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Terra de homens e índios: um histórico de desigualdades sociais no Brasil

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Agenda 04/01/2012 às 09:08

No romance "Acayaca 1729", os princípios da liberdade e da igualdade estão dispostos em vários momentos, permitindo-nos identificar um movimento político e jurídico de época que se encerra na atual Constituição Brasileira.

RESUMO

Toda boa literatura tem uma história e toda boa história guarda um universo de lendas e verdades jurídicas na trajetória de pessoas em um lugar e um tempo qualquer. Assim é a releitura do romance indígena Acayca – 1729, de Joaquim Felício dos Santos [01], que retrata a saga de índios e homens na Diamantina Mineira dos séculos XVIII e XIX, possibilitando extrair um comovente e atual conflito de relações de direito e de fato que, por serem mal regulamentadas pela constituição brasileira, geram desigualdades sociais e em consequência, perda da plena capacidade de gozo das liberdades individuais.

Palavras-chave: Liberdade. Desigualdade. Índio. Homem. História. Direito.

Sumário: 1 Introdução; 2 Progresso e regresso no Brasil Imperial – Uma herança constitucional elitista; 2.1 Invasores, aventureiros e a decadência dos mais fracos; 2.2 Supremacia estatal: a ganância do poder e o retrato das desigualdades (desiguais); Conclusão.


INTRODUÇÃO

O romance novelesco de Joaquim Felício dos Santos, Acayca – 1729, faz parte de um contexto histórico que se identifica com a ascensão da burguesia portuguesa em território brasileiro, quando se impõe a implantação do capitalismo, do liberalismo econômico, jurídico e filosófico. Nesta época, surge um novo público leitor, onde a arte passa a valer como mercadoria.

A literatura romântica surge em fins do século XVIII com seu apogeu na primeira metade do século XIX, tendo como características relevantes o Individualismo e o subjetivismo na busca do eu interior; o sentimentalismo na comemoração do amor e da paixão, mas também da amargura e angústia do mal do século; o culto ao mundo e aos fenômenos naturais; a idealização; à criação de mundos fantasiosos, suicidas e orgiosos; à liberdade do artista que se põe em desobediência às normas de seu tempo.

Em Acayaca – 1729, os princípios da liberdade e da igualdade estão dispostos em vários momentos e nos permite identificar um movimento político e jurídico de época que se encerra na atual Constituição Brasileira [02], mais especificamente, nos incisos I e III, do art. 3º e caput do art. 5º, encontrando o primeiro intimamente associado ao segundo, desenvolvido a partir do pensamento de Aristóteles, e posteriormente por tantos outros filósofos.

O romance indígena em análise, na verdade, deriva de uma reunião de artigos publicados entre os anos de 1862 e 1863 em matérias do jornal "O Jequitinhonha", tal qual o foram a de outros autores de época como nos revela Macedo (1902, p. VI) em sua obra "Os romances da semana":

Sabe-se que os artigos de Jornaes participão um pouco da condição dos ephemeros: ficão esquecidos, e morrem portanto um dia depois de serem dados á luz. Estes romances forão publicados em artigos do Jornal do Commercio, e por consequencia um dia depois o publico os esqueceu e os deixou morrer da fatal molestia que persegue o Jornalismo.

Felício dos Santos, semelhante a outros autores românticos do século XIX, dentre eles Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811/1882), Joaquim Manuel de Macedo (1820/1882) e José de Alencar (1829/1877), procurou resgatar e sedimentar valores e princípios substanciais à sobrevivência pacífica do ser humano em sociedade, percebendo que sem eles a existência para algumas categorias de pessoas se tornaria insuportável em sua essência, pois se o estado permite condutas capazes de criar diferenciações abusivas, arbitrárias, sem qualquer finalidade lícita, estas acabam por determinar um ambiente social e jurídico desigual, legitimando em consequencia e indevidamente, condutas discriminatórias, preconceituosas e racistas.

A busca por um ambiente jurídico mais justo nos parecer ter sido o centro de atenção desses autores, como nos revela este trecho de Magalhães (2010, p. 08) em seu discurso sobre a história da literatura no Brasil: "Uma só idéia absorve todos os pensamentos, uma idéia até então quase desconhecida; é a idéia da pátria; ela domina tudo, e tudo se faz por ela, ou em seu nome. Independência, liberdade, instituições sociais, reformas políticas, todas as criações necessárias em uma nova Nação (...)".

Nesse sentido, o romance nos revela um projeto nacionalista em um território urbano e regionalista de um passado histórico dimencionado por lendas e misticismo indianista, uma constante reprodução da realidade nacional de valorização da natureza em discurso metafórico e poético. Evidencia o peso da cultura exploratória sobre a vida individual, como revela Alencar (2010, p. 02) em sua obra indianista Ubirajara, "Homens cultos, filhos de uma sociedade velha e curtida por longo trato de séculos, queriam esses forasteiros achar nos indígenas de um mundo novo e segregado da civilização universal uma perfeita conformidade de idéias e costumes".

Diante de todo este contexto, procuramos determinar nosso estudo para uma visão jurídica igualitária, assim, focamos o objeto do trabalho na avaliação da realidade jurídica constitucional vigente no Brasil a partir do período colonial até os dias atuais. Para tanto, elegemos nossos esforços em uma pesquisa análitica histórica na tentativa de explicar o contexto e o fenômeno das conflituosas relações sociais entre índios, homens e poder estatal ao longo da história, responsáveis, ao menos em parte, por tantas desigualdades e limitações das liberdades constitucionais. Destaca Vianna (apud LOPES: 2008, p.11/12) que:

(...) todas as experiências constitucionais deixaram de vingar no Brasil. Não era pelo problema eleitoral, mas antes pela organização da vida civil e da opinião pública, da consciência coletiva. Para avançar, seria preciso levar em conta quem realmente éramos em termos de vida de governo local. E para garantir ao mesmo tempo o governo local e a liberdade do indivíduo frente aos poderosos do local, nada substituiria o Poder Judiciário.

Buscamos amparo em nosso critério de pesquisa com reforço no entendimento de Botero (2008, p 260 e 267) ao destacar em seu artigo intitulado "El Quijote y el Derecho" afirma que "(...) si hay relaciones más allá del mero interés literario en describir situaciones jurídicas o de la mera forma de expresión del derecho, a un punto tal que hay studios jurídicos que versan sobre la literatura, (...)", e após discorrer sobre cada um de "los grupos clasificatorios de las relaciones derecho-literatura" coloca em evidência as vias metodológica y la analítica.

Para compreendermos e nos situarmos no contexto em que se desenvolveu o romance indígena Acayaca – 1729, fomos obrigados a percorrer o caminho histórico da sociedade brasileira, para somente assim entender o contexto jurídico que justifica a situação atual do índio brasileiro.

Ao longo do artigo procuramos evidenciar que decorridos um século e meio após a publicação da obra, a situação jurídica desse índio pouco mudou e toda a importância cultural e jurídica dos legítimos habitantes do Brasil se vê retratada em dois tímidos artigos que encerram o texto constitucional. [03]

Constatamos que os elementos textuais contidos na fábula novelesca escrita no século XIX continuam vivos em nossos dias (SANTOS: 1976, p. 17), muitas vezes disfarçados por normas de valor jurídico duvidoso e por acontecimentos reais que vão sendo reproduzidos e revelados por intermédio dos meios de comunicação. Seja na demarcação de terras indígenas para exploração de novas riquezas minerais, seja na derrubada e incineração de árvores (sagradas) na região amazônica, seja na opressão sem limites em desfavor de pessoas excluídas ou na elaboração de normas que ocultam a ganância de classes políticas e economicamente dominantes (despotismo estatal).

Verificamos que o autor de nosso romance, por sua formação jurídica, defendeu os ideais de liberdade e viveu em um período de transição entre o regime imperial português e a nova ordem republicana brasileira. Naquele momento da nossa história, entre os séculos XVIII e XIX, as normas constitucionais e infraconstitucionais brasileiras davam seus primeiros passos, com a publicação da primeira constituição no ano de 1824, bem como o código penal em 1890 e o código civil em 1916.

O Brasil, descoberto em 1500, se submeteu durante mais de três séculos a uma legislação alienígena oriunda, principalmente, de Portugal, que tinha como base e princípios de seu ordenamento jurídico o direito romano, mas, como esclarece Wolkmer (2003, p. 40), "(...) o principal escopo dessa legislação era beneficiar e favorecer a Metrópole. A experiência político-jurídica colonial reforçou uma realidade que se repetiria constantemente na história do Brasil: a dissociação entre a elite governante e a imensa massa da população".

Finalmente, constatamos que os ideais de liberdade, de igualdade e fraternidade, ainda permanecem vivos no cotidiano dos brasileiros, personagens indígenas e civilizados, submetidos a um poder soberano de exclusão para manutenção de interesses financeiros elitistas. O Estado de Direito alcançado pelo Brasil do século XXI não é muito diferente do regime jurídico autoritário que vigorou no século XIX e que tanto incomodou Felício dos Santos.


1 Progresso e regresso no Brasil imperial – Uma herança constitucional elitista

O ambiente do direito na sociedade brasileira, de 1824 aos dias atuais, revela a evolução de relações jurídicas em nossa sociedade, nem sempre boas e bem intencionadas, como extraímos dos fatos ocorridos no povoado de Diamantina do século XVIII e XIX, restando aos acontecimentos históricos de época um ambiente onde o direito individual e coletivo se sucumbia ao direito estatal e desse passado imortal que atravessou o tempo no texto de Acayaca – 1729, tomamos emprestadas as palavras de Magalhães (2010, p. 01): "Sua voz, como um eco imortal, repercute por toda parte, e diz: em tal época, debaixo de tal constelação e sobre tal ponto do globo existia um povo cuja glória só eu a conservo, cujos heróis só eu conheço".

Conhecer do passado é entender o presente e se preparar para o futuro, e neste caminhar, não há como negar que ao contexto se insere a história do direito constitucional brasileiro, um conjunto de normas elaboradas para o bem da coletividade que na prática, ainda prestigia uma elite economicamente exploratória e subversiva. O conflito de interesses contido na lei do século XVIII demonstra que ela jamais representou a vontade dos homens ou a de Deus, mas sim a vontade do estado e dos interesses privados, um ordenamento jurídico que excluiu os homens desclassificados, lhes privando da vida e das coisas que deveriam a ele servir, e tal qual ficou registrado na obra Acayca – 1729, assim também escreveu Botero Bernal (2008, p. 281):

En la obra del Quijote se presenta de manera similar una presencia de estos tres órdenes que bien podrían ser denominados respectivamente ley eterna o divina, ley de caballería y ley humana. Así, la ley de caballería, que no se enfrenta a las leyes de Dios sino que de ellas es que deriva su fuerza, logra imponerse, según el proprio Quijote, sobre la ley humana para deshacer sus entuertos.

A obra de Felício dos Santos evidencia uma ideologia liberal do autor que se contrapõe ao regime imperial de seu tempo, centralizador e opressivo, firmando um pensamento a produzir uma narrativa genuinamente nacional que buscava valorizar a natureza local em meio a um momento histórico jurídico confuso e indivisível.

Ao misturar em seu romance personagens e acontecimentos reais e fictícios, o autor procurou tecer uma narrativa plausível e funcional, onde os bandeirantes [04], aventureiros e selvagens, em flagrante desrespeito às leis, a direitos e também ao espírito cristão, colonizam a região das minas a ferro e fogo, não hesitando nem mesmo diante do cruel massacre dos povos indígenas que ali viviam.

O índio livre de Felício dos Santos não se submeteu ao domínio português e por isso, massacrado foi, diferente do índio descrito por Magalhães (2010, p. 10) que "(...) precioso monumento para nós não fora desses povos incultos que quase têm desaparecido da superfície da terra, sendo tão amigos da liberdade que, para evitar o cativeiro, caíam, de preferência, debaixo dos arcabuzes dos Portugueses que tentavam submetê-los ao seu jugo tirânico!"

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Nesse cenário, tomam uma posição destacada as ideias de Felício dos Santos diante da opressão portuguesa junto à sociedade diamantinense, salientando que elas foram geradas em um momento histórico caracterizado pela luta em prol da implantação da república e pelo ressurgimento da imprensa liberal, silenciada desde 1832.

O jornal "O Jequitinhonha", lançado por Joaquim Felício, procura então retomar em forma de romance os assuntos liberais contidos nas conversas cotidianas, publicados em folhetins, relembrando a população do seu passado de lutas e rupturas, convocando todos a resgatar um tempo de paz e felicidade.

Neste ponto nos surgem algumas dúvidas e considerações, pois ao percorrermos fatos passados na região das Minas Gerais, na verdade, o que encontramos, são vestígios de uma sociedade pobre, sofrida e despida de seus direitos civis, como extraímos de Mello e Souza (2004, p. 296):

As Minas foram o espaço privilegiado da desclassificação social nos tempos coloniais, e isto se deveu tanto ao rápido afluxo populacional que lá se verificou como ao caráter específico da exploração aurífera. Nas lavras, os homens livres foram mais numerosos que em outros pontos da colônia, e, por mais paradoxal que possa parecer entre eles se dividiu a extrema pobreza da economia mineradora – como se viu no capítulo 1, democrática na miséria que soube distribuir entre um maior número de indivíduos. Triturados por uma exploração econômica predatória e imprevidente, esmagados pelo peso enorme do fiscalismo, perseguidos por uma política normalizadora que os desejava enquadrar a todo custo, os desclassificados proliferaram nas montanhas mineiras como em viveiro; essa pujança extrema foi vista de duas maneiras opostas: como utilidade e como ônus.

Talvez o que o autor sentia no século XIX seja exatamente o mesmo sentimento que vigorou no século XX e que vigora no século XXI, como se no passado as pessoas vivessem em um ambiente de maior tranquilidade, de paz e de liberdade. Um fluxo contínuo de nostalgia que carrega gerações de escritores e que, na verdade, mais é um retrato de gerações e gerações submetidas à pseudonormas, pouco eficientes na garantia dos direitos individuais e coletivos.

Nesse sentido, conforme esclarece Oliveira (2008, p. 37), Felício dos Santos passa a publicar diversas obras literárias sob o pseudônimo de Timandro que:

(...) interpreta a luta pela nacionalidade, segundo a perspectiva do projeto liberal, e culmina com as Páginas da História do Brasil Escritas no ano 2000. Imiscuído entre os editoriais inflamados, em franca oposição ao regime monárquico, o romance Acayaca publicado no Jequitinhonha, equipara-se, segundo Souza (1993) ao Guarani de José de Alencar, por apresentar em seu âmago o mito da fundação da terra. Insatisfeito com o presente, estando ele margeado por instituições opressoras, Santos narra a fundação mítica do Arraial e a luta titânica empreendida pelos índios Puris contra os invasores portugueses e, por extensão, a gênese política e sonora dessa opressão.

Acayaca – 1729 é um acontecimento jurídico relevante na história do Brasil do século XVIII, uma maneira de observar pela literatura romancista fatos que marcaram a vida de pessoas, mas retrata principalmente, os índios brasileiros, que ainda hoje, continuam distantes de poderem exercer em plenitude seus direitos. Como diz Botero (2008, p. 257):

La Literatura y el derecho no son ajenos entre sí. Desde donde si mire, la literatura ha narrado hechos jurídicos y el derecho es, fundamentalmente, un ejercicio literario, aunque no sobra decir que ciertos géneros de la literatura presentan más puntos de conexión con el derecho que otros.

O artifício de Felício dos Santos expõe uma narrativa em um plano de lenda e também um plano de história. Este último expõe uma Diamantina, com seus hábitos e costumes, salientando o sofrimento de seu povo diante da ganância do governo português durante a produção de ouro e pedras preciosas em território brasileiro, em especial, no Estado de Minas Gerais. Apenas para termos uma ideia da importância que teve a extração de diamantes no contexto histórico e jurídico da época, trazemos à baila manuscritos de Alencar (1959, p. 01) que, ao introduzir as primeiras falas em seu romance indígena Iracema destaca: "O Sol a pino dardeja raios de fogo sobre as areias natais; as aves emudecem; as plantas languem. A natureza sofre a influência da poderosa irradiação tropical, que produz o diamante e o gênio, as duas mais sublimes expressões do poder criador."

Do livro Acayca – 1729 extraímos textos importantes que expressam o sentimento do autor em relação ao ambiente jurídico, sejam aqueles relacionados com a exploração do ouro, a descoberta dos diamantes, a luta territorial entre invasores e índios, a perda da liberdade, o confisco de bens, o castigo corporal, o fisco, a corrupção, os interesses políticos, ou seja, uma gama de condutas marginais que ainda hoje continuam desprotegidas em consequência de uma legislação constitucional, eficiente em sua elaboração, mas ineficaz em sua aplicação.

1.1 Invasores, aventureiros e a decadência dos mais fracos

Libertamo-nos de Portugal, proclamamos a República, combatemos a ditadura do Estado Novo e o regime militar, no entanto, o ambiente jurídico do passado ainda se faz presente por intermédio de um estado que insiste em não respeitar e defender os interesses públicos adequadamente, por que as normas constitucionais brasileiras continuam precárias e ineficazes na garantia das liberdades e da igualdade entre os homens, privilegiando silenciosamente o interesse privado e elitista.

No discurso "sobre a origem da desigualdade", Rousseau, que viveu no século XVIII, "evidencia sempre o conflituoso caminho histórico percorrido pelos homens, passando do estado de natureza para o estado civilizado, onde discute as contradições e antagonismos que permearam esse processo e defende a volta ao estado natural, sob novas formas" (GARCIA: 2001, p. 2).

Para todo brasileiro, em particular, para nós mineiros, a palavra liberdade se tornou símbolo de nossa batalha contra a opressão portuguesa, estando reproduzida na bandeira do Estado de Minas Gerais, "Libertas Quae Sera Tamen" [05], bem como nas páginas de Acayaca – 1729, que destaca justamente as desigualdades entre os povos do Tijuco, impostas pela exploração do ouro e de diamantes nesse território do século XVIII e XIX.

Desde a chegada dos portugueses em território brasileiro, nos idos de 1500, bem como nos acontecimentos retratados no romance escrito três séculos após, a vida civil e as relações jurídicas nos arredores de Diamantina encontravam-se sob os togados da Coroa Portuguesa, "composto o núcleo populacional nesse tempo, excluindo-se os povos indígenas, em sua maioria de portugueses" (MIRANDA: 1972, p. 31). O domínio dos povos estrangeiros em solo brasileiro era tanto que escreveu Magalhães (1836, p. 04): "Triste é, sem dúvida, a recordação dessa época, em que o Brasileiro, como lançado em terra estrangeira, duvidoso em seu próprio país, vagava, sem que dizer pudesse: isto é meu, neste lugar nasci!"

Nas primeiras décadas do século XVIII, suspeitou-se que pelos arredores de Diamantina poderia surgir uma grande metrópole em face do volume de riquezas minerais que eram extraídas, entretanto, esse sonho que importou inúmeros aventureiros "desvaneceu-se com a circunstância de se terem empobrecido as minas de ouro e de pedras preciosas que eram o objeto de sua cobiça, "(…) e com isso se empalideceu uma lenda que dorme na história, sobrevindo o consequente estacionamento que há muito acorrenta o Serro" (MIRANDA: 1972, p. 32).

Todo este apogeu e declínio também são muito bem descritos por Matta Machado (2008, p. 169) no ano de 1900 em seu discurso acadêmico intitulado, "Tijuco, Lendas e Tradições" em que destaca:

(…) O certo, porém, é que esse reconhecimento deveria marcar o início do sofrimento de um povo; a Corte Portuguesa, aurisedenta lançaria em breve os olhares ambiciosos e toda uma rede maquiavélica de perseguições envolveu o Tijuco para que aquela abundância fosse ter diretamente aos cofres portugueses.

Quando a mineração decai irreversivelmente, ocorre, por um lado, "a diáspora mineira e, por outro, a ruralização profunda da região e as riquezas minerais marcará a velha capitania e sua identidade colonial" (MELLO E SOUZA: 2004, p. 15). O capítulo I do livro evidencia o estado de liberdade, igualdade e fraternidade que pairava sobre a região de Diamantina, onde índios, antes da chegada dos invasores auríferos viviam em estado de graça e paz (SANTOS: 1894, p. 06): "(...) O Ibytyra, nesse tempo, antes de ter sido conquistado e demarcado com a cruz ou com o pelourinho, era coberto de uma imensa mata virgem, espessa, sombria, só habitada por animaes bravios, ou pelo índio feroz e anthropofhago."

A colonização voltada para a extração do ouro foi permeada de confrontos e lutas entre o povo das cidades e os índios, uma vez que era necessário expandir as áreas de mineração. Na ausência de legislação jurídica específica para as terras brasileiras, imperava a lei portuguesa que, entretanto, possuía fins basicamente financeiros no controle das riquezas que aqui eram exploradas e os conflitos sociais resolvidos em batalhas ferozes e sangrentas (SANTOS: 1894, p. 07).

Eram homens ousados e intrepidos esses aventureiros, de vontade constante, pertinaz, inabalável. Cegos pela ambição do ouro, arrostavam os maiores perigos. Não temiam o tempo, as estações, a chuva, a secca, o frio, o calor, os animaes ferozes, repteis que davam a morte quase instantânea, insetos que mordiam, produzindo a dor da queimadura, e, mais que tudo, o indômito e vingativo índio anthropophago, que lhes disputava o terreno palmo a palmo, em guerra renhida e porfiada, devorando-lhes os prisioneiros.

A partir desse marco, o capítulo II do livro destaca o aparecimento de duas vertentes sociais, a dos povos tidos civilizados, moradores das cidades, vivendo com simplicidade, a nosso ver, em uma duvidosa harmonia e paz, e a população indígena, considerada não civilizada e desprovida de racionalidade e humanidade, praticamente encurralada e descartável (SANTOS: 1894, p. 11).

(...) Foi com bastante trabalho e depois de vencer imensas dificuldades, diz o manuscrito, que o Tejuco conseguiu constituir-se em povoação estável, tendo sustentado, desde seus primeiros estabelecimentos, uma guerra constante, renhida e porfiada com os indígenas, que lhes disputavam a posse do terreno, de que se julgavam senhores, ao menos pelo direito de antigüidade. A vizinhança dos peros, como eles chamavam aos portugueses, não podia deixar de ser-lhes incomoda; tomavam-lhes as terras e campos, em que caçavam, tratavam-nos como si não pertencessem a espécie humana, roubavam suas filhas, escravizavam os prisioneiros, e davam-lhes caça como aos animais ferozes.

Veja que a colonização brasileira deixará para sempre na história de nossa legislação constitucional uma incômoda e injustificável desigualdade entre sociedade civil e indígena. Desigualdade esta formalizada no Título VIII, Capítulo VIII da nossa atual Constituição Federal, nos artigos 231 e 232, surpreendentemente, a parte final da Carta Magna, reproduzindo o que na prática incomodou Joaquim Felício nos meados do século XVIII, qual seja, a exclusão de castas de pessoas que levam, em consequência, à perda da liberdade e aos conflitos sociais pelo injusto tratamento desigual.

Um exemplo a ser destacado é a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas que praticamente transforma áreas reivindicadas por índios em Estados autônomos, sendo parte de um projeto que nos parece criar embasamento legal para impor ao Brasil a internacionalização da Amazônia.

Alguns dos parágrafos contidos nessa declaração evidenciam que "a ONU pretende reconhecer no índio o direito de autodeterminação como se não tivesse a nacionalidade do país no qual vive e cuja terra ocupa, nem estivesse submisso às leis de seu país. Essa figura torna legítima uma reivindicação de independência. Segue a transcrição" (RIZZO, 2008):

ONU/07 – PRE/Par. 9: Enfatizando a necessidade da desmilitarização das terras e territórios dos povos indígenas, o que contribuirá para a paz, a compreensão e as relações amistosas entre os povos do mundo;

ONU/07 – PRE/Par. 11 - Convencidos de que os povos indígenas têm o direito de determinar livremente suas relações com os Estados nos quais vivem, num espírito de coexistência com outros cidadãos;

ONU/07 – PRE/Par. 12 - Ressaltando que os Convênios Internacionais sobre os Direitos Humanos afirmam a fundamental importância do direito à autodeterminação, assim como o direito de todos os seres humanos de procurar seu desenvolvimento material, cultural e espiritual em condições de igualdade e dignidade;

ONU/07 – PRE/Par. 14 - Conclamando os Estados a cumprir e implementar efetivamente todos os instrumentos internacionais aplicáveis aos povos indígenas.

Diriam os mais céticos tratar-se de uma fantasiosa conspiração, mas conspirações não se escrevem, não se revelam, apenas acontecem, e se compararmos o artigo 231 da Constituição Brasileira com a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, concluiremos que possivelmente tenha sido redigido um manuscrito em comum antes de 1988, do qual ambos se originaram.

Como alega Rizzo (2008), "as semelhanças são tantas e tão detalhadas, que não há outra explicação. Note-se que estamos falando de um período de mais de 20 anos."

(…) o artigo 231 é uma aberração completa dentro da própria Constituição Brasileira, pois fere cláusulas pétreas e é conflitante com boa parte da própria Constituição. Acreditar que esse artigo tão lesivo ao Brasil e inconstitucional em seus princípios tenha sido inserido por descuido e ignorância das diversas comissões, do Congresso, (…), vai além da ingenuidade. É debilidade.

(…) Por uma estranha coincidência muitas das reservas indígenas na Amazônia estão localizadas sobre jazidas de minerais raros ou estratégicos.

Aqueles que ingenuamente lutam pela "causa indígena" como foi formulada no Brasil, não têm idéia dos interesses que realmente estão defendendo. Enquanto a Amazônia era apenas a maior selva tropical do mundo, poucos ligavam para a questão indígena. Quando a partir de levantamentos feitos por satélite foram localizadas imensas jazidas de ouro, nióbio e outros minerais estratégicos, teve início a infiltração de missões humanitárias e religiosas, indiretamente financiadas por ONGs como a Survival International e a WWF - World Wide Fund For Nature World Wildlife Fund, que se plantavam nestas áreas e ofereciam comida e miçangas contemporâneas aos índios. Em seguida, no desatento e corrupto Congresso Brasileiro, foi aprovada toda uma legislação que abriu caminho para dar início à corrida demarcatória financiada por ONGs estrangeiras.

Para um leigo, convence fácil o discurso dos legisladores constituintes de que a "Constituição Cidadã Brasileira" foi elaborada para proteger o direito de todos e dos mais fracos, mera hipocrisia jurídica, por enquanto o que vemos na prática é uma reprodução mais moderna e sofisticada de nossa legislação colonial. Se antes éramos submetidos à ganância dos portugueses, hoje estamos submetidos a todos os gananciosos que ocupam nossos pouco ilustres e corrompidos poderes constituídos.

O índio foi e continua a ser tratado de maneira distinta, como se a ele, nós, cidadãos civilizados, fizéssemos um grande favor em deixá-los viver aqui ou ali, quando, pelo contrário, nós, os invasores, devêssemos oferecer todo o respeito e consideração de que são merecedores. Confronta-se aqui o direito formal e o direito costumeiro, este último, muito mais antigo e praticado pelos índios de maneira descomplicada e de geração em geração.

O que acontece aqui nada mais é do que uma sequência de acontecimentos iniciada na Europa e deflagrada por todo o mundo durante a conquista dos territórios além mar, seja por portugueses, espanhóis, ingleses e tantos outros povos desbravadores de riquezas em colônias estrangeiras. Assim se apresenta o sermão escrito pelo Padre Bartolomé conhecido como "Sermón de Montesinos" (RABINOCVICH-BERKMAN: 2007, p. 246-247):

¿Cómo los tenéis tan oprimidos y fatigados, sin darles de comer ni curarlos en sus enfermedades, que de los excesivos trabajos que les dais incurren y se os mueren, y por mejor decir los matáis, por sacar y adquirir oro cada día? (…) ¿Con qué derecho y con qué justicia tenéis en tan cruel y horrible servidumbre a estos indios? ¿Con qué autoridad habéis hecho tan detestables guerras a estas gentes que estaban en sus tierras mansas y pacíficas, donde tan infinitud de ellas, con muerte y estragos nunca oídos, habéis consumido?

Retornando ao romance de Felício dos Santos, a corrida pelo ouro provoca a migração de milhares de pessoas para o território mineiro, oriundas da metrópole instalada na cidade do Rio de Janeiro, como das capitanias vizinhas, e também dos soldados que passaram a deserdar em busca da riqueza onde, em troca de defesa das cidades, recebiam o soldo e uma ração diária de farinha (MELLO E SOUZA: 2004, p. 42).

Essa situação provocou um enorme incômodo na comunidade indígena do Tijuco que passou a tentar resgatar sua liberdade e sua propriedade, por intermédio de inúmeros e repentinos ataques, aterrorizando as pessoas da cidade (SANTOS: 1894, p. 14). Por um lado o número de índios era infinitamente maior, mas por outro, a força de reação dos invasores se fazia eficaz pela presença de armas de fogo.

No capítulo III do romance, o autor evidencia a mística que pairava sobre a tribo dos índios Puris em torno de uma grande e majestosa árvore de nome Acayaca, a qual veneravam como sendo de natureza sagrada e responsável pelo equilíbrio da natureza. Mística esta que caracterizava não só as comunidades indígenas em todo o mundo, mas também inúmeras comunidades civilizadas que tinham em seus objetos de adoração um mito sagrado.

O sagrado que une as pessoas não pode ser profanado, pois é por assim dizer, uma norma de conduta que rege a vida em comunidade, mais forte que a própria norma constitucional e sua ruptura provoca o desequilíbrio social, gerando declínio, guerras, sofrimento e mortes pela "desordem cósmica" (RABINOVICH-BERKMAN: 2007, p. 33).

Mas como toda ordem social parece sempre ameaçada e submetida a mudanças ao longo da história da humanidade e do direito, assim também, a partir no capítulo IV até o capítulo VI do romance de Joaquim Felício, surge a figura de personagens traidores, ora representado pela igreja ora representado pelo estado, movidos igualmente pela cobiça e ambição, pela ganância e pelo poder, e que irão provocar o desequilíbrio e a desigualdade entre índios e homens. Esses mesmos personagens nos são apresentados na obra de Alencar (2010, p. 03) que destaca:

Releva ainda notar que duas classes de homens forneciam informações acerca dos indígenas, dos missionários e a dos aventureiros. Em luta uma com outra, ambas se achavam de acordo nesse ponto, de figurarem os selvagens como feras humanas. Os missionários encareciam assim a importância da sua catequese; os aventureiros buscavam justificar-se da crueldade com que tratavam os índios.

Vindo de São Paulo, o mameluco Thomaz Bueno, por sua origem mista, ganha a confiança de índios e colonos (SANTOS: 1894, p. 19-20), passa a frequentar e ganhar a confiança indistinta dos povos civilizados e selvagens mas, sempre, com propósitos particulares de enriquecimento, indiferente aos acontecimentos jurídicos que irá provocar em ambas as comunidades e que, nos dias atuais, ainda, de uma forma ou de outra, mudam os rumos da história da humanidade e do direito.

O índio diamantino de Felício dos Santos, enquanto preocupado com a justa defesa de seu território, de sua liberdade e de sua sobrevivência, sequer pensara na fragilidade de possuir entre seus parceiros um inimigo tão poderoso que seria capaz de mudar para sempre sua história e exterminar de vez com sua raça de onde a exploração comercial se fazia necessária. A propriedade da terra, em um território sem leis justas, seria mais uma vez transferida de seus verdadeiros donos a pessoas que por ali se alojaram exclusivamente com o intuito de se enriquecerem, onde a sobrevivência era uma consequência, sem qualquer vínculo com o passado local e do que viria a acontecer mais à frente.

Essa sintomática postura do povo colonizador é bem identificada na afirmativa de que "(...) aos homens do século XVIII, a percepção da decadência se apresentava vaga e atemporal – espécie de consciência difusa e carente de contornos (...)" (MELLO E SOUZA: 2004, p. 52).

Neste contexto, assemelha-se o índio diamantinense ao cavaleiro de Cervantes, "(...) porque el Quijote es el prospecto de caballero que asume como propia la lucha por la justicia, por la libertad, por el respeto a las normas de conducta que, en cualquier caso, deben facilitar la armonía social y el compromiso del género humano" (BERNAL: 2008, p. 269). Assemelha-se porque, o índio luta por seus próprios direitos enquanto El Quijote lutou pelo direitos dos mais fracos.

Ciente das fragilidades e da mística do povo indígena, Thomaz Bueno e os colonos se aproveitam de uma das festividades da tribo e destroem a Acayaca, a árvore sagrada da sabedoria e responsável pela harmonia daquele povo. Assim, o que se vê a partir do capítulo VII até o capítulo XII do romance é que se instaura uma desordem ainda maior na capitania. Os conflitos sociais entre índios e colonos se tornam mais fortes, constantes e agressivos. Já não se luta mais por princípios, mas por vingança, apenas por vingança e nessa nova realidade todos perdem.

Para vencer os mais fracos há que se apoderar-se de seus mitos e de suas tradições, de seus costumes, de suas crenças, para que assim o Estado, por seus intrépidos representantes possam fazer valer suas necessidades de cobiça e poder.

Essa é a realidade de vários povos indígenas na atualidade brasileira, é assim que as coisas continuam a acontecer, como o é a luta pela demarcação da amazônia e das terras indígenas Raposa-Serra do Sol, no Estado de Roraima [06],como observa Rizzo (2008):

A ABIN - Agência Brasileira de Inteligência revelou num relatório reservado que índios de Rorâima, apoiados pelo CIR - Conselho Indígena de Roraima, estão se articulando com ONGs e governos estrangeiros e pretendem reivindicar "autonomia política, administrativa e judiciária". Ou seja, pretendem, com base na Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da ONU, criar um Estado independente. O relatório descreve a atual situação de áreas indígenas, mencionando milícias armadas, nomes das ONGs e governos estrangeiros que apóiam os índios, além de um projeto do CIR para criação de uma reserva contínua, ligando 32 áreas. Também há brasileiros envolvidos no projeto.

E o que justifica os povos indígenas brasileiros terem sido e continuarem sendo tão perseguidos e humilhados? Simplesmente porque "(...) sempre receberam uma roupagem teológica, ora classificados de criaturas puras e infantis, ora concebidos como bárbaros, pagãos e adoradores do demônio (ZAFFARONI apud WOLKMER: 2001, p. 280).

Essa posição fica muito nítida no romance quando no diálogo ocorrido no capítulo XXIII, entre Thomaz Bueno e alguns mineiros, ele afirma com extrema frieza e naturalidade (SANTOS: 1894, p. 92):

(...) Quaes creaturas de Deus! Exclamou o mameluco com mau humor. Índio não é gente, é um selvagem, é um animal do mato. Logo que ele não segue a religião cristã, Iogo que ele não se veste como nós, é como se não fosse homem; e não é na realidade. Matar um índio é o mesmo que matar um cão; ou ainda menos, porque o cão não ofende a Deus, e o índio vive em constante pecado de idolatria, canibalismo e outros.

E na desordem não há líderes, não há regras, não há lei, não há limite, tudo é válido e tudo é possível. Quem pensa comandar, de um momento para outro cai, é substituído, e assim ocorreu entre os índios Puris quando diante dos acontecimentos, o líder Curupeba se viu ameaçado pelo grupo o que, resulta na sua morte e, na sequência, de muitos outros índios e colonos. Escreveu Santos (1894, p. 30): "(...) Curupeba, digo-te que nem eu, nem os bravos que me rodeam, deporemos as armas. Vamos marchar contra os Puris, é soada a sua ultima liara. Si queres pôr-te á nossa frente, seguir-te-hemos, como nosso chefe, porque és o mais valente; si recusas, iremos sós, não precisamos de ti."

Após sangrenta batalha restou a força dos colonos sobre a fragilidade e valentia dos índios e uma aparente harmonia volta a reinar nos arredores de Diamantina no capítulo XIII, ainda sem um ordenamento jurídico que correspondesse às necessidades da capitania. A esse momento, chamaremos de ordem na desordem. Interessa destacar neste momento que:

(...) a sobrevivência não só da cultura, mas de muitos povos indígenas ao massacre da conquista, resultou, (…), em uma das maiores façanhas da humanidade (...) e a que denominamos história invisível da conquista da América, pois derrotados militarmente e violentados pela prática dos invasores, os índios simularam obediência, passividade, servilismo para salvar a pele e, especialmente, sua cultura (BRUIT apud WOLKMER, 2001, p. 305).

Chama a atenção que o mesmo colono invasor a quem o autor atribui o massacre indígena em busca das riquezas minerais se reveste ao mesmo tempo, de um profundo sentimento familiar, social e religioso, assim como nós o fazemos nos dias de hoje, separando as condutas e as pessoas boas e ruins por uma perspectiva muito pessoal, simplista e egoísta, como se algumas delas fossem coisas, destaca Santos (1894, p. 57):

O povo era temente a Deus, e observador de seus Santos Mandamentos; confessava-se todos, os anos; nos domingos e dias santos ouvia-se missa com devoção. Não succedia como hoje, que ninguém se confessa, que as igrejas ficam desertas nos dias santificados: tudo isso devido á detestável libertinagem, que tem grassado na Europa, debaixo do nome de philosophismo, e que; infelizmente vai de uma maneira prodigiosa infeccionando a nossa terra. Era belo aquele.tempo: não se perpetrava uma morte; não se cometiam furto: a propriedade era um direito sagrado, inviolável; não havia exemplo de ter-se violado uma donzela; não se perturbava a paz da família, não apareciam rixas, contendas ou desordem, porque todos estavam contentes e amavam-se reciprocamente como irmãos. A hospitalidade, o amor dos paes, a veneração á velhice, constituiam uma religião. (...) Mas também naquele tempo não havia velhos libertinos como ha hoje. Os Paes educavam os filhos iucutindo-lhes- na alma e respeito às leis, ás autoridades constituídas, o amor de Deus, o horror do pecado e do crime: virtudes cívicas e religiosas. Os maridos guardavam a mais restrita fidelidade ás suas mulheres; viviam na melhor harmonia e nunca houve exemplo de divorcio ou separação. E' que se olhava o matrimônio como um Sacramento, e não como especulação ou meio de satisfazer paixões sensuais. As moças trajavam com decência, e por isso eram belas e formosas; não se via esse luxo atentado dos tempos de hoje, que só serve para encobrir os defeitos físicos, e corromper a moral; tanto postiço, tantos enfeites, tantos atavios, tanta mentira...; que decepção por que passa um mancebo, quando, em vez de mulher, se vê casado com uma boneca enfeitada! Não havia mulheres devassas, e nem casas de prostituição, onde se perdem os moços, estragam-se as forças, esquecem-se os deveres da moral e religião, e são causa de grande parte dos males, que flagelam a sociedade. (...)Em uma palavra, e para não mais alongar-nos, viviam na mais completa inocência e felicidade, que faziam recordar os antigos tempos patriarcais. ou a cidade de ouro imaginada pelos poetas. Si no mundo havia um povo verdadeiramente ditoso, era o do Tejuco.

Talvez o autor não tenha notado essa nítida falta de compaixão entre povos invasores e indígenas e tenha pretendido tão somente destacar sua angústia com o desaparecimento da ordem, que leva embora a inocência, o respeito, a educação, a paz e a tranquilidade. O Brasil de Joaquim Felício dos Santos do século XVIII não é muito diferente do Brasil do século XXI.

De volta ao roteiro de Acayaca – 1729, no capítulo XV ao XXVII surgem novos personagens que acentuarão ainda mais o desequilíbrio social e jurídico dos arredores diamantinos, dos quais destacamos o mineiro Bernardo da Fonseca Lobo e o desconhecido Frade da irmandade da Terra Santa.

1.2 Supremacia estatal: a ganância do poder e o retrato das desigualdades (desiguais)

Com o caminho aberto a novos territórios, os colonos avançam por áreas mineradoras desconhecidas até a descoberta dos diamantes que despertará na coroa portuguesa, por intermédio de nossos novos personagens, o mais animalesco dos sentimentos humanos, a ambição por riqueza e poder.

Nesta nova realidade, o fisco não mais se contentará com o pagamento de impostos, mas sim pelo próprio domínio e exploração do território. As leis ressurgem para declarar a propriedade a "El Rey" e o conflito se instalará novamente, desta feita, entre homens e homens, enfatizando Santos (1894, p. 75), "(...) Não importa; a ambição é a condição vital do progresso; sem ella, o mundo estaria em completa imobilidade. Só cumpre refreala para não transpor os limites do justo. Ahi está a dificuldade. A razão quase sempre é impotente para sopear a paixão."

As colônias eram regidas por leis e ordens régias, que se tornariam ainda mais severas, com o fim de normalizar a população inquieta das Minas e enquadrá-la dentro das normas administrativas da Metrópole (MELLO E SOUZA: 2004, p. 144) em face da riqueza trazida pela descoberta dos diamantes. Para tanto, se fez uso rotineiro de indivíduos turbulentos e facínoras diretamente ligados ao Estado que exerciam a função de se cumprir fielmente as normas estabelecidas por "El Rey".

O misterioso Frade, representando a divindade da igreja desvenda o mistério dos diamantes e o mineiro Bernardo da Fonseca leva o fato ao conhecimento da coroa portuguesa. Igreja e Estado, distintas concorrentes se mostram ferozes e gananciosos em toda a história da colonização brasileira e o capítulo XXVIII do romance alcança o ápice da degradação jurídica do século XVIII impondo uma realidade ainda desconhecida pelos homens diamantinenses e que já havia sido experimentada pelo povo indígena.

Aliás, em todo o período colonial das Minas, os cléricos foram vistos com desconfiança pela Coroa e como verdadeiros elementos perturbadores e corrosivos, pois isentos da jurisdição civil, com frequência metiam-se em negócios ilícitos de contrabando e extravio de minerais preciosos (MELLO E SOUZA: 2004, p. 245-248).

A realidade diamantinense se expressa agora por uma norma ainda mais rígida de proibição, de coação, pois o ouro desequilibrou a relação entre homens e índios, e agora o diamante, desequilibrava a relação entre homens e homens e entre estes e a coroa portuguesa.

Uma riqueza dessa magnitude necessitava de um padrão diferente de comportamento entre o Estado e os súditos. Era o fim da harmonia ou como se diz, "(...) o fim da existência do indivíduo não pode ser alcançado na terra sem a coação. Nela se acha a própria raiz do direito, a força justa" (IHERING apud NASCIMENTO: 1984, p. 16-17).

A mão estatal, por intermédio de "El Rey" baixa uma portaria e "(...) alerta que debaixo das sobreditas penas de degredo por 10 anos para a África e de confisco de todos os bens e de 500 açoites, na fôrma acima dita, fica inteiramente proibida a mineração nos referidos terrenos" (SANTOS: 1894, p. 111).

Observa-se que as leis de agora e de outrora guardam muitas semelhanças, pois são elaboradas não em respeito à população mas visando, antes de mais nada, a preservação do patrimônio estatal e privado que a presença permanente do cidadão comum ameaça. "Para enquadrá-la e mantê-la nos trilhos da ordem, os vigilantes aparelhos repressivos nunca deixaram de ser acionados (…) e (…) se havia ameaça interna, a Coroa dar-se-ia por satisfeita se o seu controle fosse eficaz" (MELLO E SOUZA: 2004, p. 42).

Como um círculo que se fecha, a profecia de Acayaca se cumpre nos capítulos XXX e XXXI do romance, alijando homens e índios de suas terras e do pleno exercício de seus direitos, das quais, na verdade, somente os índios verdadeiramente foram proprietários, porque aqui tiveram a oportunidade de viver antes da chegada das leis dos homens (SANTOS: 1894, p. 121):

E' assim que vemos realisada a prophecia de pagé, quando, do alto do Ibytyra, estendendo o braço sobre o Tejuco, proferira essas palavras de maldição: Das cinzas da Acayaca, nascerá a perdição dos peros. E realisar-se-hão as esperanças que temos de um melhor futuro? Não desanimemos. Ha presentemente no horizonte do mundo social uma nuvem negra, tempestuosa. Que venha a tempestade - é Deus quem a manda!... As tempestades estragam, mas purificam e dão novo vigor a natureza. Que venha, ella é do futuro! ... Tejuco, 28 de dezembro de 1790. FIM.

O homem diamantinense, ao contrário do índio, creio, jamais conheceu o verdadeiro significado da palavra liberdade e igualdade. Talvez ai resida o grande mistério por trás de Acayaca – 1729, uma metáfora da condição do povo e do índio brasileiro ao longo de toda a sua história. Mesmo que toda a trama do romance se manifeste nas terras mineiras de Diamantina e adjacências, bem retrata o passado e o presente de grande parte da sociedade brasileira, distante de entender a noção de liberdade e igualdade em um ambiente político permeado por leis formais em contraposição às leis da natureza e ao próprio instinto natural dos homens.

Felício dos Santos viveu boa parte de seu tempo sob o domínio de leis civis alienígenas, tanto que participou ativamente da tentativa de escrever o Código Civil Brasileiro que somente veio a ser concluído depois de sua morte, sendo seu projeto totalmente abandonado. A angústia vivida pelos colonos no século XVIII e pelos diamantinenses do século XIX é transferida para as últimas páginas de seu livro onde mostra uma sociedade amargurada e reprimida pelos interesses de um governo sem limites e sem escrúpulos.

Um povo abandonado e miserável, que se vê num dilema diante das leis impostas pela coroa portuguesa e que não respeitava classes sociais, homens, mulheres e crianças. Tamanha a rudicidade e ganância da norma que obrigou as pessoas a adotarem comportamentos sociais nada convencionais e impiedosamente desmoralizantes como a prostituição, o vício e os crimes patrimoniais.

Sobre o autor
Paulo Roberto de Medeiros

Oficial da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais Professor de Direito Penal e Processo Administrativo da Academia de Polícia Militar de Minas Gerais na Escola de Formação de Oficiais Bel em Direito e aluno do Curso de Doutorado em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires, Argentina Especialista em Segurança Pública pela Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte/MG Especialista em Educação Física pela Pontifícia Universidade Católica do PR Aluno do Curso de Gestão Estratégica da Academia de Polícia Militar.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Paulo Roberto. Terra de homens e índios: um histórico de desigualdades sociais no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3108, 4 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20781. Acesso em: 5 nov. 2024.

Mais informações

Artigo elaborado como conteúdo obrigatório para avaliação da disciplina Historia del Derecho do Curso de Doutorado em Direito Penal na Universidade de Buenos Aires, professor Dr. Andrés Botero Bernal (Colômbia).

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