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A jurisdição como política pública

Agenda 30/11/2010 às 09:10

RESUMO:

O artigo investiga a possibilidade de configurar a jurisdição política pública, perquirindo o objeto das políticas públicas e sua extensão. Outrossim, apresenta a relevância da questão da percepção da jurisdição entre tais políticas para o desenvolvimento das suas atividades.

Palavras-chaves: Políticas públicas; Jurisdição; Governo; Função política; Separação dos poderes.

ABSTRACT: This paper searches the possibility of characterize the jurisdiction as a public policy, scanning its object and range. On the other hand, it deals to the matter of the recognizing (or not) the jurisdiction as public policy to its own development.

Key-words: Public policy; Jurisdiction; Government; Politics; Separation of powers.


1 INTRODUÇÃO

A expressão "políticas públicas" em geral traz consigo a ideia de exercício da função administrativa do poder. Ao menos, esta é a mais frequente leitura que se faz de definições de políticas públicas que as apresentam como atividade emanada do governo. Mas convém questionar: circunscreve-se a política pública à função administrativa do poder? Será possível reconhecer que se faz política pública ao exercer-se, por exemplo e a propósito, a jurisdição?

Advém da doutrina de Montesquieu a tripartição do poder, rectius, tripartição do exercício do poder, desdobrando-o consoante suas três funções: legislativa, executiva (ou administrativa) e jurisdicional.

Coube, pois, à jurisdição a tarefa de dizer o direito no caso concreto e com tal expediente distribuir justiça. Sendo a jurisdição função do poder estatal, é ela própria poder do Estado e, dessarte, outro não poderia ser o fim da jurisdição senão o fim do Estado: promover o bem comum. E, como tal, tem-se reconhecido a participação da jurisdição no controle das políticas públicas ao julgar o seu mérito quanto à adequação, oportunidade, conveniência e eficiência e mesmo a exigir a criação e implementação de políticas públicas, inclusive inovando. Não é desta questão que trata o presente artigo.

Trata este ensaio de investigar se o exercício da jurisdição não seria ele próprio política pública, independentemente de a jurisdição debruçar-se sobre outras opções governamentais no trato da coisa pública. Assim, exemplificativamente, perquire se seria uma questão de política pública, a reger-se, pois, também, pelos princípios desta, o modo pelo qual o Estado concebe e distribui a prestação jurisdicional. Estende-se o propósito deste artigo, ainda, a problematizar a percepção da jurisdição como política pública e sua relevância para o desenvolvimento das atividades jurisdicionais.


2 A ESSÊNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

As definições de políticas públicas presentes na literatura científica dão grande relevo ao locus em que se desenvolvem os embates em torno de distintos interesses, as manifestações de preferências e concepção e adoção de ideias, qual seja, o governo (SOUZA, 2006, p. 3). Assim, define Lynn políticas públicas como "conjunto de ações de governo que irão produzir efeitos específicos" e Peters como "soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos" e Mead como "um campo dentro do estudo da política que analisa o governo à luz de grandes questões públicas" (apud SOUZA, 2006, p. 3, grifos nossos).

É certo, todavia, que as políticas públicas são caracterizadas não apenas a partir das fontes de que promanam as decisões, mas também pelos conteúdos destas, que, por seu teor, influenciam a vida dos cidadãos. Neste diapasão, não são políticas públicas quaisquer condutas dos agentes de governo, mas tão-somente aquelas condutas que tenham o condão de influenciar a vida na polis.

Por outro lado, em que pese a tradição de debruçarem-se os estudos de políticas públicas sobre as decisões, bem como sobre o procedimento para a sua formação (FARIA, 2003, p. 2), ganha expressão o estudo do procedimento posterior à decisão, em especial, a implementação das políticas públicas e sua avaliação, ante o relevo que assume a eficiência na administração pública (MATIAS-PEREIRA, 2008, p. 102).

Outrossim, a análise de redes sociais tem reconhecido múltiplos atores na formação das políticas públicas, estudando a dinâmica interna do Estado e suas relações com a sociedade mais ampla (MARQUES, 2006, p. 15). Esta perspectiva já traz em si a nota do novo gerencialismo público, que desacredita o equilíbrio de forças na construção do consenso para a tomada de decisão, próprio da tipologia do ciclo da política pública. Na visão do novo gerencialismo, não obstante a presença de múltiplos atores na construção das decisões, o pluralismo se apresenta enfraquecido pela ideia de que os interesses de poucos sobrepujam facilmente os interesses difusos por sua maior capacidade de organização; construção teórica esta que empece as políticas redistributivas e keynesianas e faz face à crise fiscal e ideológica do Estado (SOUZA, 2006, p. 6), em cujo cenário amolda-se como uma luva.

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É neste contexto que exsurge o governo ainda como fonte principal das políticas públicas, não obstante o tratamento científico que lhes é dado a partir de uma concepção totalizante da dinâmica dos processos decisórios e pós-decisórios.


3 EM BUSCA DO SIGNIFICADO DE GOVERNO E A SEPARAÇÃO DOS PODERES

Remonta a Aristóteles a constatação do perigo e da injustiça de investir-se uma só pessoa de todo o poder, ponderando o peripatético: "Desse modo, não é mais justo mandar do que obedecer: é conveniente que se faça uma e outra coisa, de modo alternado" (ARISTÓTELES, 2001, p. 111). Porém, somente com Montesquieu distinguem-se as funções legislativa, executiva (poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes) e jurisdicional (poder executivo das coisas que dependem do direito civil):

Há em cada Estado três espécies de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo das coisas que dependem do direito civil.

Pelo primeiro poder, o príncipe ou magistrado cria as leis para um tempo determinado ou para sempre, e corrige-a ou ab-roga aquelas que já estão feitas. Pelo segundo, determina a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as questões dos indivíduos. Chamaremos este último "o poder de julgar" e o outro chamaremos, simplesmente, "o poder executivo do Estado" (MONTESQUIEU, 2003, p. 165-166).

Em verdade, os três poderes "correspondem a funções; e também a distinção, em cada poder, de uma faculté de statuer e de uma faculté d’empêcher prefigura algumas das análises mais recentes sobre função de fiscalização e controlo" (MIRANDA, 2005, p. 233).

Na tentativa de sistematizar a elaboração teórica dos últimos cem anos acerca do assunto, Jorge Miranda (2005) repassa as classificações doutrinárias das funções do Estado propostas por Jellinek, Duguit, Kelsen, Burdeau, Loewenstein, Vile e Marcello Caetano e apresenta a sua própria classificação que pretende inspirada em tal produção teórica e "sem laivos de originalidade", a saber: são funções do Estado a função política, a função administrativa e a função jurisdicional. Desdobra-se a primeira em função legislativa (legislatio), consubstanciada em atos normativos (diretos ou indiretos, explícitos ou implícitos) e função governativa ou política stricto sensu (gubernatio), expressa em atos de conteúdo não normativo.

Considerando os fins dos atos, ou o seu objeto, (critério material) toma Jorge Miranda a função política como "definição primária e global do interesse público; interpretação dos fins do Estado e escolha dos meios adequados para os atingir; direção do Estado", ao passo que a função administrativa, sob o mesmo critério finalístico, caracteriza-se pela constante satisfação das necessidades coletivas, para tanto prestando bens e serviços, enquanto a função jurisdicional caracteriza-se pela decisão e declaração dos direitos e questões jurídicas, seja em concreto, ante situações da vida, seja em abstrato (2005, p. 236-237).

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006, p. 69), adotando a classificação do jurista administrativista italiano Renato Alessi, entrevê nas três funções do poder estatal, denominadas legislativa, executiva e judiciária, a emanação de "atos de produção jurídica", assim considerados estes atos por introduzirem modificação em situação jurídica anterior, sendo a legislação uma produção jurídica primária, porque fundada única e diretamente no poder soberano, porém a jurisdição uma produção jurídica subsidiária, eis que necessária quando não haja o espontâneo cumprimento da lei, portanto subsidiária à produção primária; por outro lado, trata-se a administração de produção jurídica complementar, porque aplica concretamente o ato de produção jurídica primária, abstrato, contido na lei, fazendo-o enquanto parte das relações que modifica, embora em posição de superioridade quanto às demais partes da mesma relação.

Se por um lado nos parece reducionista esta concepção das funções do poder, porque circunscreve-o à ordem jurídica, à semelhança do pensamento kelseniano, por outro lado elucida as bases da ideia de função política ou de governo, "que implica uma atividade de ordem superior referida à direção suprema e geral do Estado em seu conjunto e em sua unidade, dirigida a determinar os fins da ação do Estado, a assinalar as diretrizes para as outras funções, buscando a unidade da soberania estatal" (ALESSI apud DI PIETRO, 2006, p. 70).

É esse liame direto e estreito com a soberania, a conferir superioridade diretiva da atividade estatal, que parece presente em todas as concepções contemporâneas de função política e de governo, refletidas nos conceitos acima colacionados de política pública como atividade de governo que influencia a vida dos cidadãos.


4 A JURISDIÇÃO E A FUNÇÃO POLÍTICA

Reconhecida como função do poder estatal, a jurisdição é ordinariamente definida pelo critério teleológico. Neste sentido: "Conceitua-se jurisdição [...] como função do Estado, destinada à solução imperativa de conflitos e exercida mediante a atuação da vontade do direito em casos concretos" (DINAMARCO, 2004, v. 1, p. 311).

Já em 1940, Piero Calamandrei advertia acerca da contingência dos conceitos de jurisdição:

Do conceito de jurisdição não se pode dar uma definição absolutamente válida para todos os tempos e para todos os povos. Não só as formas externas, mediante as quais se desenvolve a administração da justiça, mas também os métodos lógicos de julgar têm um valor contingente que não pode ser determinado senão em relação a um determinado momento histórico. Hoje, nas principais legislações da Europa continental, o conteúdo da função jurisdicional somente pode ser entendido se relacionado com o sistema da legalidade; e o novo Código [de Procedimento Civil italiano de 1940] quer ser precisamente uma reafirmação da jurisdição como complemento e como instrumento da legalidade (2003, v. I, p. 102-103, grifo do autor) .

Atualmente muitos são os escopos tributados à jurisdição, dentre os quais se destaca aquele reputado o escopo magno, qual seja, a pacificação social. São outros escopos a educação de cada um dos jurisdicionados para o conhecimento dos seus direitos e para o respeito aos direitos alheios (de caráter social); a preservação do valor liberdade, a oferta de meios de participação nos destinos da nação e a preservação da autoridade do ordenamento jurídico (escopos de natureza política) e, por fim, a atuação concreta da vontade do direito material (escopo de natureza jurídica) (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2004, p. 24-25). Evidentemente, tais escopos se põem como condutores para o alcance do bem comum, se aceito que seja este o fim do Estado.

Ora, da análise dos conteúdos dos tais elencados escopos, muitos se identificam com a superior função diretiva voltada a determinar os fins da ação do Estado, fundada direta e unicamente na soberania estatal, instando perceber que a jurisdição, ao ser exercida, realiza-se em duas dimensões: em microatividade, dizendo o direito diante das situações concretas da vida, e em macroatividade, aqui considerada como bem ou serviço oferecido em direcionamento da própria determinação dos fins estatais.

Assim é que, vista apenas pela atividade de dizer o direito num caso concreto e correspondente atividade de execução forçada, a solução da lide pela jurisdição não é política pública, eis que subsidiária à função política, salvo se a lide, ela própria, versar sobre um ato de governo ou buscar suprir lacuna da lei ou declarar inaplicável ou inconstitucional lei ou ato normativo (o que redunda em ato de governo conforme exposto). Por outro lado, a mesma atividade, se tomada em conjunto com as demais manifestações jurisdicionais, portanto, vista em sua dimensão maior, revela escolhas estatais diretivas dos próprios fins do Estado. Essa macroatividade jurisdicional é, pois, política pública.


5 A (NÃO) PERCEPÇÃO DA JURISDIÇÃO COMO POLÍTICA PÚBLICA E SEUS DESDOBRAMENTOS

Os estudos de política pública, enquanto área do conhecimento, nascem nos Estados Unidos da América, superando a tradição européia de estudá-las puramente mediante a análise do Estado e suas instituições (SOUZA, 2006, p. 2). Os estudos estadunidenses, puseram o foco na produção dos governos e, a partir daí, recrudesceu este campo multidisciplinar do saber, servindo-se de disciplinas como sociologia, antropologia, geografia, economia, planejamento, gestão, administração pública, porém formalmente um ramo da ciência política (SOUZA, 2006, p. 2).

No seu percurso histórico, este campo do saber esquadrinhou múltiplos aspectos das políticas públicas, sob diversos olhares, produzindo meticulosas teorizações que dão a conhecer numerosas tipologias, a dialogar e superar-se, num contínuo processo que enseja escolhas conscientes e teoricamente referenciadas.

Da percepção da prestação jurisdicional como política pública ou não resulta a opção entre insularem-se os problemas da jurisdição nos domínios do direito ou distinguir a decisão do juiz para a solução da lide da decisão de prestar jurisdição e, quanto a esta, beber dos estudos de políticas públicas.


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo as políticas públicas por objeto as atividades do governo que influenciam a vida na polis, enquanto exercício da função política do Estado, e, sendo esta um superior direcionamento da determinação dos fins estatais, pode-se reconhecer a macroatividade da jurisdição como política pública, distinguindo-a da microatividade de solucionar lides concretas alheias a atos de governo.

Tal distinção representa um passo importante na busca da efetividade da jurisdição e do processo além dos domínios que a ciência do direito encerra, sem prejuízo ou desrespeito desta, que se impõe pela imperatividade que lhe é ínsita. Cuida-se, pois, de conferir um trato político-científico à administração da justiça, não em sede de direitos subjetivos, mas na própria concepção da política (pública) de organizar e pôr em funcionamento o sistema público de distribuição de justiça.


REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2001.

CALAMANDREI, Piero. Instituições de Direito Processual Civil. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2003. 3 v.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. 4 v.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. Idéias, conhecimento e políticas públicas: um inventário sucinto das principais vertentes analíticas recentes. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 18, n. 51, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.phpscript=sci_arttext &pid=S0102-69092003000100004&lng=en&nrm =iso>. Acesso em: 17 June 2008.

MARQUES, Eduardo Cesar. Redes sociais e poder no Estado brasileiro: aprendizados a partir de políticas urbanas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 21, n. 60, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102690920060001 00002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 17 jun. 2008.

MATIAS-PEREIRA, José. Curso de Administração Pública: foco nas instituições e ações governamentais. São Paulo: Atlas, 2008.

MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2003.

SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, n. 16, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222006000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 17 jun. 2008.

Sobre o autor
Marcelo Politano de Freitas

Professor da Universidade do Estado da Bahia. Advogado. Doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI (Universidade de Coimbra). Mestre em Políticas Sociais e Cidadania (Universidade Católica do Salvador). Especialista em Processo (Fundação Faculdade de Direito da Bahia). Especialista em Pedagogia Universitária (Faculdades Maurício de Nassau).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Marcelo Politano. A jurisdição como política pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2708, 30 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17958. Acesso em: 18 dez. 2024.

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