Resumo
Depois de observar na prática as dificuldades encontradas pela Administração Pública para descentralizar seus serviços de apoio, buscou-se analisar as hipóteses legais de terceirização de serviços, indicando as principais falhas desses tipos de ajustes. Apresenta-se uma análise das normas que regulam a matéria, da opinião doutrinária e jurisprudencial, a fim de indicar as diretrizes para uma contratação hígida. Adicionalmente, enfatiza-se a recente relativização da questão pelo Tribunal de Contas da União.
Palavras-chave: Terceirização; serviços; mão-de-obra; responsabilização.
Sumário: Introdução. 1. Responsabilização do Estado . 2. Requisito da inexistência de cargo público que detenha competência para realizar o serviço contratado. 3. Requisito da inexistência de subordinação. 4. Responsabilidade Fiscal. 5. Princípio da Continuidade do Serviço Público X Princípio do Concurso Público. Conclusões
Introdução
A partir da vigência do Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, a contratação de serviços terceirizados pela Administração Pública Federal passou a ser regulamentada por norma legal. O art. 10 do citado Decreto estabelece que a execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada.
Art. 10.
.........
§ 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.
Em seguida, o Decreto nº 2.271, de 07 de julho de 1997, passou a admitir expressamente a execução indireta de atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares, indicando, em seu parágrafo primeiro, as atividades a serem preferencialmente executadas mediante contratação (Art. 1º, caput).
Atualmente a terceirização de serviços encontra-se regulada pelas disposições da Lei n° 8.666/93 e pela Instrução Normativa SLTI n° 02/2008, alterada recentemente pela Instrução Normativa SLTI n° 03/2009, dentre outros instrumentos jurídicos afetos ao tema.
O artigo 6°, §2°, da IN 03/2009 descreve as diretrizes para a contratação de serviços terceirizados pela Administração Pública.
Art. 6º Os serviços continuados que podem ser contratados de terceiros pela Administração são aqueles que apóiam a realização das atividades essenciais ao cumprimento da missão institucional do órgão ou entidade, conforme dispõe o Decreto nº 2.271/97.
§ 2º O objeto da contratação será definido de forma expressa no edital de licitação e no contrato, exclusivamente como prestação de serviços, sendo vedada a utilização da contratação de serviços para a contratação de mão de obra, conforme dispõe o art. 37, inciso II, da Constituição da República Federativa do Brasil.
No mesmo sentido dispõe o Decreto 2.271/97.
Art. 1º No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade.
§ 1º As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de execução indireta.
A terceirização regular alcança somente serviços, e não mão-de-obra, sob pena de ofensa ao artigo 37, II e §2º da Constituição da República Federativa do Brasil, que prevê a aprovação em concurso público como regra para se estabelecer uma relação jurídica entre o indivíduo e a Administração Pública. Após a Constituição Federal de 1988, é requisito essencial para a investidura em cargo ou emprego público a aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos.
O Acórdão n 3091/2009 do Tribunal de Contas da União enfatiza:
TERCEIRIZAÇÃO. DOU de 18.09.2009, S. 1, p. 160. Ementa: determinação à ECT para que observe o disposto no art. 10, inc. II da IN/SLTI-MP nº 02/2008, abstendo-se de direcionar a contratação de pessoas para trabalhar nas empresas contratadas para o fornecimento de mão-de-obra terceirizada (item 1.7.3, TC-019.196/2007-9, Acórdão nº 4.786/2009-2ª Câmara).
Após sintetizar os requisitos essenciais do contrato de terceirização, o presente trabalho tem por escopo demonstrar o cuidado que a Administração Pública deve ter ao terceirizar serviços, enfatizando que as dificuldades do setor público não legitimam o sacrifício dos dispositivos e princípios constitucionais. Por mais que se necessite da mão-de-obra de apoio, não se pode auferi-la ao arrepio de todas as normas (princípios e regras) de Direito Constitucional e Administrativo, vez que os fins não justificam os meios.
2.Responsabilização do Estado
O Estatuto de Contratos e Licitações, Lei nº 8.666/93, cuida da relação entre o Estado-contratante e o particular-contratado, no que se refere a obrigações assumidas por este último para com terceiros. A regra geral é a que consta do art. 71 desse diploma: "O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato".
Segundo José dos Santos Carvalho Filho [01], o sentido da norma é claríssimo: se o contratado constitui uma empresa autônoma, a ela incumbem os ônus decorrentes das relações jurídicas que firme com terceiros. É o que emana da regra.
Assim, se o contratado, por exemplo, tem seus próprios empregados, a ele deve caber o pagamento dos encargos decorrentes do contrato de trabalho, como, por exemplo, o décimo terceiro salário, o acréscimo remuneratório das férias, as horas extraordinárias etc. A ele cabem também os encargos devidos à Previdência Social. O mesmo em relação aos débitos fiscais: se há imposto de renda a ser recolhido, essa obrigação é cominada ao contratado. Afinal, se o contrato de serviço envolve duas pessoas jurídicas autônomas, cada uma delas deve arcar com as obrigações próprias, vale dizer, aquelas que se originam de suas relações com terceiros, sejam pessoas privadas, seja o Poder Público.
Bem a propósito, Marçal Justen Filho [02] estampa a correta interpretação:
Também fica expressamente ressalvada a inexistência de responsabilidade da Administração Pública por encargos e dívidas pessoais do contratado. A Administração Pública não se transforma em devedora solidária ou subsidiária perante os credores do contratado. Mesmo quando as dívidas se originarem de operação necessária à execução do contrato, o contratado permanecerá como único devedor perante terceiros.
Somente subsiste a responsabilidade do Poder Público pelas obrigações do contratado relativas aos encargos previdenciários. Dispõe o art. 71, §2º, da Lei nº 8.666/93 (com a redação da Lei nº 9.032, de 28.4.1995): "A Administração Pública responde solidariamente com o contratado pelos encargos previdenciários resultantes da execução do contrato, nos termos do art. 31 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991".
Observe-se, entretanto, que estamos aludindo à terceirização legítima e real, ou seja, àquela que se formaliza pela celebração de contrato administrativo de serviços, sendo estes representados por atividades-meio da Administração, e sem simular a contratação ilegítima de locação de mão-de-obra.
A Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho é hoje o meio hábil para se verificar os abusos ocorridos nas terceirizações. Vejamos:
Súmula 331. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS LEGALIDADE.
I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei n. 6.019, de 3.1.1974).
II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).
III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20.6.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados a atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei n. 8.666, de 21.6.1993).
Os doutrinadores juslaboristas, tal como Delgado [03], afirmam que a Súmula nem poderia ter feito referência à responsabilidade da Administração Pública em casos de terceirizações, pois tal ofende a regra da responsabilidade objetiva do Estado, presente na Constituição Federal (art. 37, §6º). Lecionam ainda que, mesmo se entendendo pelo não cabimento da responsabilidade objetiva do Estado, será aplicável, pelo menos, a responsabilidade subjetiva. Assim, a má escolha da empresa contratada acarretará à Administração Pública culpa in eligendo e a má fiscalização da mesma caracteriza culpa in vigilando, respondendo a Administração pelos direitos trabalhistas devidos ao trabalhador empregado da prestadora de serviços.
Defende-se na justiça do trabalho que a Lei 8.666/93 tomou uma série de precauções para que a Administração Pública contrate com empresa idônea e responsável e, destarte, se o ente estatal observar e cumprir todas as determinações legais, não haverá risco de contratar com empresa inidônea. Além disso, prevê a Lei nº 8.666/93, em seus artigos 58, III e IV e 67, §§ 1º e 2º, que a entidade estatal pode e deve acompanhar e fiscalizar a execução dos contratos. Desse modo, a responsabilidade do tomador de serviços será subsidiária nos casos de terceirização lícita, enquanto que, nos casos onde houver fraude, a responsabilidade de empresa tomadora de serviços e empresa prestadora de serviços será solidária. Alega-se, pois, que contratada e poder público foram co-participes na fraude.
Em síntese, o entendimento unificado da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho é no sentido de não aplicação do art. 71 da LL., por ser o mesmo inconstitucional, e ainda porque a Súmula nº 331, IV, obsta o vínculo empregatício entre o ente da administração e o trabalhador, mas não veda a responsabilidade do Estado relativamente ao pagamento das verbas trabalhistas nos casos de terceirização.
No que tange à eventual inconstitucionalidade do §1º do art. 71 da Lei 866/93, tramita no Supremo Tribunal Federal a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16, pendente de julgamento, na qual se busca a declaração de constitucionalidade do citado dispositivo. Sustenta-se tese jurídica de interesse de toda a Fazenda Pública, motivo pelo qual há inúmeros pedidos de inclusão no feito na condição de Amicus Curiae.
Diante da divergência entre a Justiça do Trabalho e a Fazenda Pública, e até que se prolate decisão definitiva pela Corte Constitucional, resta à Administração procurar não celebrar ajustes que possam vir a ser enquadrados como terceirização ilícita, bem como envidar esforços no sentido da efetiva fiscalização dos contratos que firma, consoante orientação expressa da Instrução Normativa nº 02.
3.Requisito da inexistência de cargo público que detenha competência para realizar o serviço contratado
A legalidade da contratação alcança a alocação de serviços antes desempenhados por agentes ocupantes de cargos extintos ou em extinção.
Decreto n.º 2.271/1997:
Art. 1º No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade.
(...)
§ 2º Não poderão ser objeto de execução indireta as atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.
IN 03/2009:
Art.7º As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de execução indireta.
§ 1º Na contratação das atividades descritas no caput, não se admite a previsão de funções que lhes sejam incompatíveis ou impertinentes.
§ 2º A Administração poderá contratar, mediante terceirização, as atividades dos cargos extintos ou em extinção, tais como os elencados na Lei nº 9.632/98.
§ 3º As funções elencadas nas contratações de prestação de serviços deverão observar a nomenclatura estabelecida no Código Brasileiro de Ocupações – CBO, do Ministério do Trabalho e Emprego".(negrito nosso)
A Lei 9.632/98, dispondo sobre a extinção de cargos no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, assim determinou:
Art.1º Os cargos vagos integrantes da estrutura dos órgãos e entidades relacionados no Anexo I desta Medida Provisória ficam extintos, e os cargos ocupados, constantes do Anexo II, passam a integrar Quadro em Extinção.
Parágrafo único. Os cargos ocupados serão extintos quando ocorrer a sua vacância, nos termos do art. 33 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, assegurando-se a seus ocupantes todos os direitos e vantagens estabelecidos, inclusive promoção.
Art. 2º As atividades correspondentes aos cargos extintos ou em extinção, constantes dos Anexos desta Lei, poderão ser objeto de execução indireta, conforme vier a ser disposto em regulamento.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto neste artigo às atividades de Motorista e Motorista Oficial.
A exceção à admissão por concurso público contida no Decreto 2.271/97 e na IN SLTI 03/2009 respeita os princípios da razoabilidade, da não solução de continuidade da prestação dos serviços públicos e da eficiência, uma vez que autoriza a contratação indireta para execução de atividades inerentes às categorias funcionais, tão-somente quando o cargo estiver total ou parcialmente extinto, tendo em vista que em tal situação não haveria a possibilidade de contratação por concurso público.
Lado outro, a IN SLTI 03/2009, em seu artigo 9°, tratou de trazer rol de alocações não salvaguardadas pela legislação, a saber:
Art. 9º É vedada a contratação de atividades que:
I - sejam inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, assim definidas no seu plano de cargos e salários, salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal;
II - constituam a missão institucional do órgão ou entidade; e
III - impliquem limitação do exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público, exercício do poder de polícia, ou manifestação da vontade do Estado pela emanação de atos administrativos, tais como:
aplicação de multas ou outras sanções administrativas;
a concessão de autorizações, licenças, certidões ou declarações;
atos de inscrição, registro ou certificação; e
atos de decisão ou homologação em processos administrativos.
Nesse sentido, as contratações acima elencadas, por não estarem amparadas pela normatização, ferem os princípios da legalidade, da eficiência (uma vez que é através do concurso público que busca a Administração a contratação de pessoal qualificado, selecionado os melhores e mais preparados participantes do certame) e da isonomia (dado que tais alocações não se prestam a observar a igualdade entre os administrativos em face do Poder Público).
Não sendo o interesse público algo que a Administração dispõe ao seu talante, mas, pelo contrário, bem de todos e de cada um, já assim consagrados pelos mandamentos legais que o erigiram à categoria de interesse desta classe, impõe-se, como consequencia, o tratamento impessoal, igualitário ou isonômico que deve o Poder Público dispensar a todos os administrados. [04]
Veja-se que, a despeito de ter o artigo 8° da IN SLTI 03/2009 permitido a contratação descentralizada para a função de apoio administrativo, tal possibilidade restringe-se às atividades de caráter ancilar, subsidiário, acessório, não afetas à processualística administrativa. Dito isto, tem-se que com muita razão tratou o artigo 9° daquele ato normativo de vedar a terceirização de serviços quando inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade. Vejamos os textos dos artigos ora comentados:
Art. 8º Poderá ser admitida a alocação da função de apoio administrativo, desde que todas as tarefas a serem executadas estejam previamente descritas no contrato de prestação de serviços para a função específica, admitindo-se pela administração, em relação à pessoa encarregada da função, a notificação direta para a execução das tarefas previamente definidas.
Art. 9º É vedada a contratação de atividades que:
I - sejam inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, assim definidas no seu plano de cargos e salários, salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal;
II - constituam a missão institucional do órgão ou entidade; e
(...).
Cabe aqui colacionar o enunciado da Súmula 97 do TCU acerca da matéria:
Ressalvada a hipótese prevista no parágrafo único do art. 3º da Lei 5.645, de 10/12/70 (Decreto-lei 200, de 25/02/67, art. 10, §§ 7º e 8º), não se admite, a partir da data da publicação do ato de implantação do novo Plano de Classificação e Retribuição de Cargos do Serviço Civil da União e das autarquias, a utilização de serviços de pessoal, mediante convênios, contratos ou outros instrumentos, celebrados com Fundações ou quaisquer entidades públicas ou privadas, para o desempenho de atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo referido Plano.
A vedação é digna de nota porque não faz sentido a terceirização quando a atividade é tida por relevante a ponto de merecer destaque em plano de cargos e salários. Seria ilógico desconsiderar a profissionalização da função pública para admitir que terceiros substituam servidores públicos.