1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho, sem a pretensão de ser conclusivo, tem o intuito de oferecer aos operadores do direito uma pequena contribuição sobre a legalidade ou não do art. 1º da Resolução ANTT nº. 233/2003, bem como tecer alguns comentários sobre o instituto jurídico denominado transbordo.
Tal anseio se justifica na exata medida em que muitos questionamentos jurídicos são feitos pelos administrados acerca da atuação da Agência Nacional dos Transportes Terrestres – ANTT ou de algum órgão conveniado com base no art. 1º da referida Resolução.
2. DESENVOLVIMENTO
Depois do breve intróito, neste item, passa-se a desenvolver as ideias centrais do tema proposto, tais como o que diz respeito ao poder normativo das agências reguladoras, à fixação do conceito e à natureza jurídica do instituto do transbordo, bem como a posição jurisprudencial majoritária acerca do tema.
2.1 O PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
Na esteira da chamada Reforma Administrativa do Estado, foram criadas no ordenamento jurídico pátrio as chamadas agências reguladoras. São pessoas jurídicas, com direitos e obrigações próprios, pertencentes à Administração Indireta e que, como o próprio nome está a sugerir, têm por finalidade regular determinadas atividades (serviços públicos, uso de bem público) e, se for o caso, exercer poder de polícia. Têm natureza jurídica de autarquias, rotuladas de especiais, tendo em vista maiores poderes conferidos por meio das correspondentes leis criadoras (rejuvenescimento das autarquias para atender ao Princípio da Eficiência Administrativa).
Dentre as atribuições conferidas a essas agências, ANTT incluso, destaca-se a do poder normativo ou regulamentar. As suas leis criadoras conferem-lhes o poder para regular a matéria açambarcada pela competência prevista legalmente (Princípio da Especialização).
Com efeito, é notório o poder regulamentar que possui o Poder Executivo para dar exequibilidade às leis e aos atos normativos provenientes do Poder Legislativo. A propósito, é bem verdade que a Constituição não eliminou a competência normativa do Executivo. Determinou, isto sim, a preponderância da lei, mas admitiu a existência de regulamentos. Desse modo, a interpretação que se deve adotar para o art. 84, inciso IV, da Carta Magna não pode ser restritiva, a ponto de afastar uma ampla competência normativa para a complementação da Lei. Esse tem sido o entendimento de ilustres administrativas brasileiros, in verbis:
Não se pode adotar interpretação literal restritiva, como querem alguns, que invocam a expressão "fiel execução" como fundamento para a tese de que o regulamento poderia apenas traduzir a vontade já contida na lei. Não se interpreta a Constituição através da mera tradução das palavras. Ou seja, a norma do art. 84, inc. IV, da CF/88 não significa, de modo necessário, a exclusão da possibilidade de ampla competência normativa para complementação da lei. A "fiel execução" pode ser interpretada como aquela que assegura a realização da finalidade buscada pelo Direito, mesmo que isso não signifique a mera repetição dos termos da regulação legislativa. Assegurar a fiel execução da lei propicia, por isso, a adoção de determinações que, respeitando o espírito ou a finalidade da lei, configurem inovação à disciplina por ela adotada [01]. (grifou-se)
O que se busca, enfim, é propiciar a perfeita e integral aplicação da norma produzida legislativamente, o que pode importar a necessidade de adição ao conteúdo normativo até então existente. Ou seja, o preenchimento de espaços vazios na disciplina contida por uma lei não configura ofensa à determinação constitucional de atuação orientada ao promover a fiel execução da lei. Nesse sentido, podem ser lembradas as palavras do Min. Celso de Mello, ao avaliar pedido de medida liminar no julgamento da ADI nº. 561-8 [02], quando observou que
É preciso ter presente que, não obstante a função regulamentar efetivamente sofra os condicionamentos normativos impostos, de modo imediato, pela lei, o Poder Executivo, ao desempenhar concretamente a sua competência regulamentar, não se reduz à condição de mero órgão de reprodução do conteúdo material do ato legislativo a que se vincula.
Ainda em defesa da tese, vale a pena transcrever mais algumas palavras do prof. Marçal Justen Filho, segundo o qual,
Excluindo-se a possibilidade de o regulamento conter inovação em face da lei, o resultado seria sua inutilidade. Se todas as inovações à ordem jurídica devessem estar contidas no corpo da própria lei, então não haveria maior função para o regulamento. Logo, nem teria cabimento a Constituição referir-se à figura. Se o fez, alguma função deve ser a ela reconhecida, o que significa a possibilidade de disciplina complementar, inovadora em face das disposições legais [03]. (destacou-se)Ademais disso, o argumento da mera reiteração dos termos da lei conduz à inutilidade da regra constitucional.
Portanto, é a própria lei, em sentido formal, quem estabelece os limites em que tal atribuição poderá ser exercida, como, mais uma vez, ensina o já referido doutrinador:
Na quase totalidade dos casos, a Constituição alberga o princípio da legalidade comum. Isso significa a necessidade de lei inaugural, que crie os direitos e deveres e estabeleça os limites da disciplina das condutas consideradas como obrigatórias, proibidas ou permitidas. Uma vez que assim seja determinado, a lei pode atribuir à autoridade administrativa a competência para eleger critérios e formular escolhas, com uma margem de autonomia maior ou menor, para produção da solução mais satisfatória para atender ao interesse público.
O entendimento doutrinário e jurisprudencial manso e pacífico é o de que a atribuição legislativa da discricionariedade não infringe qualquer instituto constitucional nem se confunde com a arbitrariedade. A decisão adotada por ocasião da aplicação da lei não reflete avaliações livres e ilimitadas do administrado, mas traduz a concretização da solução mais adequada e satisfatória, tomando em vista critérios abstratamente previstos em lei ou derivados do conhecimento técnico-científico ou da prudente avaliação da realidade [04]. (salientou-se)
Tal atribuição decorre da impossibilidade da lei regular, abstrativamente e de maneira efetiva, as diversas matérias que demandam conhecimentos técnicos específicos. Assim, fácil constatar que as agências reguladoras especializadas têm os meios técnicos mais adequados para formular a melhor solução normativa em atendimento ao interesse público. Este é o entendimento, uma vez mais, de Marçal Justen Filho na esteira da doutrina de Celso Bandeira de Mello:
A discricionariedade é a solução jurídica para as limitações e defeitos do processo legislativo de geração de normas jurídicas. Por isso mesmo, é da essência da discricionariedade que a autoridade administrativa formule a melhor solução possível, adote a disciplina jurídica mais satisfatória e conveniente ao interesse público. Como ensinou magistralmente Celso Antônio Bandeira de Mello, se fosse indiferente à ordem jurídica o efetivo atingimento do interesse público, em determinada situação, o legislador teria optado por fornecer desde logo a solução normativa. Se optou por remeter a escolha à autoridade administrativa, tal somente pode justificar-se por ser imperiosa a obtenção da solução mais adequada.
Em suma, a outorga da discricionariedade configura uma liberdade, mas não uma liberalidade, do Legislativo. Como o Legislativo tem o dever de formular a melhor solução na disciplina normativa acerca das competências estatais, são a ele atribuídos determinados poderes. O poder reconhecido constitucionalmente ao Legislativo de instaurar competências administrativas discricionárias tem natureza funciona" [05]. (grifou-se)
Trata-se do que se convencionou chamar de "discricionariedade técnica", como ensina José dos Santos Carvalho Filho:
De acordo com o sistema clássico da separação de poderes, não pode o legislador, fora dos casos expressos na Constituição, delegar integralmente seu poder legiferante aos órgãos administrativos.
(...)
Modernamente, contudo, em virtude da crescente complexidade das atividades técnicas da Administração, passou a aceitar-se nos sistemas normativos, originalmente na França, o fenômeno da deslegalização, pelo qual a competência para regular certas matérias se transfere da lei (ou ato análogo) para outras fontes normativas por autorização do próprio legislador: a normatização sai do domínio da lei ("domaine de la loi") para o domínio de ato regulamentar ("domaine de l’ordonnance"). O fundamento não é difícil de conceber: incapaz de criar a regulamentação sobre algumas matérias de alta complexidade técnica, o próprio Legislativo delega ao órgão ou à pessoa administrativa a função específica de instituí-la, valendo-se de especialistas e técnicos que melhor podem dispor sobre tais assuntos.
(...)
Trata-se de modelo atual do exercício do poder regulamentar, cuja característica básica não é simplesmente a de complementar a lei através de normas de conteúdo organizacional, mas sim de criar normas técnicas não contidas na lei, proporcionando, em conseqüência, inovação no ordenamento jurídico. Por esse motivo, há estudiosos que o denominam de poder regulador para distingui-lo do poder regulamentar tradicional.
Exemplos dessa forma especial de poder regulamentar têm sido encontrados na instituição de algumas agências reguladoras, entidades autárquicas às quais o legislador tem delegado a função de criar as normas técnicas relativas a seus objetivos institucionais [06]. (destacou-se)
No caso específico da ANTT, a Lei nº. 10.233/2001 [07] atribuiu a esta Agência a possibilidade de edição de normas e regulamentos acerca de transporte interestadual de passageiros, conforme disposto em seu art. 24, inciso IV, bem como a possibilidade de aplicar sanções aos que desrespeitem suas normas, consoante a redação do art. 78-A do mesmo diploma, in verbis:
Art. 24. Cabe à ANTT, em sua esfera de atuação, como atribuições gerais:
(...)
IV – elaborar e editar normas e regulamentos relativos à exploração de vias e terminais, garantindo isonomia no seu acesso e uso, bem como à prestação de serviços de transporte, mantendo os itinerários outorgados e fomentando a competição.
Vê-se, portanto, que a Resolução ANTT nº. 233/2003 encontra seu fundamento de validade justamente no poder normativo outorgado à Autarquia para regular e fiscalizar a prestação dos serviços de transportes terrestres. Compete à ANTT, na qualidade de entidade responsável pela concessão, permissão e autorização de serviços de transporte terrestre, fiscalizar a prestação de tais serviços, aplicando, se for o caso, as penalidades cabíveis. O que não se concebe é que, como detentora de um munus público, e tendo a obrigação de fiscalizar os permissionários e autorizatários do serviço público, bem como os particulares que se aventuram em prestar serviço de transporte interestadual e até internacional de passageiros, dentro da sua esfera de atuação, a ANTT não possa estabelecer as penalidades mínimas no caso de descumprimento de normas de segurança no transporte de passageiros.
A jurisprudência, aliás, por mais de uma vez reconheceu a competência normativa das agências reguladoras, com as peculiaridades que lhes são inerentes. Nesse sentido, o STF discutiu o poder normativo abstrato das agências reguladoras na apreciação da Medida Cautelar na ADIN nº. 1.668 [08]. Tratou-se de impugnação promovida por diversos partidos políticos contra inúmeras disposições da Lei nº. 9.472/1997. Ainda que por maioria, foi adotada interpretação conforme a Constituição para dispositivos que reconheciam competência normativa à ANATEL, impondo-se reconhecer que tal poder apresentava natureza regulamentar e deveria observar os limites legais.
No Tribunal Regional Federal - TRF da 1ª Região, a competência normativa das agências reguladoras também já foi ponto de entendimento uníssono entre os Desembargadores Federais que compõem a citada Corte. Especialmente quanto à Resolução ANTT nº. 17/02, que compilou o Decreto nº. 2.521/98, o TRF da 1ª Região já definiu a possibilidade da ANTT exercer a competência normativa abstrata especificada no art. 24, inciso IV, da Lei nº. 10.233/01, in verbis:
Min. TEORI ZAVASCKI). 8. Apelação da União e remessa oficial providas: segurança denegada. 9. Autos recebidos em Gabinete em 08/09/2005 para lavratura do acórdão. Peças liberadas em 13/09/2005, para publicação do acórdão.PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO - LIBERAÇÃO DE VEÍCULO APREENDIDO POR TRANSPORTE IRREGULAR DE PASSAGEIROS (DECRETO Nº. 2.521/98) - DESPESAS (TRANSBORDO) E MULTA EM FACE DA APREENSÃO: DEVIDAS E IMPUTÁVEIS COMO REQUISITO PRÉVIO À LIBERAÇÃO DO VEÍCULO - SENTENÇA REFORMADA: SEGURANÇA DENEGADA. 1. Ao poder concedente incumbe aplicar as penalidades regulamentares e contratuais (art. 29, II, da Lei nº. 8.987/95). 2. O Dec. 2.521/98 (art. 83) veio regulamentar, entre outras, as formas de penalidades por atos contrários às leis que disciplinam o setor, na mesma linha da Lei nº. 10.233/2001, que outorgou à ANTT a atribuição de regulamentar o serviço de transporte. 3. A Resolução ANTT nº. 17/2002 apenas "compilou" o Decreto 2.521/98. 4. COLHE-SE DA DOUTRINA QUALIFICADA QUE INFRAÇÕES E SANÇÕES ADMINISTRATIVAS, INSTITUÍDAS POR LEI, PODEM SER ESPECIFICADAS EM REGULAMENTOS. 5. Segundo a regulamentação do transporte coletivo de passageiros, esse serviço público só pode ser explorado mediante concessão do Poder Público. Na falta desse ato específico ou de violação a seus termos regulamentares, a apreensão do veículo infrator é imediata e de ordem legal, para que não prossiga no ilícito e nele não reincida, como usualmente ocorre. 6. Uma coisa é apreender o veículo para coagir o proprietário ao pagamento de multa: ilegal. Coisa outra é apreender veículo praticando ilícito administrativo e condicionar sua liberação à regularização do ofício, pagamento da multa e das demais despesas feitas pelo Poder Público em razão da infração ao regime de concessão de transporte: auto-executoriedade do ato administrativo. 7. Se válida e eficaz a autuação e a retenção do veículo, é legítimo exigir-se a quitação da multas e das demais despesas advindas da apreensão como requisitos para sua devolução, por força do art. 262, §2º, do CTB, no dizer do STJ (REsp nº. 593.458/RJ, Rel.
Portanto, reiterando o entendimento acima exposto, o reconhecimento da competência normativa da ANTT é secundária da outorgada legal que a instituiu. Desse modo, a competência normativa derivada, da qual ora se trata, concretiza-se como um conjunto de poderes produzidos por decisão legislativa que concede à Autarquia a possibilidade de, através da edição de atos infralegais, regular o setor de transporte terrestres de passageiros.
2.2. DA ANÁLISE DO INSTITUTO JURÍDICO DO TRANSBORDO
A Resolução ANTT nº. 233/2003, nos parágrafos do seu art. 1º [09], estabelece a disciplina jurídica do transbordo, motivo pelo qual vale merece transcrição literal os citados dispositivos [10]:
§ 1º Na hipótese das alíneas "a", "b" e "g" do inciso IV deste artigo, e, quando não for possível sanar a irregularidade no local da infração, das alíneas "k" e "l" do inciso I, "i" do inciso II e "c" a "f" e "h" a "k" do inciso IV deste artigo, a continuidade da viagem se dará mediante a realização de transbordo, sem prejuízo das penalidades e medidas administrativas a serem aplicadas pela autoridade de trânsito.
§ 2º O transbordo consiste na apresentação, pelo infrator, de veículo de permissionária ou autorizatária de serviços disciplinados nesta Resolução ou, considerando o número de passageiros transportados, de bilhete(s) de passagem emitido(s) em linha operada por permissionária.
§ 3º Caso a empresa infratora não efetive o transbordo no prazo de 02 (duas) horas, contado a partir da autuação do veículo, na forma do § 2º deste artigo, a fiscalização requisitará veículo ou bilhete(s) de passagem para a continuidade da viagem.
§ 4º Caberá à empresa infratora o pagamento da despesa de transbordo referida nos §§ 2º e 3º deste artigo, identificada no "Termo de Fiscalização Com Transbordo" (Anexo I), expedido pela fiscalização, tomando-se por base a distância a ser percorrida, por passageiro transportado, e o coeficiente tarifário vigente para os serviços regulares da mesma categoria do executado pela infratora ou do executado pela permissionária ou autorizatária que presta o transbordo, se esse for de categoria inferior.
§ 5º Ocorrendo interrupção ou retardamento da viagem, as despesas de alimentação e pousada dos passageiros correrão às expensas da empresa infratora.
§ 6º A fiscalização liberará o veículo da empresa infratora após a comprovação do pagamento das despesas referidas nos §§ 4º e 5º deste artigo, independentemente do pagamento da multa decorrente, sem prejuízo da continuidade da retenção por outros motivos, com base em legislação específica.
§ 7º O pagamento da multa não elide o infrator da responsabilidade de sanar a irregularidade, quando assim couber. (salientou-se)
De acordo com o entendimento pacífico, conceituar é a tarefa de desenvolver e/ou enunciar um conceito acerca de algo. Para o que aqui interessa, a conceituação do transbordo pode ser tida como a medida cautelar colocada a disposição da Administração para que
Com efeito, para que o transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros possa ser efetuado a contento, a Administração Pública Federal, responsável pela exploração do referido serviço a teor do que dispõe o art. 21, inciso XII, alínea "e", da CF/1988, através da ANTT, deve dispor de meios cautelares eficientes para que eventuais descumprimentos da legislação vigente por parte das delegatárias não implique em prejuízos para os cidadãos-usuários. Destarte,
desde que haja necessidade de interrupção ou retardamento da viagem por ato ilegal imputado à prestadora do serviço e esta, no prazo de duas horas contado a partir da autuação do veículo, não providencie meio de transporte alternativo para os usuários, deve a ANTT requisitar a outras permissionárias ou autorizatárias bilhetes de passagem para a finalização do serviço contratado, ficando a cargo da empresa infratora o pagamento desse transporte e das demais despesas de alimentação e pousada dos passageiros, conforme disposto, do mesmo modo, no art. 741 do Código Civil [11] em vigor, in verbis:Art. 741. Interrompendo-se a viagem por qualquer motivo alheio à vontade do transportador, ainda que em conseqüência de evento imprevisível, fica ele obrigado a concluir o transporte contratado em outro veículo da mesma categoria, ou, com a anuência do passageiro, por modalidade diferente, à sua custa, correndo também por sua conta as despesas de estada e alimentação do usuário, durante a espera de novo transporte.
Outrossim, deve ser ressaltado que, nos casos previstos nos parágrafos do art. 1º da Resolução nº. 233/2003, a retenção só ocorrerá durante o prazo para pagamento das despesas de transbordo, haja vista que a empresa que presta o serviço de socorro não pode e nem deve arcar com os custos das despesas de transporte da qual não seja contratante, circunstância que caracterizaria a figura do enriquecimento sem causa descrita no art. 884 do Código Civil:
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários (...).
Desse modo, percebe-se que, com a adoção da figura do transbordo, a ANTT obteve um remédio eficaz para que os passageiros transportados possam continuar sua viagem após a constatação, pelos órgãos de fiscalização, de vício insanável na prestação do serviço, atitude que contribui para assegurar a proteção à higidez e à integridade física dos passageiros.
Ocorre que, consoante a redação do § 6º do art. 1º da Resolução ANTT nº. 233/2003, "a fiscalização liberará o veículo da empresa infratora após a comprovação do pagamento das despesas referidas nos §§ 4º e 5º deste artigo, independentemente do pagamento da multa decorrente, sem prejuízo da continuidade da retenção por outros motivos, com base em legislação específica". Justamente com relação a esta disposição é que as empresas fiscalizadas se insurgem e passam a acionar o Poder Judiciário em busca da tutela de um pretenso direito. As alegações formuladas, via de regra mediante a impetração de mandados de segurança, são as de que tal atitude, a pretexto de pretender proteger os usuários do serviço público, fere os direitos insculpidos nos incisos II, XV e LIV do caput do art. 5º da Constituição Federal, ou seja, os Princípios da Legalidade, da Livre Locomoção e do Devido Processo Legal.
No entanto, como se passa a demonstrar, tais argumentos são resistem a uma análise mais acurada, senão vejamos.
O primeiro argumento geralmente levantado pelas empresas administradas, segundo o qual a apreensão do veículo até a comprovação do pagamento das despesas de transbordo seria contrária ao Princípio da Legalidade, não resiste à constatação de que tal previsão, conforme exaustivamente demonstrado no item 2.1 deste trabalho, encontra amparo no poder regulador ou normativo delimitadamente outorgado às agências reguladoras, dentre as quais a ANTT. Assim, mais uma vez calha reiterar que as resoluções editadas pela ANTT não ultrapassam a competência regulamentar do Poder Executivo, inclusive a Resolução da ANTT nº. 233/03, que regulamenta a imposição das penalidades no âmbito de sua esfera de fiscalização. Referida Resolução apenas adequou os tipos infracionais aos parâmetros técnicos apreciados no âmbito da discricionariedade técnica outorgadas às agências reguladoras.
Em segundo lugar, impende asseverar que a adoção da medida cautelar da retenção do veículo por infração aos comandos da legislação específica de transporte só ocorrerá durante o período em que se espera o saneamento da irregularidade (como a ausência de algum equipamento obrigatório de segurança, por exemplo) ou do pagamento das despesas de transbordo (quando necessário), momento a partir do qual, após a comprovação da quitação, ocorre a liberação do veículo, de modo que asseverar restrição ao Princípio da Liberdade de Locomoção não parece ser a melhor saída, já que tal direito, como qualquer outro, inclusive os de envergadura constitucional, não podem ser exercidos sem o respeito às demais normas do ordenamento vigente.
Por fim, com relação ao último argumento geralmente levantado pelas empresas infratoras, de acordo com o qual a atitude de apreensão do veículo até o efetivo pagamento das despesas de transbordo implicaria em ofensa ao Princípio do Devido Processo Legal, vale dizer que a retenção não prejudica a defesa da pessoa física ou jurídica infringente, pois visa apenas resguardar a segurança e a efetiva aplicação das penalidades previstas na legislação sobre o tema. Com efeito, por meio do referido ato, a ANTT demonstra aos infratores sua intolerância com a prestação de serviços de forma irregular, oportunidade em que oferece, nos casos em que couber, a possibilidade de sanar a falha encontrada pela fiscalização, sob pena de interrupção da viagem empreendida. Aduza-se, ainda, que o infrator, na forma da Resolução ANTT nº. 442/2004 – responsável, dentre outras coisas, pela disciplina, no âmbito da ANTT, do processo administrativo para apuração de infrações e aplicação de penalidades decorrentes de condutas que infrinjam a legislação de transportes terrestres -, sempre deve ser devidamente notificado da autuação para apresentar defesa, razão pela qual não resta qualquer mácula aos princípios do Contraditório e da Ampla Defesa.
2.3. DA JURISPRUDÊNCIA MAJORITÁRIA ACERCA DO TEMA
O entendimento jurisprudencial dominante sobre o transbordo, forte nas razões acima elencadas, bem como na ideia de que as despesas administrativas pertinentes ao instituto decorrem de exigência legítima, porquanto advindas do exercício regular do poder normativo e de fiscalização da ANTT, são devidamente representadas pelos precedentes que abaixo se seguem:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. APREENSÃO DE VEÍCULO. DESPESAS DE TRANSBORDO. (...) 2. É legal e constitucional a exigência de reembolso imediato das despesas de transbordo dos passageiros que tiveram a viagem interrompida, feito por meio de concessionária, cujos serviços foram requisitados para transportá-los ao local de destino. Precedentes desta Corte. 3. Agravo de instrumento a que se dá provimento. Agravo regimental não conhecido [12].
ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. APREENSÃO DE VEÍCULO. LIBERAÇÃO CONDICIONADA AO PRÉVIO PAGAMENTO DA MULTA E DESPESAS DE TRANSBORDO. 1. A jurisprudência tem considerado inadmissível a retenção de veículo apreendido pela Polícia Rodoviária Federal, como meio coercitivo de recolhimento do valor da multa (STJ, AgRg no REsp 1.027.557/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJe de 26/02/2009). 2. Todavia, a jurisprudência da Quinta e Sexta Turmas é pacífica no sentido de que é legítima a retenção do veículo, até o efetivo reembolso das despesas de transbordo (AG 2008.01.00.033540-7/BA, Quinta Turma, Rel. Juiz Federal Marcelo Albernaz (conv.), e-DJF1 de 18/12/2008, p.534 e AG 2007.01.00.008275-1/DF, Sexta Turma, Rel. Des. Federal Daniel Paes Ribeiro, DJ de 01/10/2007, p.93). 3. Agravo de instrumento da União parcialmente provido [13].
ADMINISTRATIVO. TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE PASSAGEIROS. AUSÊNCIA DE PERMISSÃO. APREENSÃO DE VEÍCULO. TRANSBORDO. MULTA. 1. Não pode o Poder Judiciário substituir a Administração para autorizar, conceder ou permitir, ainda que em caráter precário, a exploração de serviço de transporte coletivo interestadual, em face da demora do Poder Executivo em decidir pleito administrativo sobre a questão. Precedentes do STJ. 2. O arrendamento de permissão de transporte de passageiros, para ser válido, exige a anuência do poder concedente, nos termos do §1º do artigo 30 da Lei n° 10.233/01, o que torna ilícito o transporte realizado. 3. A ANTT, nos termos da Lei n° 10.233/01, está autorizada a regulamentar e fiscalizar o transporte rodoviário de passageiros, tendo disciplinado a matéria pela Resolução n° 233. 4. O transporte rodoviário de passageiros por empresa que não seja permissionária do serviço sujeita a prestadora de serviço irregular às mesmas sanções que estariam sujeitos os permissionários, sem prejuízo de outras sanções administrativas, civis ou penais pertinentes. 5. Lícita a apreensão do veículo e sua retenção até que seja efetivado o transbordo dos passageiros transportados irregularmente, às custas da empresa transportadora, a teor do disposto na Resolução n° 233, combinado com o artigo 741 do Código Civil. 6. Descabe a retenção do veículo para fins de ver adimplida sanção pecuniária, porque configuradora de desvio de finalidade, nos termos da súmula 323 do STF [14].
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. TRANSPORTE IRREGULAR DE PASSAGEIROS. ART. 231, VIII, DO CTB. MEDIDA ADMINISTRATIVA: RETENÇÃO DO VEÍCULO. LIBERAÇÃO CONDICIONADA AO PAGAMENTO DA MULTA. IMPOSSIBILIDADE. 1. Tratam os autos de mandado de segurança impetrado por Andôvale Transportes Turísticos Ltda. visando a liberação de veículo apreendido por realizar transporte rodoviário interestadual de passageiros sem a devida licença, independentemente do pagamento de multa e demais despesas. Sentença concedeu parcialmente a segurança. Acórdão recorrido negou provimento às apelações interpostas por ambas as partes, entendendo ser ilegal a manutenção da retenção do veículo como forma de coerção para o pagamento de multa, mas condicionando, entretanto, a liberação deste ao reembolso das despesas do transbordo dos passageiros feito por terceiro. Recurso especial de União alegando violação dos arts. 231, VIII, do CTB, e 85, § 3º, do Decreto 2.521/98, defendendo a legalidade da apreensão e da exigência do pagamento da multa imposta como condição para liberação do veículo apreendido. Sem contra-razões. 2. Para a infração de trânsito descrita no art. 231, VIII, o CTB comina somente a pena de multa, fixando como medida administrativa a mera retenção do veículo. 3. A medida administrativa de retenção do veículo tem a finalidade de sanear uma situação irregular (art. 270 do CTB). Portanto, tão logo resolvido o impasse, deve-se restituir o veículo ao seu proprietário, independentemente do pagamento da multa aplicada. Precedentes. 4. Recurso especial não-provido. (REsp 790.288/MG, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/09/2006, DJ 05/10/2006, p. 259) [15]. (destaques da transcrição)
De acordo com o que se percebe, a jurisprudência majoritária, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, é muito cuidadosa em distinguir a impossibilidade de apreensão do veículo para o pagamento de multa da possibilidade de retenção do mesmo bem até que o pagamento das despesas de transbordo sejam efetuadas, preocupação também compartilhada pela ANTT quando da elaboração do § 6º do art. 1º da Resolução ANTT nº. 233/2003, de acordo com o qual "a fiscalização liberará o veículo da empresa infratora (...), independentemente do pagamento da multa decorrente, sem prejuízo da continuidade da retenção por outros motivos, com base em legislação específica". Vale dizer que a ANTT não está autorizada a manter apreendido veículo em decorrência da imputação de penalidade (multa), o que faria cair por terra princípios comezinhos de direito.
Tal distinção ocorre porque o pagamento do transbordo não é penalidade imposta ao infrator pelos órgãos de fiscalização, mas sim ressarcimento de despesas decorrentes da prestação de serviços por outra transportadora, podendo o infrator negar-se a cumpri-la, hipótese na qual resta impossibilitada a liberação do veículo que se encontra em situação irregular. Ademais, quando os órgãos de fiscalização (da ANTT ou de conveniado) retêm um veículo para pagamento do transbordo não o fazem no sentido de punição, mas apenas para garantir a perpetuidade da prestação de socorro aos usuários que se encontram em desamparo em decorrência da atuação de empresas ilegais, que se encontram impedidas de prestar o serviço.