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Afastamento "hic et nunc" da Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal.

Supressão de instância?

Agenda 14/06/2010 às 00:00

Palavras-chave: Habeas Corpus – Súmula 691 do STF – Flexibilização – Supressão de instância - Teoria da Causa Madura - Supremacia do Direito.

A Súmula 691 do STF [01] - aprovada em Plenário no dia 24 de setembro de 2003 com a notória preocupação de se evitar a chamada "supressão de instância" - exige que o writ tenha o seu mérito apreciado pelas instâncias inferiores antes de se recorrer ao Tribunal Constitucional via habeas corpus. Em singelas palavras, não têm, pois, os Ministros do Supremo (de acordo com o teor da Súmula) o direito de avocar habeas corpus em início de tramitação, em qualquer lugar do Brasil, para lhe examinar o mérito.

Foi aplicando a referida Súmula, inclusive, que a Min. ELLEN GRACIE indeferiu liminarmente a ordem impetrada em favor do médico ROGER ABDELMASSIH – uma vez que o remédio constitucional não havia sido julgado meritorialmente pelo STJ - , acusado de autoria de 56 crimes de atentados violentos ao pudor (hoje estupros por mudança legislativa introduzidas pela Lei nº 12.015/09) perpetrados contra 39 mulheres, segundo o Parquet. (HC nº 100.429/SP)

Posteriormente, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Min. GILMAR MENDES, deferiu liminar em outro mandamus (HC nº 102.098) para conceder liberdade ao médico, registrando, na oportunidade, que em 18 de agosto de 2009 o Conselho Regional de Medicina suspendeu o registro profissional do médico, afastando a possibilidade de reiteração dos supostos abusos sobre clientes, não mais se justificando, assim, a manutenção da prisão provisória.

Entretanto, foi mesmo a decisão da Min. ELEN GRACIE que reavivou uma intensa e acalorada discussão, a partir de um paralelo que pode ser traçado entre o caso do médico e o caso do banqueiro DANIEL DANTAS, no STF - cuja prisão havia sido fruto das investigações advindas da denominada "Operação Satiagraha".

No aludido caso, como se sabe, ocorreram impetrações sucessivas – ou, como preferem alguns, impetrações per saltum [02] – em face de decisões denegatórias de liminar nas instâncias inferiores. È bom que se ressalte, entretanto, que tais impetrações em grande parte das vezes deve-se à demora no julgamento meritório do próprio writ pela instância inferior [03].

Destarte, quanto ao caso supra, o banqueiro (em situação similar á do médico) também havia recorrido ao STF sem que seus habeas corpus impetrados nas instâncias inferiores (TRF e STJ) tivessem sido meritoriamente julgados, todavia, o Min.GILMAR MENDES (relator), na oportunidade, afastou o óbice da Súmula 691 do STF para conceder a ordem ao acusado (HC nº 95.009/SP).

Juridicamente, diversas foram as vozes que se levantaram contra MENDES, alegando suposta "supressão de instâncias", com fulcro nos argumentos de Wálter Fanganiello MAIEROVITCH [04], Desembargador aposentado do TJ/SP, insinuando, pois, que o Ministro teria "rasgado a jurisprudência do STF".

Inicialmente, MENDES concedeu liminar convertendo o HC preventivo em liberatório, revogando a prisão temporária de DANIEL e VERÔNICA DANTAS. Em seguida, diante da decretação da prisão preventiva de ambos, revogou novamente a ordem do juiz da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, dentro do mesmo processo, haja vista que, em seu entender, o Estado de Direito (distintamente do chamado Estado Policial marcado tanto pelo que chamamos de "processo penal midiático" quanto pelas prisões temporárias decretadas em atacado) viabiliza a preservação das práticas democráticas e, especialmente, o direito de defesa.

"O despacho de Vossa Excelência foi irrepreensível. Eu não teria feito melhor" [05], afirmou EROS GRAU, voltando-se para MENDES. Estendendo a ordem (com fulcro no art. 580 da Lei Instrumental Penal), posteriormente, aos demais envolvidos no processo: HUGO CHICARONI e HUMBERTO BRAZ, assessores de Dantas acusados de tentativa de subornar um delegado da Polícia Federal para que deixasse de investigar o banqueiro.

Em que pese tudo isso, é oportuno deixar vincado que, em termos de diretriz hermenêutica, a Corte Constitucional tem abrandado o rigor do referido verbete, sempre em caráter extraordinário, nos casos em que há flagrante ilegalidade (decisões teratológicas) ou abuso de poder, além das hipóteses nas quais a decisão questionada divirja da jurisprudência predominante da Corte, uma vez que o habeas corpus - de envergadura constitucional [06] - não sofre qualquer peia além dos limites estipulados pela própria Lei Fundamental.

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Sobre a gênese da flexibilização da Súmula 691 do STF, aliás, é oportuno destacar que o julgamento do HC nº 85.185/SP [07]foi um verdadeiro leading case, ocasião na qual o advogado Alberto Zacharias TORON (em sustentação oral da ordem no Pleno da Suprema Corte) ofereceu proposta de cancelamento da referida Súmula ou, alternativamente, interpretação que, com redução teleológica, implicasse-lhe acrescentar, ao final do enunciado, a expressão: "a menos que a ilegalidade ou o abuso de poder seja flagrante".

No entanto, hoje nota-se que o STF vem interpretando a referida Súmula com certa flexibilidade, assim como o faz em relação aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em determinados casos concretos; procedendo-se ao seu afastamento hic et nunc sempre que necessário, sob pena de se respaldar a denegação da justiça.

Um exemplo prático e não muito incomum de concessão initio litis de habeas corpus pela Suprema Corte, afastando o óbice da combatida Súmula ocorre quando se pleitea o direito de recorrer em liberdade nada obstante ter sido decretada a prisão do paciente pela mera disposição de que "os recursos extraodrinário e especial serão recebidos no efeito devolutivo" (art. 27, § 2º da Lei nº 8.038/90).

Como se vê, trata-se de assunto já debatido pelo Pleno do Tribunal Constitucional (HC nº 84.078/RS), autorizando, inclusive, além do afastamento hic et nunc do verbete sumular nº 691 o julgamento da ordem apenas pelo Relator, assim como fez o Min. CELSO DE MELLO no julgamento do HC nº 97.457/MT impetrado em favor de pacientes acusados de serem mandantes de um homicídio triplamente qualificado ocorrido na década de 80.

O Min. MARCO AURÉLIO, inclusive, quando da concessão de liminar para libertar 20 pessoas que estavam sendo presas em decorrência das investigações realizadas pela "Operação Hurricane", da Polícia Federal, acenou para a necessidade de se compatibilizar o citado verbete com a Lei Maior, aduzindo que não pode ser levado às últimas consequências o que nele se contém a ponto de, configurado ato ilícito e existindo órgão capaz de apreciá-lo, vir-se simplesmente a dizer da incompetência deste último (HC nº 91.723/RJ).

Tal constatação do Ministro, aliás, está em perfeita consonância com a "Teoria da Causa Madura", de Paulo RANGEL [08], no substrato de que jamais poderia o Pretório Excelso invocar uma Súmula para indeferir liminarmente a ordem impetrada, quando estivesse presente alguma ilegalidade (conferir, a respeito, o Agravo Regimental no HC nº 98.324/MT); ainda mais quando, nessa hipótese, o Regimento Interno, o Código Processual Penal e a Constituição Federal autorizam a concessão de habeas corpus de ofício pelo magistrado.

Assim, o fato de alguns Ministros ultrapassarem a súmula de barreira, apreciando em sede liminar pedidos já indeferidos em instâncias inferiores, é plenamente justificável; uma vez que equivocou-se o Supremo quando elaborou tal verbete - limitando o acesso ao Poder Judiciário – (e violando o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional), tanto é que inverteu-se a lógica da própria súmula, tantas e tamanhas são as nulidades de decretações de prisões pelo Brasil afora.

Quanto à proposição de Alberto Zacharias TORON, se fosse aceita, acabaria confundindo dois planos essenciais do habeas corpus, que é o da admissibilidade e do conhecimento. Nas palavras do Min. SEPÚLVEDA PERTENCE [09]a solução, na teoria, seria contrária à prática e, na prática, revogaria a Súmula.

Contudo, o certo é que em situações dessa matiz, de flagrante ilegalidade (aptas a afastar a aplicação da Súmula) o acusado nunca deveria ficar no prejuízo, uma vez que esse singelo patamar sempre desafiará a concessão da ordem ex officio pelo magistrado enquanto sujeito suprapartes que é; consagrando, pois, a supremacia do Direito sobre o Império da Lei, em clara decorrência de um nítido esgotamento do clássico modelo positivista.


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. Teor da Súmula 691 do STF: "Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de ‘habeas corpus’ impetrado contra decisão do relator que, em ‘habeas corpus’ requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar".
  2. Interessante notar que a jurisprudência que deu substrato à construção da Súmula em exame tinha como pilares precisamente as idéias bem condensadas pelo Min. MOREIRA ALVES, segundo as quais "a admitir-se essa sucessividade de ‘habeas corpus’, sem que o anterior tenha sido julgado definitivamente para a concessão de liminar ‘per saltum’, ter-se-ão de admitir consequências que ferem princípios processuais fundamentais, como o da hierarquia dos graus de jurisdição e o da competência deles" (HC nº 76.347-1/MS, DJ 08/5/98).
  3. Não por acaso, com incomum reiteração, assistimos tanto à prática de se abandonar o uso do recurso ordinário em habeas corpus (RHC), com o manejo da impetração originária, substitutiva daquele e, da mesma forma, à busca da liminar, solicitando a prestação jurisdicional initio litis. Na esteira de Toron, fossem os tribunais mais céleres quer nos julgamentos, quer na publicação das suas decisões (que não raro leva diversas semanas), a questão da liminar seria menos preocupante, mais acadêmica, e a própria Súmula 691 não viesse, talvez, a lume.
  4. Informações colhidas a partir do blog pessoal do Desembargador: http://maierovitch.blog.terra.com.br.
  5. STF, HC nº 95.009/SP, rel. Min.EROS GRAU, DJE 19.12.2008.
  6. Segundo entendemos, o habeas corpus enquanto ação de direito processual constitucional é o mais eficaz instrumento de atuação da denominada "jurisdição constitucional das liberdades".
  7. No julgamento do HC nº 85.185/SP, o Pleno do STF rejeitou a proposta de cancelamento da Súmula 691, formulada pelo relator, e reconheceu a possibilidade de atenuação do seu enunciado para a hipótese de flagrante constrangimento ilegal.
  8. RANGEL, Paulo. Direito processual penal, p.769.
  9. STF, HC nº 85.185/SP, rel. Min.CEZAR PELUSO, DJ 01.09.2006.

BIBLIOGRAFIA

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, Rio de Janeiro, Editora Lúmen Júris, 16ª ed., 2009.

Sobre o autor
Júlio Medeiros

Advogado criminalista. Professor de Direito Penal da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Júlio. Afastamento "hic et nunc" da Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal.: Supressão de instância?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2539, 14 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15028. Acesso em: 23 dez. 2024.

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