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Fundamentos dos direitos de personalidade e o papel da tutela inibitória na sua proteção

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Agenda 11/02/2011 às 12:21

Resumo: Este ensaio analisa o papel da tutela inibitória na proteção dos direitos de personalidade, especialmente quando, no caso concreto, ocorre a colisão com outros direitos fundamentais como a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. Comumente, a tutela inibitória em face dos meios de comunicação é taxada como censura. Tal situação é reflexo do trauma ainda latente pelo regime ditatorial que perdurou no Brasil entre 1964 e 1985, quando a sociedade e os meios de comunicação viram-se privados de alguns direitos fundamentais. Entretanto, o advento de novas mídias e da internet determina a busca de novos paradigmas no que concerne à liberdade de imprensa e aos direitos de personalidade. Por fim, pretende-se demonstrar que a prestação da tutela inibitória parece ser de grande relevo para a proteção dos direitos fundamentais na sua forma específica, além de não configurar hipótese de censura prévia como se possa acreditar.

Palavras-chave: tutela inibitória, direitos de personalidade, liberdade de imprensa, direitos fundamentais, censura.

Sumário: 1. Introdução. 2. Os Direitos de Personalidade. 2.1. Fundamentos Históricos. 2.2. Conceitos, Classificação e Característica. 2.3. Direitos de Personalidade Como Direitos Fundamentais. 2.4. Direito Geral de Personalidade, Distinções Conceituais Entre Intimidade, Honra, Imagem e Vida Privada e Suas Fronteiras. 2.5. Distinção Entre Direito Público e Privado e as Transformações do Direito Civil. 3. A Liberdade de Imprensa. 3.1. Fundamentos Históricos. 3.2. Novos paradigmas. 3.3. Fronteiras éticas, legais e constitucionais. 4. A importância da tutela inibitória na proteção dos direitos de personalidade. 5. Conclusão. 6. Referências.


1. INTRODUÇÃO

O presente estudo visa identificar os fundamentos dos direitos da personalidade, em especial a vida privada e a intimidade, para em seguida demonstrar que o remédio processual da tutela inibitória vem se revestindo em verdadeiro aliado na proteção daqueles em sua forma específica.

Por conta de atributos e características específicas dos direitos de personalidade, uma vez violados, a sua reparação se dá meramente pela via da tutela reintegratória, mais especificamente pela indenização por danos morais. Ocorre que, na sistemática da proteção dos direitos fundamentais, deve-se buscar a tutela específica dos mesmos, evitando-se, tanto quanto possível, a mera reparação em pecúnia.

A problemática ganha relevo constitucional quando a violação, ou até mesmo a iminência de ato ilítico contra a intimidade e a vida privada, é intentada pelos meios de comunicação social, portadora e paladina da liberdade de imprensa, outro direito fundamental de especial importância, erigido como cláusula pétrea pelo legislador constituinte.

Embora o hipotético conflito de direitos fundamentais só possa ser solucionado no plano prático, na demonstração de um caso concreto, sob a orientação da hermenêutica constitucional e da utilização de critérios e standards de ponderação de interesses, não se pretende neste artigo fazer tal exercício de balanceamento ou de sopesamento. O objetivo deste esboço é outro, como já foi exposto supra.

Portanto, estudando as origens, os conceitos e as classificações basilares de cada instituto aqui tratado (direitos de personalidade, liberdade de imprensa e tutela inibitória), buscar-se-á uma conclusão baseada na racionalidade lógico-jurídica para entender que a tutela inibitória da vida privada e da intimidade não se traduz em censura à liberdade de imprensa, mas um meio de proteção específica daqueles direitos de personalidade, evitando-se a sua mera liquidação em dinheiro.


2. OS DIREITOS DE PERSONALIDADE

2.1. Breve Evolução Histórica

Historicamente, cumpre assinalar que o estudo e a sistematização dos direitos de personalidade ganhou relevo a partir das revoluções burguesas do século XVIII. Entretanto, podemos identificar que a sua proteção já existia desde a idade média, encontrando no direito romano, por exemplo, a figura da actio injuriarum aestimatoria que visava proteger o indivíduo em face de injúrias e difamações irrogadas em face da sua honra. [01]

No Império Romano, o conceito de pessoa baseva-se na aferição do seu status libertatis, status civitatis e status familiae, sendo certo que apenas aqueles que gozassem da inteireza destas três condições teria direitos reconhecidos. Com o advento do cristianismo, ressalta-se a ideia do homem como servo de Deus, personificação do seu criador, conforme o Gênesis bíblico.

Sem embargo, o advento da dicotomia entre as escolas do direito natural e do direito positivo contribuiu bastante para o desenvolvimento da noção de personalidade humana. Enquanto para os jusnaturalistas a personalidade advinha da própria natureza humana, de maneira absoluta, para os positivistas seria a atribuição pela lei de um caráter concreto a fim de positivar tais atributos humanos.

Entretanto, é com o advento do racionalismo do final da idade média, que a personalidade humana ganha relevo, sobretudo pelas ideias iluministas e liberais. Assim, tal como a liberdade de imprensa, os direitos de personalidade são classificados pela doutrina publicista como sendo direitos de 1ª geração ou direitos civis e políticos, positivados originariamente pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e Declaração de Direitos da Virgínia (1769).

Traçando um sintético e elucidativo panorama histórico dessa evolução dos direitos de personalidade, Roxana Borges assevera que:

dentre os primeiros direitos da personalidade reconhecidos como direitos fundamentais, estão o direito à vida, o direito à liberdade e o direito à integridade física. Foram reconhecidos a partir da oposição entre indivíduos e Estado, visando proteger a pessoa contra as intervenções arbitrárias deste. Com o aumento populacional das cidades, com o crescimento dos veículos de comunicação de massa, com o aumento do desequilíbrio nas relações econômicas e com o avanço tecnológico, outros direitos da personalidade emergiram, desta vez não apenas para proteger o indivíduo contra o Estado, mas para protegê-lo também contra a intervenção lesiva de outros particulares. [02]

Alguns pensadores como Ennecerus, Jellinek, Unger, Oertmann, Ravà, Orgaz e Von Thur, não admitindo direito do homem sobre a própria pessoa (ius in se ipsum), negavam a existência dos direitos da personalidade. Na corrente oposta, mais recente e de maior prevalência, é reconhecida e defendida a existência destes direitos, por nomes de escol como Adriano De Cupis, Ruggiero, Planiol, Ripert, Antunes Varela, Limongi França e Orlando Gomes. [03]

2.2. Conceitos, Classificação e Características

Inaugurando a tentativa de conceituar o instituto, contamos com a explanação de Orlando Gomes, para quem "nos direitos da personalidade, compreendem-se direitos considerados essenciais à pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina, a fim de resguardar a sua dignidade". [04] Ainda na lição do civilista baiano, esses direitos constituem-se como "bens jurídicos em que se convertem projeções físicas ou psíquicas da pessoa humana, por determinação legal que os individualiza para lhes dispensar proteção". [05]

Para a professora Maria Helena Diniz, os direitos da personalidade são os

subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a sua integridade física (vida, alimentos próprio corpo vivo ou morto, corpo alheio vivo ou morto, partes separadas do corpo vivo ou morto); a sua integridade intelectual (liberdade de pensamento, autoria científica, artística e literária) e sua integridade moral (honra, recato ou intimidade, segredo pessoal, doméstico e profissional, imagem, identidade pessoal, familiar e social). [06]

Já em lição de Carlos Alberto Bittar, tais direitos seriam "próprios da pessoa em si (ou originários), diante da dignidade humana ou referentes às suas projeções para o mundo externo (ou seja, à pessoa como ente moral e social, em suas interações da sociedade". [07]

Os direitos da personalidade possuem algumas características peculiares em relação aos demais direitos. Para grande parte da doutrina eles seriam absolutos, inatos, essenciais, além de intransmissíveis, inalienáveis, irrenunciáveis, imprescritíveis, inexpropriáveis, extrapatrimoniais, indisponíveis e vitalícios. [08] O Código Civil (Lei 10.406/2002) em seu art. 11 prestigiou duas características especiais, quais sejam: a intransmissibilidade e a irrenunciabilidade. Assim, disciplinou, in verbis, que:

Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. [sem grifo no original]

Embora a lei e a doutrina tracem diversas características dos direitos de personalidade, tais como intransmissibilidade, irrenunciabilidade, indisponibilidade e ilimitabilidade, os fatos cotidianos e a práxis levam a conclusão de existe a possibilidade de uma certa disponibilidade de tais direitos, levando-se em conta a autonomia jurídica individual e a autonomia privada. Dessa forma, analisar-se friamente as características do direito de personalidade, admitindo-las como absolutas e intangíveis, é não enxergar a realidade social.

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Alguns atributos da personalidade, tais como a imagem, a intimidade, a voz, partes do corpo, por exemplo, que, por suas características, podem interessar ao tráfego econômico e jurídico e, portanto, gozar de uma diposição relativa. Por isso, Gilberto Haddad Jabur, explica que

a relatividade desse entendimento, temperado e adequado às exigências dos costumes da vida moderna, prestigiando, de mais a mais e na medida do dever de proteção ao indivíduo, a liberdade que lhe é imanente, permite a limitada disposição. [09] [sem grifo no original]

De maneira elucidativa se posiciona Roxana Borges para quem "os atos de disposição dos direitos de personalidade não negam a característica da indisponibilidade (...) se tais atos não tiverem finalidade translativa ou extintiva". Obtempera no sentido de aceitar como mais adequadas a autorização ou cessão parcial por estas não privarem o titular dos direitos de personalidade de seu uso, seja pela transmissão, seja pela extinção, além de permitir a fruição econômica daqueles. Para a autora existe, portanto, "uma margem de liberdade para o exercício ativo dos direitos de personalidade, assim como para a realização de negócios jurídicos sobre esses direitos. A principal premissa é a inafastabilidade da liberdade como requisito para o livre desenvolvimento da personalidade". [10]

Outra característica bastante prestigiada é de que os direitos da personalidade são absolutos, pois são oponíveis erga omes, submetendo quem quer que seja à sua carga de eficácia irradiada. A relação jurídica estabelecida envolve um sujeito passivo universal, indeterminado, porém, determinável quando há violação deste direito absoluto no caso concreto. [11] Quando se caracterizam os direitos de personalidade como absolutos, não se quer passar a noção de não comportam limites ao seu exercício, mas sim, de que podem ser alegados por seu titular em desfavor de qualquer um que os viole.

Admite-se serem os direitos da personalidade extrapatrimonais, pois não figuram no patrimônio do seu titular tal como um imóvel. Entretanto, "não há de se confundir o direito de personalidade com o seu conteúdo que se pode traduzir em elemento de grande valor econômico". [12] A mesma relatividade desta característica é enaltecida por Gagliano e Pamplona Filho que ponderam não haver impedimento para que "as manifestações pecuniárias de algumas espécies de direitos possam ingressar no comércio jurídico", [13] podendo haver mensuração econômica, principalmente em caso de violação. Já Sérgio Cruz Arenhart, reafirmando a extrapatrimonialidade dos direitos da personalidade, traz interessantes argumentos, como o da falácia da função reparadora do dano moral, que em verdade seria, tão só, uma punição ou sanção exemplar para o ator do ilícito. [14]

São imprescritíveis pela razão de estarem no rol dos direitos potestativos e não a uma prestação. Sendo seu exercício atemporal, poderá o titular, a qualquer tempo, impedir que alguém invada a sua privacidade, viole a sua imagem ou macule a sua honra. Porém, muito se discute a respeito do caso em que o dano já tenha ocorrido. Há entendimento doutrinário de que não haveria prazo prescricional para ingressar com o pedido de reparação por dano moral, porém entendemos que, em questão não está o direito personalíssimo, mas sim a pretensão à reparação civil, esta sim, sujeita a prazo prescricional.

São inclusive vitalícios, pois "seguem a pessoa, aderem ao indivíduo até o seu leito de morte, chegando a lei a proteger o morto, que não é mais sujeito de direito do vilipêndio". [15] Esta característica fora consagrada pelo art. 12, parágrafo único do Código Civil de 2002, ao estatuir legitimação ao "cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau" para requerer medida inibitória ou reparatória contra atentado à memória do de cujus.

São inexpropriáveis, porque nem mesmo o Estado poderá privar o indivíduo desta faculdade. Entretanto, a questão da pena de morte torna o tema discutível em função de que isto seria uma expropriação do direito à vida pelo Estado. Ao nosso sentir, acreditamos ser a pena capital uma grave violação aos direitos humanos.

Em conclusão, verifica-se que a maioria das características dos direitos de personalidade reconhecidas pelas fontes formais e materias do direito, são voltadas a sua proteção em face de terceiros, de forma passiva ou negativa. Entretato, deve-se prestigiá-los também de forma ativa, através do exercício positivo que deriva justamente do poder da pessoa humana e em dispor de expressões daqueles direitos com "o fim que melhor se adequar à realização de sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade". [16] O exercício positivo pode ser condensado pela expressão "eu posso", enquanto o exercício negativo pela expressão "você não pode".

2.3. Direitos de Personalidade Como Direitos Fundamentais

Os direitos da personalidade como enuncia Sidney Guerra, citando Carlos Alberto Bittar, são também conhecidos por diversos outros termos tais quais: "direitos do homem, direitos fundamentais da pessoa, direitos humanos, direitos inatos, direito essenciais da pessoa, liberdades fundamentais". [17]

Essa dificuldade em estabelecer uma distinção entre e direitos fundamentais do homem e direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas é também afirmada por José Afonso da Silva, quando diz haver uma variedade de expressões, e uma dificuldade de conceituação e sintetização precisa devido a "ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico". [18]

Entretanto, os direitos da personalidade e as liberdades públicas encontram-se em planos diversos, como enuncia Carlos Aberto Bittar:

As liberdades públicas distanciam-se dos direitos do homem, com respeito ao plano, pois, conforme se expôs, os direitos inatos ou direitos naturais situam-se acima do direito positivo e em sua base. São direitos inerentes ao homem, que o Estado deve respeitar e através do direito positivo, reconhecê-los e protegê-los. Mas esses direitos persistem, mesmo não contemplados pela legislação em face da noção transcendente da natureza humana. Já por liberdades públicas, entendem-se os direitos reconhecidos e ordenados pelo legislador: portanto, aqueles que, com reconhecimento do Estado, passam do direito natural para o plano positivo. [19]

Ada Pellegrini Grinover adota a mesma diferenciação entre liberdades públicas e direitos do homem, salientando que

o plano é diverso, porque os direitos do homem indicam conceito jusnaturalista, enquanto as liberdades públicas representam um reconhecimento dos direitos do homem através do direito positivo. Os direitos do homem constituem conceito que prescinde do reconhecimento e proteção do direito positivo, existindo ainda que a legislação não os estabeleça nem os assegure. As liberdades públicas, bem pelo contrário, são direitos do homem que o Estado, através de sua consagração, transferiu do direito natural ao direito positivo". [20]

Portanto, imperativo concluir que os direitos de personalidade, como vida privada e intimidade são tutelados pela ordem jurídica constitucional, expressão de sua característica de direitos fundamentais positivados como liberdades públicas. Assim como tais direitos, a liberdade de expressão, configurada na sua faceta de liberdade de imprensa, parece ser consagrada da mesma maneira, ainda que tenha sofrido evolução distinta.

A professora Mônica Aguiar assinala que os direitos da personalidade, embora nasçam "como direitos subjetivos, com escopo no âmbito do direito privado (...) ao serem constitucionalizados enquanto direitos fundamentais passam, inegavelmente, a deter essa natureza jurídica". [21]

Em vista do quanto exposto, interessante fazer algumas reflexões, no próximo item, acerca da dicotomia (se ainda existente) entre Direito Público e Privado, bem como acerca da constitucionalização, descentralização e descodificação do Direito Civil.

2.4. Distinção Entre Direito Público e Privado e As Transformações do Direito Civil.

O movimento de codificação do Direito Civil surge no seio da revolução francesa do século XVIII, para atender os anseios da classe burguesa em ver limitado o poder do Estado, estabelecendo uma lei única para reger e proteger as relações privadas. Assim, o Código Civil francês de 1804 foi o grande marco da codificação do direito civil e consistiu na consolidação de uma legislação uniforme de cunho liberal, que solidificasse as relações jurídicas, fortalecendo a liberdade contratual, a propriedade individual e a acumulação de capital nas mãos da burguesia em detrimento do jugo estatal.

R.C. Van Caenegem explica que no Iluminismo, a simplificação das normas foi uma tônica com as codificações, para produzir um direito uniforme, claro e certo para todos. Neste período ainda não havia um direito europeu, nem códigos nacionais, nenhum sistema jurídico era dominante, sendo o direito eclético e plural. Os juristas extraiam princípios de variadas fontes (direito romano, canônico, costumes, legislação real, municipal, direito estrangeiro). Isso gerou a uma proliferação de fontes, que foi combatida no século XVIII, que introduziu os códigos como instrumento de modernização aptas a garantir o desenvolvimento econômico e social assegurando clareza e certeza jurídicas. [22]

A doutrina acreditava ser o Direito Civil um ramo do direito altamente consolidado, que surgiu com o direito romano e que demonstrava sofrer poucas influências por parte das transformações políticas do curso histórico. Por ser um conjunto de normas que regem as relações individuais, tutelando interesses particulares e protegendo direitos básicos como a propriedade, tendo servido de direito-informador aos novos direitos (trabalho, consumidor), grande parte da doutrina ainda resiste a ideia de que o direito civil está suscetível a mudanças radicais.

Como afirma Paulo Luiz Netto Lobo

os códigos tornaram-se obsoletos e constituem óbices ao desenvolvimento do direito civil. Com efeito, a incompatibilidade do Código Civil com a ideologia constitucionalmente estabelecida não recomenda sua continuidade. A complexidade da vida contemporânea, por outro lado, não condiz com a rigidez de suas regras, sendo exigente de minicodificações multidisciplinares, congregando temas interdependentes que não conseguem estar subordinados ao exclusivo campo do direito civil. São dessa natureza os novos direitos, como o direito do consumidor, o direito do meio ambiente, o direito da criança e do adolescente. A Revolução Industrial, os movimentos sociais, as ideologias em confronto, a massificação social, a revolução tecnológica constituíram-se em arenas de exigências de liberdade e igualdades materiais e de emersão de novos direitos, para o que a codificação se apresentou inadequada. [23]

A constitucionalização do Direito Civil consistiu em alçar certos direitos de gênese no direito civil à condição de direitos constitucionais e também fundamentais. Ademais, significa também interpretar o Direito Civil sob um novo prisma, uma vez que as Constituições são normas hierarquicamente superiores às leis, tais como o Código Civil. Dessa forma, os valores insertos na carta constitucional devem nortear a interpretação da legislação civil em vigor. Assim, temos como exemplo, o antigo direito absoluto de propriedade, que hoje deve harmonizar-se com o princípio constitucional da função social.

Entretanto, adverte Luis Edson Fachin que

não basta, por certo, pelo simples desvio do enfoque de modelos codificados para modelos constitucionalizados. O que se deve é examinar as possibilidades concretas de que o Direito Civil atenda a uma racionalidade emancipatória da pessoa humana que não se esgote no texto positivado, mas que permita, na porosidade de um sistema aberto, proteger o sujeito de necessidades em suas relações concretas, independente da existência de modelos jurídicos. [24]

Para Rodrigo Mazzei a CF/88 influenciou a arquitetura do Código Civil de 2002 de modo que, na relação subjetiva, ficasse preservado o conteúdo social ditado constitucionalmente. Entretanto, não retirou do Código Civil o status de diploma catalisador para legislar sobre as relações privadas. O novel diploma civil tem a possibilidade de recodificar o direito privado de acordo com a ordem constitucional e permite a fixação de elementos de orientação para os microssistemas, além da sua função mais importante: dar efetividade às diretrizes constitucionais. [25]

Para Roxana Borges a diferença entre Direito Público e Privado ainda hoje persiste, embora suavizada, demonstrando sua importância para o exercício dos direitos de personalidade e o livre desenvolvimento da personalidade humana. Segundo a autora:

não há critérios satisfatórios para a distinção entre direito privado e direito público. Constatou-se, porém, que esses dois ramos considerados fundamentais não são completamente opostos e separados, mas são distintos. Eles se relacionam, embora ainda existam âmbitos que são da incidência exclusiva do direito privado, assim como há setores a serem regulamentados exclusivamente segundo os princípios que informam o direito público [...] a distinção entre o público e privado, embora não seja completamente satisfativa, é importante, pois garante à pessoa um âmbito de vida privada que nem a sociedade nem o Estado, inclusive por meio da elaboração de leis, devem atingir".[26]

Pergunta-se então: seria certo concluir que o enquadramento dos direitos da personalidade no âmbito dos direitos fundamentais se dá em função de critérios jurídico-positivos e que, antes da ordem constitucional institucionalizada em 1988, a tutela dos mesmos estava restrita ao direito privado? Vejamos a norma insculpida no art. 5º, §2º, da CF/88:

Art. 5º [...]

§2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição ao excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Da interpretação do citado dispositivo conclui-se, assim como Dirley da Cunha Júnior [27], que não apenas os direitos e garantias elencados e descritos na Constituição gozam do sistema de proteção às liberdades públicas, pois a Carta adotou cláusula aberta ou de não tipicidade consoante a teoria material dos direitos fundamentais. Valendo-nos de lição da doutrina italiana, afirmamos que os direitos fundamentais garantidos à liberdade humana não precisam de uma específica previsão positiva, pois são paradigmas gerais que englobam várias possibilidades materiais nas quais se possa realizar a ação humana. [28]

Conforme assevera Roxana Borges, "os direitos de personalidade não são numerus clausus. O catálogo dos direitos de personalidade está em contínua expansão, constituindo uma série aberta". [29]

Segundo Baldassare houve uma mudança do conceito de pessoa, de uma noção liberal para outra democrática. Assim, os direitos invioláveis são reconhecidos à pessoa individual e também às formações sociais em que a pessoa desenvolve sua personalidade. Há a tutela da pessoa enquanto tal e a tutela da pessoa como membro de uma formação social. A tutela da pessoa, como é reconhecida na constituição italiana, não mais significa um princípio em si, mas se exterioriza como condição essencial para o desenvolvimento da personalidade. Assim, parece haver direitos fundamentais cujo exercício só se pode realizar em forma coletiva. As formações sociais surgem como meio ou instrumento para o pleno desenvolvimento da personalidade humana. Estas formações sociais são mediatamente titulares de direitos invioláveis. Se faltarem os direitos invioláveis, logo a democracia não é possível. Existe, em verdade, a superação do individualismo e a afirmação do pluralismo. Dessa forma, os direitos invioláveis representam a categoria a priori da democracia. [30]

Impende fazer também um último questionamento: liberdade de imprensa é direito da personalidade? Como alguns autores defendem, a liberdade é primordialmente um atributo da personalidade. O ser humano privado da liberdade tem sua dignidade restringida. Por seu turno, os direitos da personalidade e a liberdade de pensamento e de expressão deste pensamento parecem ter gênese semelhante, o que leva a concluir serem frutos de uma mesma árvore. Se considerarmos vida privada e intimidade como direitos da personalidade, não nos deve escapar também a inclusão da liberdade.

2.5. Direito Geral de Personalidade, Distinções Conceituais Entre Intimidade, Honra, Imagem e Vida Privada e Suas Fronteiras

Existe uma divergência doutrinária acerca da existência de direitos de personalidade ou umde um direito geral de personalidade. Para a teoria pluralista, existe uma lista de direitos autônomos de personalidade (intimidade, honra, vida privada, direito a partes do corpo), enquanto a teoria monista visualiza um direito geral que tem como conteúdo a pessoa humana em seus vários aspectos, mas reunidos numa unidade.

Roxana Borges comenta que para Pietro Perlingieri "há um direito geral de personalidade que protege a pessoa como um valor unitário, sem subdivisões. Por isso, ele sustenta que a personalidade corresponde à unidade de valor que a pessoa representa em nosso ordenamento jurídico. Essa unidade de valor não pode, assim, ser dividida em diferentes interesses, bens ou ocasiões, pois a pessoa é um todo, não partes acrescidas umas às outras". [31]

Inobstante essa divergência doutrinária, o importante é reconhecer que não pode existir uma lista fechada, de "numerus clausus", que descreva os direitos da personalidade, limitando-os como aqueles previstos na Constituição e no Código Civil, já que os atributos da personalidade humana estão em constante mutação, tal como a própria sociedade pós-moderna.

A Constituição Federal de 1988 consagrou a proteção dos direitos da personalidade em seu art. 5º, inciso X, que estampa o seguinte:

Art. 5º (...)

X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Ainda que resguardados pela mesma norma constitucional, imagem, honra, vida privada e intimidade, possuem, sobretudo, dimensão, conceito, conteúdo e diferentes características. Dessa forma impende analisar-los em separado para uma melhor compreensão de cada um desses direitos ou atributos da personalidade humana.

Parece haver uma tênue separação entre intimidade e vida privada. Ao que parece, embora derivarem do instituto da privacidade, a intimidade parece ser mais restrita do que a vida privada e significa a esfera mais profunda do indivíduo consigo mesmo. É aquele espaço impenetrável do sujeito onde residem as suas fantasias, sonhos, segredos, desejos e ambições que talvez ele sequer possa partilhar com alguém, mas tão só consigo mesmo, através de um diário, por exemplo. O indivíduo, dentro de si mesmo, tem plena e total liberdade para pensar o que bem quiser, ainda que isso seja antijurídico, ilícito e culpável, pois não estará cometendo crime. Liberdade de pensamento e intimidade estariam totalmente conectadas. [32]

Para Maria Isabel de Azevedo Souza os primórdios do desenvolvimento da doutrina da intimidade, expressada pelo "right to be let alone" ou direito de estar só, que foi desenvolvido a partir do direito americano. Segundo a autora "o reconhecimento do direito a um modo exclusivo de ser no âmbito da vida privada ampliou-se", notadamente pelo advento da diversas declarações universais de direitos humanos e de tantas outros tratados e convenções internacionais e legislações alienígenas até o advento, entre o direito brasileiro, da Constituição Federal de 1988. Explica ainda que, em virtude do advento de novas tecnologias que, sobremaneira, interferem no direito à intimidade, "o princípio da exclusividade torna-se então um dos pilares do direito privado, erguendo barreiras ao avanço da intromissão indevida na órbita individual". [33]

Quando se viola a vida privada ou a intimidade, não existe a figura da retratação ou do direito de resposta, como na violação à honra. Ao se revelar um segredo íntimo de alguém não há como se voltar atrás, como por exemplo, na hipótese da calúnia. Entretanto, revelar que um determinado desportista é homossexual, sem o seu consentimento é atitude na qual, nem mesmo a indenização, irá reparar ou restabelecer o status quo antem.

A honra prescinde de todo e qualquer rótulo social, econômico, político, ideológico, motivo pelo qual, ao nosso entender, deva estar imbricada com outro direito fundamental: a dignidade da pessoa humana. Ainda que o sujeito tenha dilapidado a sua honra, não pode jamais ser privado de sua dignidade humana, que será protegida pelo Estado, sempre.

A imagem, segundo divisão adotada por grande parte da doutrina se divide em imagem-atributo e imagem-retrato. Esta seria a expressão física do indivíduo, enquanto aquela se exteriorizaria como o conjunto de características apresentados socialmente por ele. Embora aparentemente possa-se confundir imagem e honra - em especial honra objetiva e imagem-atributo - pois fruto de idéias semelhantes, tais institutos guardam diferenças conceituais importantes. É possível violar-se a imagem, resguardando a honra, bem como o inverso parece também ser plausível. As pessoas jurídicas detêm esse direito de personalidade.

Os direitos da personalidade podem encontrar na liberdade de informação jornalística suas fronteiras. A liberdade de imprensa parece não violar os direitos da personalidade quando presentes os seguintes fatores: a) interesse científico e cultural; b) informação de relevância pública; c) atos e locais públicos; d) atos praticados por pessoas célebres e notórias. Entretanto, tais disposições são relativas, devendo atender-se as peculiaridades do caso concreto. [34]

Manoel Jorge e Silva Neto conclui que "as colisões entre o direito à intimidade e a garantia fundamental do acesso à informação se operam quase que exclusivamente no âmbito dos indivíduos considerados notáveis". [35] Dessa forma, o autor vislumbra ser admissível tornar do conhecimento público "aventura amorosa de expressiva liderança política, não para fazer que contra ele se insurja a opinião pública, mas para integrar ao domínio público um fato ligado à esfera íntima da personalidade política". [36] Assim, também, enxerga possível a divulgação de notícias "sobre enfermidades, curáveis, ou não, porque o povo, ao escolher o mandatário pressupõe o cumprimento integral do mandato, o que poderá ser obstado por doenças". [37]

Gilberto Haddad Jabur também enaltece restrições impostas pela notoriedade ostentada por determinado indivíduo. Leciona o autor que "a pessoa notória tem sua circunscrição privada naturalmente diminuída pelo reconhecimento que alcançou perante o público ou certa comunidade". Entretanto, afirma não ser "qualquer motivo, fato ou notícia que legitima a quebra, mesmo que parcial, da privacidade" devendo aquela "estar necessariamente ligada, umbilicalmente jungida, a um dado ou aspecto pessoal responsável pela celebridade alcançada". [38]

Remete aquele autor à sentença do Tribunal Supremo alemão que declara que: "os acontecimentos da vida privada não chegam, sem mais, a serem acontecimentos da vida pública apenas porque se referem a pessoas que estejam na vida pública". [39] É necessário haver uma separação, ainda que difícil, da vida pública e privada da pessoa notória, justificando-se a invasão desta, apenas quando presente interesse público. E não se confunda esse conceito com mera curiosidade ou interesse, frise-se, do público. O verdadeiro interesse público conecta-se à noção de relevância social da informação veiculada.

Aliás, como ressalta Manoel Jorge e Silva Neto:

Encontram-se, em tema de direito à informação jornalística, em posições diametralmente opostas o interesse do público e o interesse público, sendo que os órgãos de comunicação, a pretexto de viabilizar o acesso à informação, não podem embaralhar o que seja um e outro. [40] [sem grifo no original]

Paulo José da Costa Junior, citando Henkel explica que o homem

enquanto indivíduo que integra a coletividade, precisa aceitar as delimitações que lhe são impostas pelas exigências da vida comum. E as delimitações de sua esfera privada deverão ser toleradas tanto pelas necessidades impostas pelo estado, quanto pelas pessoais dos demais concidadãos, que poderão perfeitamente conflitar ou penetrar por ela. [41]

Portanto, já foi visto que a imagem de determinados indivíduos que gozam de notoriedade podem ser publicadas sem autorização, guardados necessários requisitos. Entretanto, a inviolabilidade da esfera da vida privada dos cidadãos comuns também pode ser relativizada em caso de autorização judicial para quebra de sigilo bancário, fiscal, telefônico, etc. Portanto, no receio de que, sob o manto do direito à privacidade, estejam sendo cometidos crimes, é justificável a sua invasão. É o que se depreende do aresto abaixo colacionado:

Inexiste a alegada inconstitucionalidade do artigo 235 do CPM por ofensa ao artigo 5º, X, da Constituição, pois a inviolabilidade da intimidade não é direito absoluto a ser utilizado como garantia à permissão da prática de crimes sexuais. (HC 79.285, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 12/11/99) [sem grifo no original]

É importante esclarecer que, em verdade, não ocorre uma "quebra" do sigilo de quem esteja sendo investigado, mas apenas uma "transferência" do órgão detentor do segredo para o Poder Judiciário. Portanto, não é apenas pelo fato de haver a "quebra" do sigilo, para utilizarmo-nos de expressão difundida, que se possa noticiar e transmitir o conteúdo deste segredo por meio dos veículos de comunicação. Deve haver uma responsabilidade conjunta do Poder Judiciário e da mídia para que este direito à privacidade, ainda que mitigado, não seja totalmente dilacerado.

Por fim, concluímos em adesão à tese de Roxana Borges para quem não há "uma cláusula geral de restrição de direitos da personalidade, nem que a moral ou os bons costumes possam, a priori, ser colocados como limites ao exercício positivo desses direitos". [42] Ainda segundo a autora:

Na interpretação das normas constitucionais que podem restringir o exercício positivo dos direitos de personalidade se devem observar sempre os valores da alteridade, da tolerância e critérios de proporcionalidade, proibindo-se o excesso na restrição, buscando-se a otimização da tutela ao livre desenvolvimento da personalidade. [43]

Dessa forma, analisar a zona limítrofe entre liberdade de imprensa e direitos de personalidade não pressupõe imposição de limites a nenhum dos direitos fundamentais a priori, mas a análise do conflito destes no caso concreto.

Sobre o autor
Felipe Ventin da Silva

Advogado. Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Felipe Ventin. Fundamentos dos direitos de personalidade e o papel da tutela inibitória na sua proteção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2781, 11 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18471. Acesso em: 18 nov. 2024.

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