acima, percebe-se que os institutos previstos nos incisos I (com ressalva) II, III, IV e V possuem eminente natureza jurídica civil, pois a própria lei Maria da Penha os trata com obrigações de fazer e não fazer, sendo, assim, atípica a conduta que descumpre medida judicial de proteção à vítima quanto aos referidos incisos.

Ademais, justifica-se, ainda com mais razão, a natureza jurídica civil dos institutos pela simples leitura do artigo 33 da lei 11.340/2006, que prevê o acúmulo de competência CÍVEL e criminal nas Varas Criminais, "enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher".

De outro lado, a natureza jurídica penal evidencia-se no inciso I do artigo 22 quando cominado com o § 2º do mesmo artigo, todos da lei Maria da Penha, pois a lei 11.340/2006 não tratou o referido inciso (quando incidir na hipótese prevista no § 2º da lei Maria da Penha) como obrigação civil (não autorizando, quanto a este inciso, a aplicação do artigo 461 do CPC). Veja-se, ainda, que quanto ao referido inciso cc. §2º da lei 11.340/2006 (na hipótese do agressor encontrar-se nas condições mencionadas no caput e incisos do artigo 6º da lei 10.826/2003 – estatuto do desarmamento) o legislador fez previsão que se o superior imediato do agressor descumprir a determinação judicial de restrição do porte de armas poderá incorrer em crime de desobediência.

Ademais, mesmo deixando de lado a discussão acerca da natureza jurídica do artigo 22 e incisos da lei 11.340/2006, importante salientar que se a lei 11.340/2006 desejasse que em razão do descumprimento das ordens judiciais dos incisos do artigo 22 da referida lei respondessem pelo crime de desobediência (art. 330, Código Penal) teria feito de modo expresso, como o fez no artigo 22, § 2º da lei de violência doméstica e familiar, e não remeter o aplicador da lei ao artigo 461 do Código de Processo Civil (tratando as medidas de proteção como obrigações civis de fazer e não fazer).

Nessa esteira, como a lei 11.340/2006 determinou penalidades processuais e civis em caso de descumprimento das medidas aplicadas ao agressor e não ressalvou expressamente a cumulativa aplicação do crime de desobediência, resta impossível o enquadramento da conduta descumpridora da ordem judicial específica no tipo penal previsto no artigo 330 do CP. No mesmo sentido é o entendimento do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: "Não se configura, sequer em tese, o delito de desobediência quando a lei comina para o ato a penalidade civil ou administrativa" (RT 613/413).

Também explica RUI STOCO:

"Se, pela desobediência de tal ou qual ordem oficial, alguma lei comina determinada penalidade administrativa ou civil, não se deverá reconhecer o crime em exame, salvo se a dita lei ressalvar expressamente a cumulativa aplicação do artigo 330 do CP (ex: a testemunha faltosa, segundo o art. 219 do CPP, está sujeita não só ao pagamento de multa e das custas da diligência da intimação, como a processo penal por crime de desobediência)" [08](grifos nossos).

Enfim, conclui-se que a lei Maria da Penha já prevê sanção especial para o descumprimento das medidas, não havendo que se falar em crime de desobediência quando houver descumprimento das referidas medidas, com exceção daquela prevista no artigo 22, § 2º da lei em discussão.

O Direito Penal não pode jamais ser visto como pirma ratio (primeira razão) para compor os conflitos em sociedade. Há outros ramos do direito preparados para solucionar as desavenças e lides surgidas na comunidade, compondo-as sem maiores traumas. O Direito Penal é considerado ultima ratio (última razão). Desta feita, pelos princípios constitucionais implícitos da Intervenção mínima, fragmentariedade e da proporcionalidade se baseou o legislador da lei 11.340/2006, preferido conferir medidas processuais civis ao agressor que descumprir medida judicial de proteção à novamente responsabilizá-lo criminalmente.

Sobre o autor
Marcelo Rodrigues da Silva

Advogado. LL.M ("Master of Laws") em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em direito público com ênfase em direito constitucional, administrativo e tributário pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). Especialista em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Especialista em direito público pela Escola Damásio de Jesus. Extensão Universitária em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito. Extensão Universitária em Recursos no Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor conteudista do Atualidades do Direito dos editores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. Possuiu vários artigos em revistas jurídicas, tais como Lex, Magister, Visão Jurídica, muitas das quais com matéria de capa. Colaborador permanente, a convite, da Revista COAD/ADV. Ex-Representante do Instituto Brasileiro de Direito e Política da Segurança Pública (IDESP.Brasil). Ex-estagiário concursado do Ministério Público de São Paulo. Fiscal do Exame Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marcelo Rodrigues. Inocorrência de crime de desobediência em razão de descumprimento de medida judicial de proteção da Lei Maria da Penha.: Impossibilidade de prisão civil atípica imediata com base no art. 461, § 5º, do CPC. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2404, 30 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14274. Acesso em: 8 nov. 2024.

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