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O diálogo entre a liberdade religiosa e o direito à diversidade na jurisprudência da Corte Constitucional da África do Sul

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Agenda 13/11/2011 às 07:56

A Corte de Johannesburgo tem firmado posições instigantes e, na maioria dos casos, progressistas (embasadas em motivações substanciosas), as quais consubstanciam o estado da arte no estudo do multiculturalismo na seara dos direitos fundamentais e do diálogo entre a liberdade religiosa e o direito à diversidade.

Sumário: Introdução ? 1 Balizas do Direito Constitucional Positivo e Pretoriano sul-africano ? 2 Casos CCT 38/96 (S v Lawrence), CCT 39/96 (S v Negal) e CCT 40/96 (S v Solberg) ? 3 Caso CCT 4/00 (Christian Education South Africa v Minister of Education) ? 4 Caso CCT 36/00 (Prince v Law Society of the Cape of Good Hope) ? 5 Caso CCT 40/03 (Juleiga Daniels v Robin Grieve Campbell N.O. and Others) ? 6 Casos CCT 60/04 e CCT 10/05 (Minister of Home Affairs and Another v Fourie and Another) ? 7 Caso CCT 51/06 (MEC for Education: Kwazulu-Natal and Others v Pillay) ? 8 Caso CCT 83/08 (Hassam v Jacobs N.O. and Others) ? Conclusão ? Referências.

Resumo: Este artigo analisa os principais precedentes da Corte Constitucional da África do Sul concernentes ao diálogo entre a liberdade religiosa e ao direito à diversidade. Enfoca-se a fundamentação constitucional dos respectivos acórdãos. Almeja-se propiciar aos juristas de língua portuguesa subsídios para a análise doutrinal e o aperfeiçoamento jurisprudencial de controvérsias congêneres.

Palavras-chaves: jurisprudência da Corte Constitucional da África do Sul; liberdade religiosa; direito à diversidade.

Abstract: This article reviews the main precedents of the Constitutional Court of South Africa concerning the dialogue between religious freedom and the right to diversity. It is emphasized the constitutional basis of those judgments. It is intended to give legal support to the doctrinal analysis and improvement of case-law done by Portuguese-spoken jurists concerning similar controversies.

Keywords: Constitutional Court of South Africa case-law; religious freedom; right to diversity.


Introdução

Nas décadas de 1990 e 2000, a Corte Constitucional da África do Sul enfrentou polêmicas complexas envolvendo a liberdade religiosa e o direito à diversidade, atinentes à autonomia normativa e disciplinar das instituições educacionais privadas, à índole laica e pluralista do Estado, à legislação penal antitóxicos e à situação de hipossuficiência, exclusão social ou vulnerabilidade socioeconômica de pessoas que possuem orientação sexual ou comungam de valores culturais e religiosos minoritários.

Em meio a questões tão multifacetadas, a exemplo dos efeitos sucessórios de casamento muçulmano monogâmico e poligínico, do consumo de maconha em cultos rastafáris, do reconhecimento jurídico do matrimônio homoafetivo [01], da aplicação de castigos corporais em educandários cristãos e da proibição ao uso de ornamento religioso hindu em colégio de elite feminino, a Corte de Johannesburgo tem firmado posições instigantes e, na maioria dos casos, progressistas (embasadas em motivações substanciosas), as quais consubstanciam o estado da arte no estudo do multiculturalismo na seara dos direitos fundamentais e do diálogo entre a liberdade religiosa e o direito à diversidade.

Após se traçar pequeno bosquejo das balizas da liberdade religiosa e do direito à diversidade no Direito Constitucional da África do Sul, passa-se ao exame dos principais precedentes do Tribunal Constitucional sul-africano relativos à interação entre liberdade religiosa e direito à diversidade [02], expostos em ordem cronológica, com o fito de facilitar a análise da paulatina evolução da construção pretoriana em referência, resplendendo-se os fundamentos invocados pela Corte de Johannesburgo, de modo que sirvam de semente de reflexão para o desenvolvimento de novas pesquisas jurídicas no âmbito da dogmática lusófona e de subsídio para o eventual enfrentamento de matérias correlatas pelos Poderes Judiciários e Tribunais Constitucionais de língua oficial portuguesa.


1 Balizas do Direito Constitucional Positivo e Pretoriano sul-africano

Relativamente ao tema sub examine cumpre sobressair estes aspectos da Carta de Direitos Fundamentais (Bill of Rights) [03] da Constituição da República da África do Sul de 1996 (Constitution of the Republic of South Africa ? Act 108 of 1996) [04]:

(1) Vislumbra a dignidade como caractere inerente a todas as pessoas humanas e agasalha o direito de todos os seres humanos de terem sua dignidade respeitada e protegida — seção 10 [05].

(2) Positiva a igualdade de todos perante a lei, e preceitua que a todos sejam dados, pela lei, iguais proteção e benefícios — seção 9(1). Como desdobramento do princípio da isonomia, (a) preconiza o direito ao pleno e igualitário gozo de todos os direitos e liberdades, assim como a alvorada de medidas estatais (inclusive legislativas) voltadas à proteção ou ao desenvolvimento de pessoas e grupos de pessoas prejudicados por discriminações injustas [06], bem como à prevenção ou coibição de condutas discriminatórias injustas — seção 9(2)(4) —, e proíbe discriminações diretas ou indiretas (pelo Estado e por pessoas em geral) baseadas em critérios de raça, gênero, sexo, gravidez, estado conjugal, origem étnica ou social, cor, orientação sexual, idade, deficiências, religião, consciência, crença, cultura, linguagem e nascença — seção 9(3)(4) [07].

(3) Insculpe o direito à liberdade de consciência, religião, pensamento, crença e opinião — seção 15(1) —, ao mesmo tempo que permite ao Direito Legislado reconhecer os efeitos jurídicos de matrimônios celebrados sob o pálio de normas religiosas ou de tradições — seção 15(3)(a)(i)(ii) [08].

(4) Franqueia a todas as pessoas humanas o direito de escolherem a linguagem e a vida cultural de sua preferência, bem como de se dedicarem às atividades culturais, religiosas e linguísticas das respectivas comunidades a que pertencem, desde que não violem dispositivos da Carta dos Direitos Fundamentais — seções 30 e 31 [09].

(5) Impõe que os temperamentos aos direitos fundamentais sejam realizados tão só por normas de aplicação geral e caso se revelem limitações razoáveis e justificáveis em uma sociedade aberta e democrática, estribada na dignidade da pessoa humana, na igualdade e na liberdade, tendo em conta todos os fatores relevantes, averiguando-se, inclusive (enumeração exemplificativa), (a) a natureza do direito objeto de relativização, (b) a importância da finalidade da limitação, (c) a natureza e a extensão da limitação, (d) o liame entre a limitação e seu propósito, e (e) a existência de meios menos restritivos de se alcançar a finalidade almejada — seção 36 (1) [10].

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(6) E apregoa a interpretação judicial da Carta de Direitos Fundamentais pautada na promoção de valores que tenham como substrato o fomento a uma sociedade aberta e democrática esteada na dignidade humana, na igualdade e na liberdade, assim como a interpretação judicial do ordenamento jurídico infraconstitucional sul-africano e de fontes do Direito Internacional e Comparado à luz do espírito, do sentido e dos desígnios da Carta de Direitos Fundamentais, além de acolher direitos e liberdades que, a despeito da falta de expressa previsão no texto constitucional, respaldam-se no Direito Judiciário, Consuetudinário ou Legislativo, contanto que harmônico com a Carta dos Direitos Fundamentais — seção 39 (1)(2)(3) [11].

Na Corte Constitucional da África do Sul, no caso CCT 36/00 (Prince v Law Society of the Cape of Good Hope),o Chief Justice Sandile Ngcobo divisou a proteção da diversidade como pilar de uma sociedade livre e aberta, desdobramento da dignidade de todos os seres humanos inerente ao reconhecimento constitucional da pluralidade linguística, cultural, religiosa e social da África do Sul e à previsão, também esculpida no corpo da atual Carta Magna sul-africana, da liberdade religiosa e da proibição das variadas formas de discriminação, redundando-se na necessidade de acomodar todos os credos que vicejam na sociedade sul-africana (acórdão definitivo do caso CCT 36/00, §§ 49 e 79, de 25 de janeiro de 2002) [12].

Nos casos CCT 38/96 (S v Lawrence), CCT 39/96 (S v Negal) e CCT 40/96 (S v Solberg) ? julgados em bloco ?, a Justice Kate O'Regan entendeu que a chancela do Estado à determinada religião, em detrimento dos demais credos, representa ameaça à liberdade de religião, mormente em uma sociedade como a sul-africana, em que se faz presente expressiva diversidade religiosa cuja proteção constitucional seria implícita à cláusula constitucional (Carta dos Direitos Fundamentais, seção 14) assecuratória do direito à vida privada (acórdão dos casos CCT 38/96, 39/96 e 40/96, §§ 123 a 129) [13].

No mesmo julgamento, o Justice Albie Sachs vislumbrou as liberdades de opinião e de expressão como consectárias da tônica da ordem constitucional sul-africana no binômio abertura e diversidade, corolárias da faculdade do indivíduo, de forma isolada ou em comunidade, de ser diferente em suas crenças e comportamentos, sem que sofra a imposição estatal de sacrificar os direitos ínsitos à cidadania [14], estendidos a todos os sul-africanos (acórdão dos casos CCT 38/96, 39/96 e 40/96, §§ 145 e 147) [15].

Nos casos CCT 60/04 e CCT 10/05 (Minister of Home Affairs and Another v Fourie and Another) ? julgados em conjunto ?,o referido magistrado frisou que a Constituição sul-africana de 1996 celebra a diversidade nacional, na qualidade de expressão da tolerância e do respeito mútuos entre os sul-africanos, inspirada no ideal da diversidade na unidade [16] (acórdão dos casos CCT 60/04 e CCT 10/05,§§ 60 e 107) [17]. Na esteira, no caso CCT 83/08 (Hassam v Jacobs N.O. and Others), o Justice Bess Nkabinde viu a diversidade social sul-africana como baliza para a interpretação constitucional e asseverou que a Lei Maior de 1996 não apenas tolera, mas celebra a diversidade daquela nação (acórdão do caso CCT 83/08, §§ 27 e 33) [18].

No caso CCT 4/00(Christian Education South Africa v Minister of Education),Sachs enxergou o princípio da diversidade sob os prismas do direito da pessoa humana de se integrar à determinada comunidade religiosa, cultural e linguística e do dever do Estado de assegurar o exercício desse direito individual e de permitir a tais comunidades que pratiquem, de forma livre, sua religião, cultura e idioma (acórdão do caso CCT 4/00, § 23) [19]. No caso CCT 51/06 (MEC for Education: Kwazulu-Natal and Others v Pillay), o então Chief JusticePius Langa, além de frisar o múnus estatal de agasalhar a diversidade, contextualizou a ode constitucional à diversidade como passo fundamental na ruptura, pela África do Sul, com seu passado de intolerância e exclusão (acórdão do caso CCT 51/06, §§ 65, 75 e 77) [20].

Tais ponderações, ventiladas no seio da Corte de Johannesburgo, forjaram o que Lourens du Plessis nomina a jurisprudência da diferença (jurisprudence of difference), conjunto de arestos da Corte Constitucional da África do Sul que, debruçados sobre controvérsias relacionadas à liberdade religiosa e ao direito à diversidade, sedimentaram construção pretoriana a atalhar preconceitos arraigados no imo do corpo social, com vistas a facilitar a inserção, no âmago da sociedade, de indivíduos e grupos sociais tradicionalmente marginalizados [21].

A tendência doutrinal do Tribunal Constitucional sul-africano se harmoniza com a incumbência dos Estados democráticos e liberais de coadjuvarem "os grupos em desvantagem" [22], de modo que possam "preservar a sua cultura contra as interferências das culturas majoritárias" [23], explica Quintino Lopes Castro Tavares, a ressaltar o imperativo do Poder Público de resguardar o direito à diferença, ao respeitar a "identidade singular de cada um, independente de seu sexo, raça ou etnia" [24] e as "atividades práticas e modos de ver o mundo que são objeto de uma valoração singular ou inseparáveis dos membros dos grupos (principalmente os) em desvantagem" [25], tendo-se em mira o resguardo "ao plano de vida de cada um, sua construção social inerente e inseparável de si mesmo, construída por força dos valores que compartilha e do grupo no qual está inserido ou com o qual é identificado" [26], já que "o indivíduo cria a sua referência identitária" [27] lastreada "no que recebe de seu grupo de pertença, projeto de conscientização sobre si mesmo, e no que extrai nas relações sociais da realidade do dia a dia" [28].

O apreço da Corte de Johannesburgo pela diversidade ecoa um olhar multiculturalista, que busca compreender "o outro" pondo-se, tanto quanto possível, no lugar "do outro" (voto do Justice Lourens Ackermann no caso CCT 11/98, § 22, National Coalition for Gay and Lesbian Equality and Another v Minister of Justice and Others [29]), ou seja, do diferente e do excluído.

Com efeito, o multiculturalismo repele — lembra Tavares — a sujeição do "nosso próprio modo de vida ao outro, apenas porque ele tem um estilo de viver diferente ou porque provém de uma outra cultura" [30], cônscio de que "devemos combater as falhas e os erros existentes em cada cultura, mas não podemos confundir a luta contra os erros e a opressão com a condenação das culturas a que os outros pertencem" [31].


2 Casos CCT 38/96 (S v Lawrence), CCT 39/96 (S v Negal) e CCT 40/96 (S v Solberg)

Em 6 de outubro de 1997, nos casos CCT 38/96 (S v Lawrence), CCT 39/96 (S v Negal) e CCT 40/96 (S v Solberg) ? julgados em bloco ?, a Corte Constitucional da África do Sul, capitaneada pelo voto do então Presidente [32] Arthur Chaskalson (secundado pelo Vice-Presidente Pius Langa e pelos Justices [33] Lourens Ackermann e Johann Kriegler), assentou que os recorrentes não lograram demonstrar que a proibição legal (positivada na seção 90 da Lei do Álcool — Liquor Act, ato legislativo também denominado Liquor Act 27 of 1989)deque grocery stores (nesse contexto, mercearias, lojas de conveniência e congêneres) vendam vinho aos domingos(proibição estendida ao Dia do Natal e à Sexta-Feira da Paixão ou Sexta-Feira Santa) infringiria a liberdade religiosa, de crença e opinião nem a liberdade de livre iniciativa (insculpidas nas seções 14 e 26, respectivamente, da Constituição sul-africana interina de 1993) e, ad argumentandum tantum, caso restasse, de fato, comprovada, no álbum processual, a existência da referida interdição estatal à liberdade do exercício de atividade econômica, não estaria evidenciado, naqueles autos, que tal intervenção do Estado não fora justificável nem razoável (acórdão dos casos CCT 38/96, 39/96 e 40/96, §§ 105 a 108 c/c §§ 1º, 6º, 7º, 97 e 98) [34].

No referido decisum, Chaskalson frisou que o domingo é o dia da semana mais apropriado para se reduzir, por meio de tais limitações legais, o consumo de bebidas alcoólicas, por constituir o dia da semana em que a maioria dos sul-africanos não desempenha múnus laboral,e assim o fazem por razões de conveniência secular (não por dever religioso), seguindo prática já cristalizada no seio da sociedade como de cunho temporal, em face de padrão adotado pelo ordenamento jurídico ao longo dos anos de reservar ao domingo o principal período semanal de descanso dos que atuam no mercado de trabalho, aspecto presente, verbi gratia, em avenças trabalhistas, em contratos de prestação de serviço, na práxis negocial e em dispositivos das legislações provinciais sul-africanas, a transcender motivos de fundo religioso e a abarcar indivíduos de credos não cristãos e ideologias não religiosas, inclusive pessoas naturais que, aos domingos, em vez de se dedicarem à atividade religiosa, voltam-se apenas ao lazer (acórdão dos casos CCT 38/96, 39/96 e 40/96, § 106 c/c §§ 95 a 96) [35].

Chaskalson pontuou que a seção 90 da Lei do Álcool não sujeita (de modo direto ou indireto) pessoas físicas e jurídicas em geral à observância compulsória do Sabbath cristão, e não limita os direitos à escolha do credo religioso e à manifestação pública de crenças religiosas nem bane o funcionamento, aos domingos, de estabelecimentos que comercializam bebidas alcoólicas, já que, nesse caso, a interdição dominical à venda de vinho não impede a comercialização, aos domingos, de outros produtos, pelas lojas sujeitas a tais restrições, e, de outra banda, a proibição parcial à venda dominical de bebidas alcoólicas não atinge todos os estabelecimentos empresariais ? permite-se a venda de vinho, exempli gratia, por hotéis a seus hóspedes, por restaurantes a seus clientes que lá se encontrem em refeição, por adegas a seus frequentadores e por clubes a seus membros e aos convidados destes (arts. 54(1), 57, 61 e 65 da Lei do Álcool), além de outras hipóteses de venda de vinho aos domingos (não elencadas de forma explícita no diploma legislativo em perspectiva) poderem, excepcionalmente (seção 20(b)(viii) c/c seção 22(2)(b) da Lei do Álcool), ser deferidas pelo liquor board, o órgão colegiado administrativo competente, na África do Sul, para adotar tais deliberações (acórdão dos casos CCT 38/96, 39/96 e 40/96, §§ 90, 97, 99 e 105) [36].


3 Caso CCT 4/00 (Christian Education South Africa v Minister of Education)

Em 18 de agosto de 2000, no caso CCT 4/00(Christian Education South Africa v Minister of Education),a Corte Constitucional da África do Sul, com arrimo na manifestação do Justice Albie Sachs (cujo pronunciamento também foi, a exemplo do que ocorreu na circunstância em referência, o voto condutor do caso CCT 40/03, bem assimdos casos CCT 60/04 e CCT 10/05, precedentes da Corte de Johannesburgo igualmente analisados neste trabalho), seguido pelo Chief Justice Arthur Chaskalson e pelo Deputy Chief Justice Pius Langa, bem assim pelos Justices Richard Goldstone, Tholie Madala, Yvonne Mokgoro, Sandile Ngcobo, Kate O'Regan e Zak Yacoob, além do Acting Justice [37] Edwin Cameron, chancelou a proibição legal (estatuída na seção 10 da Lei das Escolas da África do Sul de 1996 ? South African Schools Act (the Schools Act) of 1996) de aplicação de punições corporais por escolas sul-africanas (acórdão do caso CCT 4/00, § 52 c/c §§ 32, 38, 42 a 43 e 50 a 51) [38].

À época congregando 196 (cento e noventa e seis) escolas privadas sul-africanas, com o total de cerca de 14.500 alunos, todas voltadas à educação de tônica evangélica, a associação civil intitulada Christian Education South Africa rutilou que a interdição legal ao castigo físico de âmbito educacional (seja a punição física executada diretamente por agentes da escola, seja a reprimenda corporal de aplicação delegada, pelo educandário, aos pais do aluno ou aluna) seria afrontosa ao direito individual, parental e comunitário à livre prática da religião cristã ? desdobramento da conjugação dos direitos fundamentais capitulados nas seções 14 (direito à vida privada), 15 (liberdade religiosa, de crença e opinião), 29 (autonomia das instituições educacionais privadas), 30 (direito à prática do idioma e da vida cultural da sua escolha) e 31 (direitos ínsitos às comunidades culturais, religiosas e linguísticas) da Constituição sul-africana de 1996 [39] ?, haja vista que a sanção corporal se fundamentaria na Bíblia Sagrada (Provérbios 19:18, 22:6, 22:15 e 23:13-14, assim como Deuteronômio 6:4-7, ambos livros do Antigo Testamento) e, por conseguinte, integraria o éthos do autêntico cristianismo, tal como concebido e cultivado por aqueles estabelecimentos educacionais (acórdão do caso CCT 4/00, §§ 2º, 4º, 5º e 7º) [40].

Diante de tal eixo argumentativo articulado pela parte autora, a Corte de Johannesburgo conferiu primazia à salvaguarda da dignidade e da integridade físico-emocional das crianças, dos adolescentes e dos jovens sul-africanos, de maneira que todos eles (cristãos ou não) recebam igual cuidado e respeito (acórdão do caso CCT 4/00, § 42) [41].

À luz do art. 36(1) da Constituição sul-africana de 1996, o Pretório Excelso da África do Sul vislumbrou como razoáveis e justificáveis em uma sociedade aberta e democrática (norteada pelos princípios da dignidade humana, liberdade e igualdade) tais limitações legislativas impingidas à liberdade religiosa e ao poder punitivo das instituições escolares (acórdão do caso CCT 4/00, § 32) [42].

Salientou que essas restrições estatais à esfera privada — a par de não obstarem, de forma geral, os pais de fé cristã de criarem seus filhos de acordo com as crenças do cristianismo, mas apenas impedirem os genitores de atribuírem aos educandários (in casu, colégios de educação religiosa cristã) a faculdade de sujeitar o alunado a castigos corporais — concorrem para se (a) prevenirem abusos físicos e emocionais no ambiente escolar, (b) reduzir a condescendência estatal com condutas violentas e (c) transformar, de forma significativa, a consciência cívica sul-africana (acórdão do caso CCT 4/00, §§ 38 e 50) [43].

Resplendeu, ainda, quer a dificuldade (de ordem prática) de o Estado monitorar a execução, em ambiências escolares, de sanções corporais cuja dosimetria apresentaria variações no modo como são graduadas pelas diversas instituições e educadores (aumentando-se a probabilidade de que a subjetividade propicie exageros), quer a vulnerabilidade dos educandos (situação de hipossuficiência), que (com seus pais) teriam de enfrentar prováveis animosidades da escola e da comunidade, ao noticiarem excessos na aplicação, por educadores, de punições corporais (acórdão do caso CCT 4/00, § 50) [44].

E ponderou a importância de que as escolas de educação religiosa atuem tendo em mira não apenas a propagação dos valores religiosos e culturais da comunidade em que se encaixilham o educandário e seu corpo discente como também a necessidade de que os educandos sejam preparados para o universo plural da vida em uma sociedade aberta (a qual não se adstringe às cercanias da comunidade em que se inserem tais estudantes), o que implicaria, dentre outros aspectos, as instituições escolares ajustarem seus códigos disciplinares a normas jurídicas de caráter secular, promanadas de diplomas legislativos (como a impugnada Lei das Escolas da África do Sul de 1996), atos estatais, na visão da Corte de Johannesburgo, desprovidos de feitio discriminatório (acórdão do caso CCT 4/00, § 51) [45].

Sobre o autor
Hidemberg Alves da Frota

Especialista em Psicanálise e Análise do Contemporâneo (PUCRS).Especialista em Relações Internacionais: Geopolítica e Defesa (UFRGS). Especialista em Psicologia Clínica Existencialista Sartriana (Instituto NUCAFE/UNIFATECPR). Especialista em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário (PUCRS). Especialista em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia (PUCRS). Especialista em Direitos Humanos (Curso CEI/Faculdade CERS). Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos (PUC Minas). Especialista em Direito Público (Escola Paulista de Direito - EDP). Especialista em Direito Penal e Criminologia (PUCRS). Especialista em Direitos Humanos e Questão Social (PUCPR). Especialista em Psicologia Positiva: Ciência do Bem-Estar e Autorrealização (PUCRS). Especialista em Direito e Processo do Trabalho (PUCRS). Especialista em Direito Tributário (PUC Minas). Agente Técnico-Jurídico (carreira jurídica de nível superior do Ministério Público do Estado do Amazonas - MP/AM). Autor da obra “O Princípio Tridimensional da Proporcionalidade no Direito Administrativo” (Rio de Janeiro: GZ, 2009). Participou das obras colegiadas “Derecho Municipal Comparado” (Caracas: Liber, 2009), “Doutrinas Essenciais: Direito Penal” (São Paulo: RT, 2010), “Direito Administrativo: Transformações e Tendências” (São Paulo: Almedina, 2014) e “Dicionário de Saúde e Segurança do Trabalhador” (Novo Hamburgo: Proteção, 2018).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FROTA, Hidemberg Alves. O diálogo entre a liberdade religiosa e o direito à diversidade na jurisprudência da Corte Constitucional da África do Sul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3056, 13 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20399. Acesso em: 22 dez. 2024.

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