CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Lei nº 8.429/92 possui comandos muito abertos, tendo como um dos motivos o fato de que os núcleos dos tipos previstos na referida Lei de Improbidade Administrativa (seu significado jurídico) não foram descritos/previstos pelo legislador, configurando uma grande, gravíssima e irreparável falha, fazendo com que o intérprete, quase sempre, confunda um ato ilegal, punido por outro ordenamento legal, como se fosse também ímprobo, tentando dessa forma subsumir a conduta do infrator na Lei acima referida.
Chegamos a discorrer sobre o tema: [01]
"Ao deixar de definir o conteúdo jurídico do que venha a ser o ato de improbidade administrativa, a Lei nº 8.429/92 permitiu ao intérprete uma utilização ampla da ação de improbidade administrativa, gerando grandes equívocos e injustiças, pois possibilitou que atos administrativos ilegais, praticados sem má-fé, ou sem prejuízo ao ente público fossem confundidos com os tipos previstos na presente lei. Tal equívoco, como dito, é resultado da falta de uma definição jurídica do ato de improbidade administrativa, apresentando-se, portanto, como norma de conteúdo incompleto."
Em sendo assim, esse gravíssimo defeito legislativo, existente no texto da Lei nº 8.429/92, que parte dos seus três tipos, descritos nos artigos 9º (enriquecimento ilícito), 10 (prejuízo ao erário) e 11 (violação dos bons princípios da Administração Pública), sem descrever qual seja o conteúdo do núcleo do tipo do ato ímprobo, acarreta uma grande ambigüidade, ou melhor, uma extensa imprecisão conceitual para quem possui legitimidade ativa para propor a ação de improbidade administrativa, pois, no afã de cumprir o seu dever funcional, ajuíza a demanda, mesmo que ela não possua plausibilidade jurídica.
Tal equívoco, a nosso juízo, não possui como fundamento primeiro a má-fé ou a atuação desastrosa e imprudente do autor da ação, mas sim a elasticidade que ocorre quando da interpretação do texto da Lei nº 8.429/92, pois se não houver uma análise extremamente acurada do caso concreto, ensejará o seu indevido manejo para todas as situações legais, mesmo que não haja sequer uma prova indireta de que o ato foi praticado com violação aos tipos legais previstos no texto legal da Lei acima referida.
A bem da verdade, não resta dúvida de que o Poder Judiciário, como guardião da legalidade, vem enfrentando o presente tema com proporcionalidade e razoabilidade, fazendo o devido cotejo entre o que se trata de improbidade administrativa e de matéria, que nem em tese, se equipara ao ato ímprobo.
Para tanto, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu, em relação aos tipos descritos nos artigos 9º e 11 da Lei nº 8.429/92, [02] a necessidade da subsunção da conduta do agente público em um ou outro referido tipo, mas sempre precedida do elemento subjetivo dos tipos, qual seja, o dolo, não configurando os mesmos se o elemento subjetivo da conduta do agente for a culpa.
Não resta dúvida de que ninguém se enriquece ilicitamente de forma culposa (art. 9º, da Lei nº 8.429/92), visto ser necessária a vontade livre e consciente quando da prática de tal ato espúrio e imoral, ou seja, deve estar presente na conduta do agente o dolo (elemento subjetivo do tipo). De igual forma, configurou-se um grande avanço jurisprudencial quando ficou, em definitivo, estabelecido o dolo como elemento subjetivo do tipo previsto no artigo 11, da Lei em questão, portanto, devendo esse estar sempre presente na conduta do agente que pratica o referido ato ilícito, pois senão quem quer que praticasse o referido tipo legal, a título de culpa, poderia ser punido, pois sua conduta seria tida, em tese, como ato ímprobo. E foi justamente essa interpretação equivocada que foi levada a efeito pelo Ministério Público quando da edição da Lei nº 8.429/92, perdurando por muitos anos, em decorrência de que esse dogma do ato administrativo ilegal sempre foi confundido com o ímprobo, que causou lesão irreparável para os agentes públicos alçados à despropositada e injusta posição de Réus.
Não resta dúvida que, em decorrência de muitas injustiças praticadas, o Poder Judiciário posicionou-se com o correto entendimento de que a violação aos bons princípios da Administração Pública exige para sua configuração o elemento subjetivo do tipo, qual seja, o dolo; portanto, não estando esse presente, haverá atipicidade da conduta do agente público.
Em sendo assim, exige-se o dolo para que se configurem os tipos legais dos artigos 9º e 11, da Lei nº 8.429/92, não havendo previsão a título de culpa, isso porque "a má-fé, consoante cediço, é premissa do ato ilegal e ímprobo e a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvados pela má-intenção do Administrador." [03]
Isso porque a má-fé deve associar-se à noção de desonestidade, visto que a Lei nº 8.429/92 é bastante rígida e não comporta uma interpretação extensiva e dissociada da proteção de seu bem jurídico maior, que é a Administração Pública.
De igual modo, deve salientar-se que, quando da aplicação do texto da Lei nº 8.429/92, sempre é desconsiderada a responsabilidade objetiva do agente público, em decorrência de que o elemento subjetivo é essencial à caracterização da improbidade administrativa, portanto, sempre prevalecendo a responsabilidade subjetiva.
Em sendo assim, reverenciando o princípio da culpabilidade e o da responsabilidade subjetiva, não se admite a responsabilização objetiva.
Diante do aduzido, tem-se que o texto da Lei nº 8.429/92 deve ser aplicado sempre que o agente público ou particular pratique atos de improbidade administrativa contra a Administração Pública, que é o bem maior a ser tutelado por seus comandos legais.
Jamais uma briga de rua ou uma agressão física praticada por um agente público contra um terceiro, no exercício de sua função pública, poderá ser subsumida (a conduta) no tipo descrito no caput do artigo 11 ou em um de seus incisos, da Lei nº 8.429/92, porquanto o bem tutelado é justamente o Estado (Administração Pública).
O desvio ou excesso de conduta do agente público policial, agentes penitenciários, etc., quando praticados de forma ilícita e violadora dos direitos e das garantias individuais de terceiros, ensejam uma possível responsabilidade civil, penal, administrativa e disciplinar (art. 121, da Lei nº 8.112/90), mas jamais poderá haver a subsunção das referidas condutas dos agentes nos tipos pertinentes previstos na Lei nº 8.429/92.
II – O BEM JURÍDICO TUTELADO PELA LEI Nº 8.429/92 REFERE-SE À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E NÃO AO PARTICULAR
Não resta dúvida que o gravíssimo defeito legislativo que macula o texto da Lei nº 8.429/92, já comentado no tópico inaugural, permite ao intérprete o mau uso da jurisdição, visto que ele é induzido a confundir um possível ato ilegal, com a prática de uma conduta ímproba.
Pela dicção do artigo 1º, da Lei nº 8.42/92, conclui-se que o bem jurídico tutelado pela lei de improbidade administrativa é a Administração Pública, verbis: "Art. 1° Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei."
Como aduzido, apesar de defeituosa, a redação do artigo 1º, da Lei de Improbidade Administrativa, por não descrever o núcleo do tipo do ato de improbidade administrativa, preferindo partir dos seus três tipos descritos nos artigos 9º, 10 e 11, não deixa dúvida alguma que o bem jurídico tutelado pelo aludido comando legal é a Administração Pública Direta e indireta, não sendo contemplado, via de consequência, violação ao direito de particular isoladamente.
A única exceção que o citado e transcrito artigo faz é quando empresa ou particular receba subvenção, benefício, incentivo fiscal ou creditício, de órgão público, bem como daquelas cuja criação ou custeio o erário haja concorrido com menos de 50% (cinqüenta por cento), na forma do parágrafo único do artigo 1º, da Lei nº 8.429/92.
A redação do parágrafo único corrobora ainda mais a afirmação de que o bem jurídico tutelado pela Lei nº 8.429/92 é o Estado, corporificado na Administração Pública direta, indireta ou fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresas incorporadas ao patrimônio público, ou cuja criação tenha havido custeio do erário, com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual.
O particular que tenha tido o seu direito subjetivo violado por ação ou omissão de um agente público policial estaria protegido, em termos jurídicos, por disposição contida no artigo inaugural da Lei nº 8.429/92?
Entendemos que não, pois as disposições contidas na Lei nº 8.429/92 não protegem bem jurídico que envolvam particulares mas sim, a proteção diz respeito ao poder público, onde o agente ou o terceiro que concorra ou se beneficie de ato ímprobo, responderão aos termos da lei sub oculis. Jamais haverá a responsabilidade subjetiva do agente público que viole direitos de particulares, nos termos da Lei nº 8.429/92, em decorrência de que seu texto, na totalidade, não se presta a apuração desse tipo de responsabilização.
Se o agente público policial exceder-se no exercício de sua função pública violando bem jurídico de particulares, ele será responsabilizado (se for o caso), civilmente, penalmente e em termos administrativo disciplinar, na forma dos aludidos comandos legais, sem que haja reflexo ou extensão para a Lei nº 8.429/92, apesar de, em tese, ter havido uma infração funcional, resultado da prática de ato ilegal.
Essa conclusão decorre do disposto no texto da Lei nº 8.429/92, justamente porque estabelece que a sua aplicação objetiva tutelar a Administração Pública , corporificada no próprio Estado.
Otto Mayer, [04] em sua Obra clássica do direito administrativo alemão teve a oportunidade de definir Estado sob o prisma administrativista: "1 - El Estado es un pueblo organizado bajo un poder soberano para la persecución es la actividad del Estado para el cumplimento de su fines. Así comprendida, ella se opone a la Constitución, que no hace sino preparar esta actividad; administración implica la existencia del poder soberano mediante el cual el Estado llega a ser capaz de obrar."
Para Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, [05] o "Estado constitui uma unidade no espaço, aferida pelo seu fim, em que busca o interesse comum, dos seus membros, bem como pela sua organização, como um todo único, independentemente dos indivíduos considerados ut insuli." –[Itálico no original]-.
Dessa forma, a Lei nº 8.429/92 protege o bem tutelado do Estado, corporificado pela Administração Pública [06] em sentido lato, prestadora de serviços para a sociedade. Se houver o exercício irregular praticado pelo agente público, que viole os princípios da boa Administração, dentre outros, causando lesão ao ente de direito público, haverá, em tese, a plausibilidade jurídica de se invocar um dos três tipos descritos pela lei de improbidade administrativa.
Sucede, que se não ocorrer lesão ao poder público, de qualquer ordem ou espécie, não haverá tipicidade na conduta do agente público a qual não poderá ser subsumida na lei de improbidade administrativa, porquanto o seu fundamento é salvaguardar exatamente valores e princípios voltados à proteção do Estado, que não podem se confundir com os direitos violados dos particulares.
Conforme aduzido alhures, o particular que receba subvenção, benefício ou incentivo fiscal de modo ilícito é que poderá ter sua conduta subsumida nos tipos legais previstos na presente lei, pois do contrário, o terceiro (particular) lesado deverá utilizar-se de outro instrumento jurídico previsto no ordenamento jurídico caso o agente público tenha cometido excessos na sua atuação ou praticado ato administrativo ilegal.
Jamais o agente público responderá aos termos da Lei nº 8.429/92 se violar direitos e garantias fundamentais do particular, em virtude do caráter sancionador da lei em questão ser aplicável aos agentes que, por ação ou omissão violem os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, lealdade, etc., às instituições públicas e notadamente pratiquem o ilícito de enriquecimento ilícito (art. 9º), causem prejuízo ao erário público (art. 10) ou atentem contra os princípios da Administração Pública (art. 11).
Isso porque, o bem jurídico tutelado pela lei de improbidade administrativa é a Administração Pública, corporificada pelo Estado, através de seus diversos entes de direito público, que em momento algum se confundem com o direito individual do particular, que se for violado, terá que adequar a conduta do agente público ao disposto no artigo 121, da Lei nº 8.112/90, assim redigido: "O servidor reponde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições."
A responsabilidade do agente público sofre gradação, possuindo características próprias, decorrentes do elemento subjetivo do tipo no qual seja subsumida sua conduta, inerente a cada esfera jurídica, que é variável de instância para instância.
Dessa forma, o agente público que cometer excessos no exercício de sua função pública não ficará impune a uma severa e acurada investigação na esfera correspondente, sem que com isso, obrigatoriamente, haja a devida correspondência/reflexo com o disposto na Lei nº 8.429/92, em razão do princípio da tipicidade exigir que a conduta irregular/ilícita esteja previamente prevista em um de seus tipos legais.
Apesar de possuir comandos abertos, para haver a subsunção da conduta do agente público em um dos três tipos descritos na Lei nº 8.429/92, é necessário, antes de mais nada, que os atos de improbidade administrativa ofendam a atividade administrativa [07] e o conjunto de órgãos e entidades que a desempenham.
Nesse sentido, o artigo 9º, da Lei nº 8.429/92, estabelece que constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício do munus público.
Dessa forma, o servidor público que lesar ente privado, ou a direito subjetivo de particular, prejudicando financeiramente grande número de pessoas, enriquecendo-se às custas de outrem, não responderá aos termos descritos no artigo 9º, da Lei nº 8.429/92, por não ter se locupletado do erário público, e sim de verba privada.
Corroborando o que foi aduzido, o artigo 18, da Lei nº 8.429/92 estabelece que a sentença que julgar procedente ação civil de reparação de dano ou decretar a perda dos bens havidos ilicitamente determinará o pagamento ou a reversão dos bens, conforme o caso concreto, em favor da pessoa jurídica prejudicada pela prática do ilícito, que deu causa a condenação.
O mesmo princípio se estende aos casos que acarretem lesão ou prejuízo ao erário público (artigo 10, da Lei nº 8.429/92), por ação ou omissão do agente público, que cause perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação, etc., dos bens ou haveres das entidades referidas no artigo 1º, da Lei nº 8.429/92.
Da mesma forma, o dever de cumprir os princípios da Administração Pública (artigo 11, da Lei nº 8.429/92) pelo agente público, possui como destinatário final o Estado, representado pelos entes descritos no artigo 1º, da Lei nº 8.429/92.
Nesse sentido, Fábio Medina Osório [08] posiciona-se: "Dispõe o art. 1º da LGIA que os atos de improbidade realizados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou institucional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados Federados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou entidade para cuja criação ou manutenção o erário tenha concorrido ou concorra com mais de 50% (cinqüenta por cento) do patrimônio ou dos ganhos anuais, serão sancionados na forma estabelecida pela LGIA." –[Sublinhado nosso]-.
Somente haverá, em tese, prática de ato de improbidade administrativa se houver lesão ao disposto no artigo 1º, da Lei nº 8.429/92, que tutela o bem jurídico da boa Administração Pública.
Atos praticados pelo agente público que não estejam dentro do contexto do artigo 1º, da Lei nº 8.429/92, que atinjam a direito subjetivo de terceiros e que configurem exercício irregular da função pública, serão objeto de análise, processamento e porventura punição por intermédio de outros ordenamentos legais sancionatórios, diversos do da Lei de Improbidade Administrativa.
III – AGRESSÃO FÍSICA (LESÃO CORPORAL) PRATICADA POR POLICIAL NO EXERCÍCIO DE SUA FUNÇÃO À TERCEIRO NÃO SE INSERE NO ROL TAXATIVO DA LEI Nº 8.429/92:
Explicitados os elementos de conexão das disposições contidas na Lei nº 8.429/92, definindo o escopo de sua incidência, e a preocupação do legislador de tutelar o bom andamento jurídico da probidade do agente público no trato da coisa pública, urge perquirir se o mau ou excessivo desempenho da função policial, na qual esse se utiliza de truculência, agressão, abuso de autoridade ou força física para com o particular, no desempenho de sua função, estariam ou não subsumidas no âmbito da lei em questão.
Em primeiro lugar é necessário deixar expresso que o ato administrativo ilegal, por si só não é necessariamente ímprobo.
Para ser ímprobo, o ato administrativo deverá caracterizar-se como de regra, pelo elemento subjetivo doloso, em decorrência da própria natureza sancionatória da Lei nº 8.429/92, além de ser direcionado para as lesões praticadas contra a Administração Pública em sentido amplo (art. 1º, da Lei nº 8.429/92).
Isso porque, o objetivo da lei de improbidade administrativa é punir o agente público desonesto e não o inábil, [09] desastrado ou truculento.
Quando o agente público, no caso policial, no exercício de sua atividade funcional, dá voz de prisão para determinada pessoa, por estar praticando ou tentando praticar um delito ou, por exemplo, face descumprimento de ordem judicial, etc., ela passa a ser custodiada pelo Estado, sendo dever do agente público manter a ordem e a paz social. Contudo, se ocorre uma reação violenta e desproporcional por parte da pessoa custodiada, o referido policial deverá se impor e revidar, com a finalidade única e exclusiva de manter eficaz e eficiente o seu trabalho, bem como deixando de colocar em risco a sociedade com a atuação criminosa da pessoa que está sendo presa.
Contudo, se o policial, no exercício de sua função e quando da referida prisão se excede, praticando ato de violência desnecessário, totalmente desproporcional à ação/reação da pessoa que está sendo presa, tal ato seria, em tese, considerado ímprobo?
Da mesma forma, pergunta-se: se o policial responsável por uma área do trânsito se exalta com o condutor de determinado veículo e sem qualquer motivo justificável lhe ofende, e a seguir pratica ato de violência física contra o referido condutor sem razão verossímil, pratica ato de improbidade administrativa?
Não resta dúvida, que em ambas as situações nas quais os agentes policiais se excederam e praticaram atos de violência física ou mental, por certo agiram de forma ilegal e em tese, criminosa,, com desdobramentos para a esfera penal (lesão corporal) e administrativa disciplinar, sem contudo possuir reflexo para o âmbito da improbidade administrativa, porquanto mesmo que no exercício funcional os referidos agentes não feriram o bem tutelado pela Lei nº 8.429/92 (art. 1º) mas sim, invadiram, em tese, a esfera particular das pseudo vítimas.
Dessa forma, nas duas hipóteses acima analisadas não há que se falar em improbidade administrativa, vez que os atos praticados pelos agentes públicos são figuras atípicas no contexto da Lei nº 8.429/92, ou seja, não possuem previsão legal na lei de improbidade administrativa.
Não resta dúvida que a lei de improbidade administrativa objetiva a tutela do patrimônio público e da moralidade, não podendo ser aplicada aos casos de abuso ou excesso de poder praticado por agente público.
No presente estudo, não se defende a prática de violência ou de ato abusivo e truculento por parte da autoridade policial, ou de qualquer outra categoria funcional, mas sim, objetiva-se demonstrar que nem todo ato administrativo tido como ilegal pode ser tipificado na lei de improbidade administrativa.
Por mais imoral e abominável que se configure a violência física e a covardia de determinados abusos de poder que a sociedade presencia quase todos os dias, pessoalmente ou através dos meios de divulgação da imprensa, não se pode confundir o alcance e o escopo da Lei nº 8.429/92, para adaptá-la a todas as situações jurídicas, como se isso fosse possível.
O tipo legal descrito no artigo 11, da Lei nº 8.429/92 não é violado quando ocorre agressão física ilegal contra particulares ou pessoas custodiadas, porquanto a citada lei objetiva a tutela do poder público no que concerne ao seu patrimônio ou a manutenção da moralidade, não extensível tais valores a direitos particulares dos indivíduos, que possuem no ordenamento jurídico outros meios de reparação. Em sendo assim, a prática do fato ilícito acima referido não reclamam o reconhecimento de ato de improbidade administrativa, apesar do mesmo violar gravemente o princípio da legalidade.
Nesse sentido, extrai-se a lição do recente julgado da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, [10]verbis: "Administrativo. Recurso Especial. Ação Civil Pública por ato de Improbidade Administrativa. Agentes Penitenciários. Agressão contra particular. Violação do art. 11 da Lei 8.429/92. Ofensa ao princípio da Legalidade. Conduta que não se enquadra, contudo, na Lei de improbidade administrativa. Recurso não provido. 1. A Lei de Improbidade Administrativa visa a tutela do patrimônio público e da moralidade, impondo aos agentes públicos e aos particulares padrão de comportamento probo, ou seja, honesto, íntegro, reto. 2. A Lei 8.429/92 estabelece três modalidades de improbidade administrativa, previstas nos arts. 9º, 10 e 11, a saber, respectivamente: enriquecimento ilícito, lesão ao erário e violação aos princípios norteadores da Administração Pública. 3. A conduta prevista no art. 9º da LIA (enriquecimento ilícito) abrange, por sua amplitude, as demais formas de improbidade estabelecidas nos artigos subsequentes. Desta maneira, a violação aos princípios pode ser entendida, em comparação ao direito penal, como "soldado de reserva", sendo, aplicada, subsidiariamente, isto é, quando a conduta ímproba não se subsume nas demais formas previstas. 4. De acordo com Francisco Octávio de Almeida Prado (Improbidade Administrativa, Malheiros Editores, São Paulo, 2001, p. 37), "A improbidade pressupõe, sempre, um desvio ético na conduta do agente, a transgressão consciente de um preceito de observância obrigatória". 5. A improbidade administrativa, ligada ao desvio de poder, implica a deturpação da função pública e do ordenamento jurídico; contudo, nem toda conduta assim caracterizada subsume-se em alguma das hipóteses dos arts. 9º, 10 e 11 da LIA. 6. Nesse sentido, Arnaldo Rizzardo (Ação Civil Pública e Ação de Improbidade Administrativa, GZ Editora, 2009, p. 350): "Não se confunde improbidade com a mera ilegalidade, ou com uma conduta que não segue os ditames do direito positivo. Assim fosse, a quase totalidade das irregularidades administrativas implicariam violação ao princípio da legalidade. [...] É necessário que venha um nível de gravidade maior, que se revela no ferimento de certos princípios e deveres, que sobressaem pela importância frente a outros, como se aproveitar da função ou do patrimônio público para obter vantagem pessoal, ou favorecer alguém, ou desprestigiar valores soberanos da Administração Pública". 7. In casu, o fato praticado pelos recorridos, sem dúvida reprovável e ofensivo aos interesses da Administração Pública, não reclama, contudo, o reconhecimento de ato de improbidade administrativa, apesar de implicar clara violação ao princípio da legalidade. Assim fosse, todo tipo penal praticado contra a Administração Pública, invariavelmente, acarretaria ofensa à probidade administrativa. 8. Recurso não provido." –[Itálico e aspas no original]-.
Até mesmo a tortura, que é crime hediondo, totalmente reprovável por toda sociedade, em face do princípio da dignidade do ser humano, não se caracteriza em ato de improbidade administrativa, como decidido pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, [11] no seguinte julgado: "Improbidade Administrativa. Atos que atentam contra os princípios da Administração Pública. Tortura e Espancamento de presos. 1. Os atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração, listados no art. 11 da Lei n. 8.429, de 02/06/1992, não se confundem com simples ilegalidades administrativas, devendo, a mais disso, apresentar alguma aproximação objetiva com a essencialidade da improbidade, em termos de prejuízo ao erário ou de enriquecimento ilícito. As imputações de tortura e espancamento de presos, mesmo tipificando condutas graves, administrativas e penais, não devem ser enquadradas na previsão do art. 11, I da Lei n. 9.429/1992, para fins de improbidade administrativa. 2. Provimento do agravo de instrumento. Reforma da decisão agravada. Rejeição da ação ordinária de improbidade administrativa (art. 17, § 8º - Lei n. 8.429/1992)."
Outra hipótese interessante foi a julgada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, onde determinados policiais federais foram acusados de abuso de autoridade, por terem agredido física e mentalmente determinado preso, havendo autoria incerta, sendo afastada a incidência da Lei nº 8.429/92 para a hipótese julgada. [12]
Nesse caso o TRF - 4ª Região não enfrentou a questão jurídica que desenvolvemos no presente estudo, pois em não sendo demonstrada a autoria (incerta), preferiu negar o manejo da ação de improbidade administrativa por esse fundamento. Entretanto, com a devida venia, vamos mais além, pois entendemos que mesmo estando identificada a autoria e havendo materialidade comprovada, não há que falar-se em improbidade administrativa quando trata-se de agressão física ou mental praticada pela autoridade policial, no exercício de sua função pública, inclusive por não haver possibilidade, nem remota, da subsunção de tal conduta no artigo 11, da lei em questão.
A conduta ímproba, como já aduzido alhures, trata-se da violação do patrimônio público e da moralidade, ambos como preservação do bem jurídico tutelado que é o poder público e não os direitos e garantias fundamentais do particular, mesmo que esse esteja custodiado/preso.
Jamais haverá ato de improbidade administrativa por violação de direito de particulares, sob o argumento que o agente público praticou ato violador do princípio da legalidade ou da própria moralidade. Isso porque o direito do particular violado indevidamente pelo agente público ensejará a sua responsabilidade civil, penal e administrativa disciplinar, dependendo do caso concreto, mas jamais será passível de responsabilização por ato de improbidade administrativa.
Oportuno relembrar, como já ressaltado anteriormente, que nessas situações, ocorre atipicidade da conduta, para fins dos termos da Lei nº 8.429/92.