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Indulto e pena restritiva de direitos: interpretação da norma à luz da política criminal

A norma destinada ao pequeno infrator estaria sofrendo uma interpretação restritiva, em descompasso com a política criminal que inspirou o decreto em tela.

1 INTRODUÇÃO

O decreto de indulto de 2009 (Decreto nº 7.046/2009) foi cercado de muita expectativa. Afinal, nele foram inseridas inúmeras hipóteses de concessão do benefício após amplo debate capitaneado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária - CNPCP, envolvendo setores do meio jurídico, acadêmico e da sociedade civil organizada.

Como lembra o Desembargador Herbert José Almeida Carneiro (2010), dentre as importantes inovações, todas orientadas para o aprimoramento de uma política criminal destinada à harmônica integração social, ao esvaziamento carcerário e à justiça, destaca-se a concessão de indulto ao pequeno e médio infrator (leia-se, à pessoa condenada a pena privativa de liberdade, substituída por pena restritiva de direitos).

Contudo, a euforia inicial cedeu espaço para a inquietação. Chegam notícias ao Departamento Penitenciário Nacional de que a norma destinada ao pequeno infrator estaria sofrendo, por parte dos operadores do direito, uma interpretação restritiva, em descompasso com a política criminal que inspirou o decreto em tela.

Fulcrado em um entendimento questionável, prospera, no caso da pena restritiva de direitos, a idéia de que o indulto destina-se apenas àqueles que viram a pena restritiva de direitos ser convertida em privativa de liberdade. E mais, que a fração condicionante para a fruição do benefício deve incidir sobre o tempo de pena cumprido quando privado de liberdade, ignorando o tempo de pena cumprido com restrição de direitos. Será?!


2 INDULTO E PENA RESTRITIVA DE DIREITOS: POSSIBILIDADES

Aduz Renato Marcão (2006, p. 286) que "o indulto revela-se verdadeiro ato de clemência do Poder Público, consistindo em benefício concedido privativamente pelo Presidente da República". Contudo, como causa extintiva da punibilidade (art. 107, II, do Código Penal), o indulto apenas faz desaparecer as conseqüências penais, persistindo os efeitos extrapenais, entre os quais a obrigação de reparar o dano.

Na lição do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, o indulto, espécie de clementia principis, é um instituto benéfico que gera direito público, subjetivo, líquido e certo, impondo, portanto, sua concessão a quem satisfizer suas exigências (STJ. HC 2.380-3/RJ).

Cabe, então, ao Presidente da República (art. 84, XII, da Constituição Federal), por meio de decreto, elencar os requisitos subjetivos e objetivos com os quais deve o indivíduo se harmonizar para que venha a ser beneficiado pelo perdão total ou parcial da pena imposta.

Ademais, conforme vem se decidindo, a sentença que tem por objeto o indulto e a comutação de pena tem natureza meramente declaratória, na medida em que o direito já fora constituído pelo decreto presidencial concessivo. A exigência de outras condições, além das exigidas pelo decreto, torna evidente o constrangimento ilegal (STJ. HC 82184/SP, Relatora Ministra LAURITA VAZ).

Ouvidos o Ministério Público, a Defesa e o Conselho Penitenciário (conforme o caso), cabe ao magistrado decidir, após o cotejo dos requisitos estampados no decreto presidencial, sobre o indulto (indulto em sentido estrito ou comutação).

Porém, a interpretação dos dispositivos elencados no decreto deve se dar à luz de política criminal, uma vez que esta, no dizer de Figueiredo Dias (1999, p. 42), constitui "a pedra angular de todo o discurso legal-social da criminalização-descriminalização."

Com efeito, as regras estampadas no decreto devem se harmonizar com a política criminal traçada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária - CNPCP, órgão que possui a atribuição de propor diretrizes da política criminal quanto à prevenção do delito, administração da justiça criminal e execução das penas e das medidas de segurança (art. 64, I, da Lei de Execução Penal).

Nessa esteira, o CNPCP, em face das novas demandas da sociedade e da respostas simplistas até então ventiladas (reduzidas ao endurecimento de sanções penais), propõe uma política criminal que perpasse por políticas públicas de caráter social, bem como pela atuação coerente do sistema de justiça criminal, sendo certo que a coerência em tela advém da vinculação dos princípios basilares de justiça com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, mormente a dignidade da pessoa humana (Resolução nº 16/2003 do CNPCP).

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Por seu turno, Haber e Abramovay (2009) lembram que, por se tratar de um instrumento de política criminal delineada pelo Poder Executivo, o decreto de indulto deve com ela se conciliar.

Nesse diapasão, registra-se o lapidar ensinamento do Ministro Maurício Corrêa, Relator da ADI-MC 2795/DF, acolhido pelo Plenário do STF:

O indulto insere-se no poder discricionário de clemência que detém o Chefe do Poder Executivo, a evidenciar instrumento de política criminal colocado à disposição do Estado para a reinserção e ressocialização dos condenados que a ele façam jus, segundo a conveniência e oportunidade das autoridades competentes.

Vê-se, pois, que o cotejo de requisitos deve ter como farol a política criminal apontada pelo CNPCP.

Contudo, e até mesmo em face de uma redação confusa, a regra do indulto em relação às penas restritivas de direitos está carente de um entendimento razoável. Vejamos.

O Decreto nº 7.046/2009 (decreto em vigor que concede indulto natalino e comutação de penas), na forma do seu art. 1º, IX, assim prevê:

Art 1º – É concedido indulto às pessoas:

IX – condenadas à pena privativa de liberdade, desde que substituída por pena não privativa de liberdade, na forma do art. 44 do Código Penal, que tenham cumprido, ainda que por conversão, privados de liberdade, até 25 de dezembro de 2009, um terço da pena, se não reincidentes, ou metade, se reincidentes;

Na linha de Clarence Willians Duccini (2009), prospera em diversos juízos de execução penal a inteligência de que a concessão do indulto destina-se apenas àqueles que viram a pena restritiva de direitos ser convertida em privativa de liberdade (grifo nosso):

Delimitou-se, no inciso IX do art. 1º, a possibilidade de extensão da concessão do indulto às pessoas condenadas a pena privativa de liberdade substituída por pena restritiva de direito, que, mesmo convertida, tenham cumprido, privados da liberdade, até 25 de dezembro de 2009, um terço da pena, se não reincidente, ou metade, se reincidente. Trata-se do caso típico daqueles que são intimados para dar início a pena restritiva de direito, mas a têm convertida em privativa de liberdade.

Ocorre que essa não foi a intenção da Comissão do CNPCP responsável pela elaboração da minuta de Indulto Natalino que deu azo ao Decreto nº 7.046/2009.

Conforme o magistério do Conselheiro Herbert José Almeida Carneiro (2010), membro daquela Comissão, a hipótese em tela, com fulcro na atual política criminal, dá tratamento justo aos pequenos e médios infratores, não exigindo a conversão da pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade para o gozo do benefício (grifo nosso):

A referida hipótese, a meu modesto juízo, traz em si fundamental instrumento de aprimoramento de política criminal, que tem por escopo dispensar tratamento justo aos pequenos e médios infratores, cujas penas - não superiores a 04 (quatro) anos - foram substituídas de privativas de liberdade por restritivas de direitos, e, inexplicavelmente, até então não se viam sujeitos à possibilidade de concessão do indulto, o que os colocava em situação de exclusão e de injustiça frente aos condenados por crimes mais graves e sujeitos a penas mais altas, desde que atendidas as condições impostas no decreto de indulto.

Agora, por exemplo, se o cidadão condenado a uma pena de 03 (três) e 06(seis) meses privativa de liberdade, substituída por restritiva de direitos, nos termos do artigo 44 do código penal, já cumpriu 1/3 (um terço) da pena, se não reincidente, e 1/2 (metade) se reincidente, e preencher os demais requisitos do decreto, terá direito ao indulto (extinção da pena imposta), o que não ocorria anteriormente, obrigando-lhe ao cumprimento integral da pena restritiva de direitos, com as dificuldades inerentes à fiscalização de seu cumprimento, gerando, em alguns casos, injustificada sensação de impunidade. A situação anterior era, no mínimo, injusta e o atual decreto veio corrigir essa distorção de tratamento dispensado aos condenados por crimes de pequeno e médio potencial ofensivo. Neste particular, o decreto merece aplausos.

Vale acrescentar, ainda, a meu sentir, que a medida terá reflexo imediato nos escaninhos forenses, possibilitando o arquivamento de inúmeras guias de execução penal impostas a pequenos e médios infratores, sujeitos a penas não superiores a 04 (quatro) anos; e mais, poderá até mesmo contribuir para o esvaziamento carcerário, colocando em liberdade cidadãos condenados a penas restritivas de direitos convertidas em privativas de liberdade, desde que atendam, naturalmente, às condições impostas no decreto de indulto. Também sob estes aspectos, o atual decreto de indulto se apresenta mais justo e compromissado com o aprimoramento da política criminal.

Com clareza solar, o ilustre Conselheiro revela que a medida destinava-se ab initio a corrigir distorções de outrora. E mais, a lição permite o correto alcance do art. 1º, IX, do Decreto nº 7.046/2009.

Dessa forma, o aludido dispositivo está voltado tanto àqueles que cumprem pena restritiva de direitos em substituição à privativa de liberdade (art. 44 do CP) quanto àqueles que, inicialmente beneficiados com a substituição da pena, encontram-se presos em face da conversão.

Com efeito, o benefício abrange duas situações, a saber:

a) aquele que, condenado à pena privativa de liberdade, vê sua pena substituída na forma do art. 44 do Código Penal, e que tenha cumprido um terço da pena (leia-se, a restritiva de direitos), se não reincidente, ou metade, se reincidente, até 25 de dezembro de 2009 (primeira parte do inciso); e

b) aquele que, condenado à pena privativa de liberdade, viu sua pena substituída, e que, em face do descumprimento da medida imposta, teve a última convertida novamente em pena privativa de liberdade. Nesses casos, a concessão de indulto se dará com o cumprimento de um terço da pena (leia-se, restritiva de direitos e privativa de liberdade), se não reincidente, ou metade, se reincidente, até 25 de dezembro de 2009 ("ainda que por conversão" - segunda parte do inciso).

Caso contrário, como justificar que o decreto de indulto permite o beneficio ao indivíduo condenado a 4 (quatro) anos (sem direito à substituição), nos moldes do inciso I do art. 1º, após cumprir 1/3 da pena (leia-se, 1 (um) ano e 4 (quatro) meses), enquanto, outro indivíduo condenado também a 4 (quatro) anos, e que teve sua pena substituída (art. 44 do CP), somente tenha direito ao indulto se a mesma for convertida e ele cumprir mais 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de pena privativa de liberdade (a despeito do tempo de pena restritiva de direito que já fora cumprido)?

Assim, além de o indulto se destinar às pessoas condenadas à pena privativa de liberdade, substituída por restritiva de direitos, bem como àquelas beneficiadas anteriormente pela substituição, mas que se encontram privadas de liberdade por força da conversão, há que se ter em mente que a fração condicionante para a fruição do benefício deve incidir sobre a pena efetivamente cumprida, independentemente da conversão.


3 CONCLUSÃO

Pelo exposto, a análise puramente linear do art. 1º, IX, do Decreto nº 7.046/2009 conduz o operador do direito a uma interpretação restritiva (e equivocada) diante do caso em concreto.

Apesar de surgir como grande avanço, o entendimento em descompasso com a política criminal faz com que a não concessão de indulto nas hipóteses elencadas esteja distante do ideário de justiça.

A interpretação contrária à política de encarceramento mínimo encampada pelas penas e medidas alternativas se mostra desproporcional em face do destinatários do art. 44 do CP, quais sejam, os pequenos e médios infratores.

Exigir que a pessoa, beneficiada pela substituição da pena, cumpra um período presa para ser contemplada pelo indulto afronta a política criminal do CNPCP, além de ser irrazoável, desproporcional.

Assim, a política criminal fomentada pelo CNPCP, comprometida com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, impõe a concessão do benefício às pessoas condenadas a pena privativa de liberdade, substituída por restritiva de direitos, bem como àquelas beneficiadas anteriormente pela substituição, mas que se encontram privadas de liberdade por força da conversão.

Ademais, o cálculo do tempo para concessão do indulto não deve excluir qualquer período de cumprimento da pena, seja privado de liberdade, seja com restrição de direitos. Afinal, indultar é reconhecer a extinção da punibilidade da pena, e não do período privado de liberdade.


REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Herbert José Almeida. O indulto e o pequeno infrator. Jornal Estado de Minas. Caderno Direito e Justiça, 2010.

DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: RT, 1999.

DUCCINI, Clarence Willians. Prévias considerações das inovações do Decreto nº 7.046/2009: indulto e comutação . Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2368, 25 dez. 2009. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/14095. Acesso em: 04 jan. 2010.

HABER, Carolina Dzimidas e ABRAMOVAY, Pedro Vieira. O decreto de indulto e o papel do executivo na política criminal. Boletim IBCCRIM, Ano 16, nº 197. Abr. 2009, p.2.

MARCÃO, Renato Flávio. Curso de Execução Penal. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

Sobre os autores
Luiz Fabrício Vieira Neto

Advogado. Assessor Técnico de Gabinete do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça. Especialista em Direito Civil e Processo Civil – Instituto Processus.

Carlos Roberto Mariath

Agente de Polícia Federal. Professor de Investigação Criminal da Academia Nacional de Polícia. Especialista em Ciências Penais - Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. Especialista em Execução de Políticas de Segurança Pública - Academia Nacional de Polícia - ANP. Especialista em Ciência Policial e Investigação Criminal - Escola Superior de Polícia - ESP/DPF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NETO , Luiz Fabrício Vieira; MARIATH, Carlos Roberto. Indulto e pena restritiva de direitos: interpretação da norma à luz da política criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2602, 16 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17186. Acesso em: 22 nov. 2024.

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