Nas últimas eleições norte-americanas, intensificou-se um debate sobre os "negative campaign advertising", que representa a adoção de uma estratégia de campanha eleitoral, na qual um candidato, ao invés de enaltecer suas qualidades pessoais positivas, tenta ganhar a eleição por meio da realização de propagandas negativas que enfatizam os defeitos dos candidatos rivais. Para se traçar um paralelo entre os limites da propaganda política e da publicidade comercial, é importante destacar que nos Estados Unidos é amplamente aceita a publicidade comparativa explícita na área comercial, [01] em que os anúncios publicitários comparam produtos de diversos fabricantes de forma aberta. Além disso, admite-se os anúncios publicitários que enfatizam os defeitos dos produtos rivais, como forma de enaltecer o produto comercializado. Também se pode afirmar, ainda, que as campanhas eleitorais negativas (negative campaigning) costumam ser aceitas pelos Tribunais norte-americanos, levando-se em conta a amplitude da liberdade de expressão nos Estados Unidos. [02]
Inicialmente, para se ter uma idéia de um caso envolvendo publicidade comparativa nos Estados Unidos, cumpre destacar, apenas a título ilustrativo, a famosa disputa comercial entre as fabricantes de cerveja Budweiser e Miller. A batalha entre as 02 (duas) empresas teve início quando um comercial veiculado pela empresa Miller destacava a grande quantidade de carboidratos da cerveja rival, a Bud Lite. Por sua vez, a empresa Anheuser-Busch, proprietária da marca Budweiser, fez um anúncio publicitário em que reafirmava o slogan da empresa como "The king of beers" (rei das cervejas) e chamava a cerveja concorrente, a Miller Lite, como "The king of carbs" (rei dos carboidratos). Além disso, o anúncio destacava o fato da cerveja Miller Lite ter proprietários da África do Sul (South Africa owned), em contraste com a Budweiser, que seria uma autêntica cerveja americana (American brewed since 1876). [03]
Antes de avançar no presente estudo, cumpre distinguir publicidade de propaganda. A publicidade é utilizada para a difusão e venda de produtos e serviços. Já a propaganda é o termo utilizado para identificar a difusão de idéias filosóficas, políticas e religiosas. Tem um caráter ideológico. Após a breve distinção entre publicidade e propaganda, é oportuno registrar a diferença entre publicidade comparativa e a publicidade denegritória. A publicidade comparativa busca comparar produtos rivais com base em informações verídicas, exatas e pertinentes e pode ser realizada de forma implícita ou explícita. Ela encontra proteção na liberdade de expressão e é aceita em alguns países, tais como os Estados Unidos. Já a publicidade denegritória representa uma conduta ofensiva aos consumidores e é proibida em diversos países, entre eles, a Espanha e o Brasil, e se caracteriza pelo menosprezo aos produtos e serviços oferecidos por empresas concorrentes. Dessa maneira, pode-se dizer que a publicidade denegritória causa danos à imagem da marca ou produto da empresa concorrente e pode se enquadrar como uma espécie de publicidade enganosa. [04]
No que concerne à propaganda eleitoral negativa, um dos exemplos mais recentes envolveu a disputa entre Hillary Clinton e Barack Obama para a vaga de candidato do Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos. No comercial veiculado por Hillary Clinton, chamado de "3 am phone call" (chamada de telefone às 03:00 da manhã), mostrava-se ao eleitor que Hillary Clinton era a pessoa mais preparada para enfrentar as questões políticas e militares da Presidência da República e atender um telefonema de emergência na Casa Branca, ao contrário do candidato Barack Obama, que seria inexperiente. [05]
Para melhor compreensão do presente tema, é importante apontar que a liberdade de expressão (freedom of speech) no direito norte-americano alcançou um patamar poucas vezes visto em outros países, o que permite historicamente a realização de publicidade comparativa explícita e propagandas eleitorais com forte conteúdo negativo. Além disso, é oportuno mencionar que o direito constitucional norte-americano valoriza igualmente a liberdade de imprensa (freedom of the press), [06] o direito de livre manifestação comercial (Right to commercial speech), [07] bem como há uma forte proteção à liberdade de discurso ou manifestação política (Political Speech). [08]
Passa-se agora a análise de um interessante julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre os limites da propaganda eleitoral negativa. Trata-se do caso Citizens United v. Federal Election Commission (2008). Os fatos que deram origem ao presente caso tiveram início quando uma organização chamada Citizens United (Cidadãos Unidos) ajuizou uma pretensão em desfavor da Comissão Federal Eleitoral (Federal Election Commission), com o intuito de impedir a aplicação de uma norma eleitoral ao filme "Hillary. The Movie", que se tratava de uma obra em que se criticava a Senadora Hillary Clinton, que era candidata à Presidência da República. [09]
Na ocasião, a norma eleitoral, com o propósito de regular as contribuições de campanha, aplicava algumas restrições às comunicações eleitorais. Por exemplo, a lei eleitoral proibia que as empresas e os sindicatos financiassem diretamente anúncios eleitorais com o uso de suas receitas genéricas. Além disso, a legislação eleitoral exigia que fossem revelados os nomes dos doadores de recursos para as campanhas eleitorais. [10]
Inconformada com as exigências da legislação eleitoral, a organização denominada Citizens United (Cidadãos Unidos) alegava que a legislação eleitoral violava o disposto na 1ª Emenda à Constituição norte-americana, [11] se fosse aplicada ao filme sobre Hillary Clinton ou em relação a sua publicidade. Quando a demanda chegou na 2ª instância, a Corte de Justiça Local a julgou improcedente com a alegação de que a Suprema Corte dos Estados Unidos já tinha examinado essa questão no julgamento do caso McCornell v. FEC. Além disso, a Corte estadual entendeu que a decisão no caso McCornell v. FEC havia sido clara ao reconhecer que adivulgação dos nomes dos doadores de campanha poderia ser considerada inconstitucional se causasse um prejuízo para a liberdade de associação (freedom of association). No entanto, asseverou-se que não havia tal prejuízo no caso em análise. [12]
Quando o caso Citizens United v. Federal Election Commission (2008) chegou ao conhecimento da Suprema Corte norte-americana, indagava-se, em síntese, se a legislação eleitoral que obrigava a revelação dos doadores/financiadores de propaganda eleitoral era constitucional. Além disso, questionava-se se a obrigatoriedade de revelação dos nomes dos doadores de campanha não causaria um ônus inconstitucional, por violação da chamada political speech. Ademais, questionava-se se a divulgação de um filme que não fazia uma declaração expressa contra ou a favor de um candidato poderia ser enquadrado como propaganda eleitoral. Por fim, questionava-se se um documentário sobre a vida de um candidato deveria ser tratado como um anúncio eleitoral e sofrer as limitações impostas pela legislação eleitoral. [13]
Ao decidir o mérito do presente caso, a Suprema Corte superou o precedente Austin v. Michigan Chamber of Commerce e alterou, em parte, seu entendimento firmado no caso McCornell v. FEC. Em uma decisão apertada, a maioria da Corte entendeu que a 1ª Emenda à Constituição norte-americana, que permitia a realização de propagandas políticas financiadas diretamente por empresas não poderia ser limitada. A razão desse entendimento partiu da idéia de que a liberdade de manifestação política (political speech) era indispensável para a democracia. No entanto, a Corte entendeu que, apesar de ser ilimitada a possibilidade de realização de propagandas eleitorais financiadas por empresas, a legislação eleitoral que exigia a divulgação dos nomes das empresas e das fontes financiadoras do filme era constitucional, pois a revelação dos nomes dos doadores era justificada pelo interesse público e permitia que o eleitorado tivesse a informação adequada sobre quais eram as fontes de custeio da campanha eleitoral dos candidatos. Por fim, a Suprema Corte manteve o entendimento no sentido da proibição da contribuição de empresas e sindicatos diretamente aos candidatos. [14]
Por todo o exposto, sem ter a menor pretensão de se esgotar o presente tema, verifica-se que os Estados Unidos admitem a possibilidade de realização de propagandas eleitorais negativas contra candidatos, da mesma forma que é admitida a chamada publicidade comparativa explícita na área comercial. Além disso, a Suprema Corte norte-americana entende ser constitucional o financiamento ilimitado de propagandas eleitorais negativas por parte de empresas e doadores particulares, desde que sejam divulgados seus nomes, para que se possa atender o interesse público e o direito dos eleitores à informação sobre as fontes de custeio dos anúncios eleitorais veiculados pelos candidatos, conforme restou decidido no casoCitizens United v. Federal Election Commission (2008). [15]
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NOTAS:
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