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A utilização de conceitos de Direito Criminal para a interpretação da Lei de Improbidade

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Agenda 19/09/2010 às 14:47

4. O PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DAS PENAS

Pelo princípio da individualização, a pena não pode passar da pessoa do infrator. Trata-se de princípio previsto nos incisos XLV e XLVI do art. 5º da Constituição Federal que dispõem:

XLV- Nenhuma pena passará da pessoa do condenado,podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;

XLVI- a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a)privação ou restrição da liberdade;

b)perda de bens;

c)multa;

d)prestação social alternativa;

e)suspensão ou interdição de direitos;

Já se demonstrou no tópico 1 que os ilícitos administrativos e criminais, bem como as respectivas sanções, são ontologicamente idênticos [32]. Os termos pena e condenado são utilizados pelo direito punitivo em geral. É possível e corrente dizer que um servidor foi condenado e recebeu uma pena administrativa, ou que um contribuinte foi condenado em um processo administrativo fiscal e recebeu a pena de multa. A pena de perdimento de bens, por sua vez, pode também ser aplicada administrativamente como ocorre nos casos de bens provenientes de contrabando, descaminho, bens apreendidos pela vigilância sanitária em desconformidade com as regras de consumo, etc. Verifica-se, pois, tratar-se de princípio geral de direito punitivo. Esse também é o entendimento de Régis Fernandes de Oliveira:

É princípio do direito brasileiro a individualização da pena (art. 5º, XLVI, da C. F.). Não se pode afirmar que tal dispositivo apenas se aplica ao criminoso. Isso porque a Constituição não necessita descer a detalhes, nem disciplinar casos concretos. Dá limites ao legislador, impondo-lhe restrições. A interpretação restrita de tal dispositivo poderia levar à conclusão de que apenas está outorgando garantia ao réu de processo-crime, mas não pode ser esta a interpretação jurídica. É que a individualização da pena alcança toda e qualquer infração. É decorrência da interpretação lógica do todo sistemático do direito [33].

A constatação de que o princípio aplica-se ao direito punitivo em geral é relevante, pois o art. 12 prevê a aplicação de penalidade de "proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário". Ao assim prever, a lei ofende o referido princípio, pois em virtude da conduta de um sócio pune uma sociedade que, conforme as regras de direito privado, não se confunde com a pessoa do sócio e ao fazer isso pune também os demais sócios que não participaram do ato ilícito.

Ocorre que, conforme leciona Fábio Medina Osório

a pena administrativa somente pode atingir a pessoa sancionada, o agente efetivamente punido, não podendo ultrapassar de sua pessoa.

Pessoalidade da sanção administrativa veda, por certo, a chamada responsabilidade solidária, ainda que estabelecida por lei, porque a lei não pode violentar um princípio constitucional regente do Direito Administrativo Sancionador [34].

O ensinamento transcrito acerca de sanções administrativas é plenamente aplicável à lei de improbidade sendo por essa razão o inciso em comento inconstitucional.


5. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

O direito repudia a punição dos delitos de bagatela. Trata-se de noção que surgiu no direito penal, mas que se propagou para os demais ramos do direito punitivo.

O Supremo Tribunal Federal tem ampla jurisprudência acerca do tema em matéria criminal. Aplica-se o referido princípio quando "a reprimenda se revele desproporcional ou irrazoável considerada a ação típica ou o resultado dela" [35]. Para o Supremo Tribunal Federal "a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano impregnado de significativa lesividade" [36]. Para que se desconfigure a conduta punível, é necessário que ocorra: "a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) a nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada" [37].

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É com base nessa noção que têm sido absolvidos os réus processados criminalmente por estelionato [38], pequenos furtos [39], descaminho quando o valor do tributo seja inferior ao valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) previsto no art. 20 da lei n 10.522/02 [40]. É necessário ressaltar que o valor envolvido embora dê indícios da aplicabilidade do princípio da insignificância, não é elemento suficiente para caracterizar a sua aplicação. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a tipicidade de crimes contra o patrimônio com valores ínfimos, mas cuja lesividade à sociedade estava evidenciada por fatores como a violência física ou invasão de domicílio [41]. Decidiu, portanto, que nos crimes contra o patrimônio não se pode apenas levar em conta o valor subtraído para fins de aplicação do princípio da insignificância [42]. Nos casos em que a conduta reflita uma vida delituosa, o princípio não será aplicável [43]. A contrario sensu sempre que o ilícito for isolado pode em abstrato configurar-se a sua incidência. A aplicação efetiva, contudo, depende de uma análise casuística [44].

As lições extraídas do direito penal podem mutatis mutandis ser aplicadas também às demais penalidades. Sérgio Ferraz e Adílson Abreu Dallari afirmam que o princípio é aplicável às penalidades administrativas e ensinam que "com esse rótulo se tem dito que é admissível infirmar a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade, configuram ações de bagatela, despidas de relevância, traduzidas em valores lesivos ínfimos" [45].

No mesmo sentido é o entendimento de Heraldo Garcia Vitta ensina sobre o tema:

Apesar da obrigatoriedade de ser imposta a penalidade pela Administração, conforme veremos, condutas que resultem danos ínfimos, irrisórios, podem ser desconsideradas como ilícitas. Trata-se de análise teleológico-funcional da pena: se o Estado-Administração infligisse pena aos infratores dos denominados ilícitos de bagatela, traria somente desprestígio à potestade punitiva, em vez de fazer com que os súditos se ajustassem aos padrões do ordenamento, finalidade de toda sanção administrativa [46].

A aplicação da lei de improbidade administrativa também deve sofrer a incidência do princípio. Isso significa dizer que a conduta do agente público deve ser lesiva. Nos casos em que se conjugarem os fatores a seguir a ilicitude da conduta fica excluída: "a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) a nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada".

Os incisos II, III, VI, VII, XI, XIV e XV do art. 10 da lei n 8.429/92 são exemplos claros de dispositivos nos quais poderá ocorrer a aplicação do princípio da insignificância. Todos esses incisos mencionam o desrespeito às formalidades legais. Obviamente, não é qualquer tipo de inobservância que dará ensejo à responsabilização do agente por improbidade. Imagine-se a hipótese de ausência de data em determinado documento. Trata-se de formalidade legal cuja inobservância não implicará a incidência da lei de improbidade. Os exemplos são múltiplos e, jamais poderíamos cobrir todas as hipóteses no presente trabalho. É necessário ressaltar, contudo, que, como alerta Heraldo Garcia Vitta, "se não houver prejuízo a alguém, não afetar interesses ou direitos de terceiros, a ausência dessa formalidade não será considerada ilícito" [47].

Mas não é somente em relação à inobservância da forma que se aplica o princípio. Pode-se aplicá-lo quando o valor do dano causado for inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). O fundamento para esse raciocínio é equivalente ao da jurisprudência dominante relativamente aos casos de descaminho. A diferença é que o critério adotado está previsto no art. 1b da lei n 9.469/97, e não no art. 20 da lei n 10.522/02. O referido dispositivo autoriza os dirigentes de empresas públicas federais a "não cobrarem" judicialmente créditos equivalentes a R$ 10.000,00 (dez mil reais). Assim o faz porque considera que o referido teto não justifica o esforço a ser despendido para a cobrança. Se o referido valor não se presta nem mesmo à cobrança judicial pelo estado, esse mesmo estado não pode exercer a pretensão punitiva pelo seu não pagamento.

Raciocínio desse tipo certamente poderá causar estranheza por três razões fundamentais. A primeira é o valor utilizado como teto a segunda o fato de a vítima ser o próprio estado e a terceira o fato de não se tratar de uma penalidade criminal. Na verdade a estranheza desaparece se considerarmos que o orçamento de um ente público comumente alcança a "casa dos milhões". Isso significa dizer que proporcionalmente o dano ocasionado ao Estado é bastante menor do que aquele ocasionado a um trabalhador assalariado, que se vê logrado em uma centena de reais por um estelionatário.

O fato de a vítima ser o próprio Estado, por sua vez, em nada influencia o raciocínio. Pretender dar ao Estado um tratamento mais benéfico do que ao cidadão é inverter a ordem das coisas. O direito tende a dar proteção ao mais fraco. Nesse sentido, um cidadão deve gozar de um maior arcabouço protetivo do que o Estado. Se o Estado considera que certa agressão a um cidadão não é suficiente para fazer incidir normas jurídicas punitivas, tampouco poderá fazê-lo quando o próprio estado for a vítima.

Finalmente, ao terceiro argumento, pode-se opor a inexistência de diferença ontológica entre o ilícito criminal e o previsto na lei de improbidade. As sanções tampouco apresentam diferenças ônticas e, na verdade, a lei de improbidade estabelece diversas sanções que acarretam efeitos mais graves do que algumas penalidades criminais. Cite-se como exemplo a perda de cargo público e a suspensão de direitos políticos.

Demonstra-se, assim, que o princípio da insignificância tem plena aplicabilidade à lei de improbidade.


6. O PRINCÍPIO NON BIS IN IDEM

Ninguém pode ser responsabilizado duas vezes pela mesma conduta. Trata-se de um princípio geral de direito que tem plena aplicabilidade em matéria de improbidade administrativa. Não raro um mesmo ato pode causar danos à administração, acarretar enriquecimento ilícito e ofender os princípios da administração pública e com isso implicar ofensa aos artigos 9, 10 e 11 da lei de improbidade.

O problema é resolvido pela aplicação de alguns critérios quando se tratar de concurso aparente de normas. Pode-se elencar três critérios. O primeiro é o princípio da especialidade, segundo o qual a norma especial prevalece sobre a norma geral. Há também o princípio da absorção ou alternatividade, segundo o qual quando um mesmo fato afrontar diversas normas jurídicas aplica-se as penalidades previstas para a infração mais grave e com isso as demais são absorvidas. Finalmente o princípio da consunção, por intermédio do qual se pune o ilícito finalisticamente pretendido pelo agente. Há ilícitos que são fases normais de transição para a prática de outros. Nesses casos os "ilícitos meio" não são punidos.

Questão diferente ocorre nos casos de concurso material e formal de ilícitos. O concurso material ocorre quando o agente pratica diversos atos ilícitos de modo independente. Nesses casos podem ser aplicadas as penas previstas para os diversos ilícitos cumulativamente. Não se trata de bis in idem.

No concurso formal há um único ato que produz dois ou mais resultados ilícitos. O Código Penal prevê em seu artigo 70 que nessas hipóteses a pena poderá ser aumentada de um sexto até a metade. A lei de improbidade administrativa não admite o aumento de pena em virtude do concurso formal. Para isso deveria haver previsão expressa. Aplica-se exclusivamente a penalidade prevista para o ilícito mais grave nos casos de concurso formal.


7. O PRINCÍPIO DA ALTERNATIVIDADE

Heraldo Garcia Vitta afirma que "ocorre o princípio da alternatividade quando uma norma jurídica prevê diversas condutas, alternativamente, como modalidades de uma mesma infração administrativa" [48]. O princípio, segundo o autor, traz a conseqüência de que "mesmo que o infrator cometa mais de uma dessas condutas alternativas, isto é, se, acaso, violar mais de um dever jurídico será apenado somente uma vez" [49].

O princípio tem aplicação por ocasião da interpretação da lei de improbidade, pois não raro se acusa o réu de ter praticado mais de uma das condutas descritas em um mesmo artigo. Nesse caso aplicar-se-á somente uma penalidade. Jamais será possível aplicar duplamente a punição.


8. ERRO DE TIPO

O erro de tipo ocorre quando o sujeito supõe a ausência de elemento ou circunstância da figura típica incriminadora ou a existência de requisitos que autorizam a sua conduta. A existência do erro faz com que o dolo inexista. Não há vontade de praticar a conduta típica. O erro pode ser essencial, quando impede a compreensão da natureza criminosa do ato, ou acidental (acessório), quando recai sobre circunstâncias acidentais do delito ou sobre a forma de execução.

O erro de tipo essencial pode ser escusável ou inescusável. Será escusável "quando não pode ser evitado pela normal diligência. Qualquer pessoa, empregando a diligência ordinária exigida pelo ordenamento jurídico, nas condições em que se viu o sujeito incidiria em erro" [50]. Será inescusável "quando pode ser evitado pela diligência ordinária, resultando de imprudência ou negligência. Qualquer pessoa, empregando a prudência normal exigida pela ordem jurídica, não cometeria o erro em que incidiu o sujeito" [51].

A diferenciação entre erro escusável ou inescusável traz conseqüências de relevo, bem apontadas por Damásio E. de Jesus:

O erro essencial invencível exclui o dolo e a culpa. Na verdade, não há propriamente "exclusão" de dolo e culpa. Quando incidente o erro de tipo essencial invencível, o sujeito não age dolosa ou culposamente. Daí não responder por crime doloso ou culposo.

O erro essencial vencível exclui o dolo, mas não a culpa, desde que previsto em lei o crime culposo [52].

Essa é a solução apontada pelo parágrafo 1º do art. 20 do Código Penal que dispõe ser isento de pena aquele que "por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo".

O erro de tipo também pode ocorrer nos ilícitos descritos na lei de improbidade. A hipótese mais comum consiste na dispensa indevida de licitação, prevista no inciso VIII do art. 10 da lei n 8.429/92, mas fundada em parecer técnico determinando se tratar de caso de dispensa de licitação. Há nesse caso erro de tipo essencial escusável, pois se exige que um agente público solicite um parecer jurídico antes de efetuar uma dispensa de licitação. O questionamento acerca da eventual ilegalidade do próprio parecer foge ao limite da diligência ordinária exigida pelo ordenamento jurídico. O eventual vício técnico no parecer somente pode ser imputado ao seu subscritor. Tratar-se-ia de erro escusável provocado por terceiro. Nessa hipótese o § 2º do art. 20 do Código Penal determina que "responde pelo crime o terceiro que determina o erro". Solução análoga pode ser adotada para a lei de improbidade responsabilizando-se o subscritor do parecer, caso este careça de fundamento [53].

Sobre o autor
Marcelo Harger

Advogado em Joinville (SC). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-graduado em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestre e Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ex-conselheiro do Conselho Estadual de Contribuintes de Santa Catarina. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo e Gestão Pública do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina - CESUSC. Professor em diversos cursos de graduação, pós-graduação e extensão universitária. Membro do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina – IDASC. Autor de diversos artigos científicos publicados nas principais revistas jurídicas do país. Autor dos livros "Os consórcios públicos na lei n° 11.107/05" e "Princípios Constitucionais do Processo Administrativo". Coordenador do livro "Curso de Direito Administrativo". Co-autor dos livros "ICMS/SC - regulamento anotado", "Direito Tributário Constitucional" e "Princípios Constitucionais e Direitos Fundamentais".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARGER, Marcelo. A utilização de conceitos de Direito Criminal para a interpretação da Lei de Improbidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2636, 19 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17434. Acesso em: 22 nov. 2024.

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