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Uma visão kelseniana sobre os julgamentos do caso Battisti

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Como um órgão jurídico pode julgar uma questão essencialmente política? Foi essa a questão que gerou tanta controvérsia durante a Extradição 1.085, e que deve incitar dúvidas também nos outros casos extradicionais.

Resumo: o presente artigo versará sobre o caso de extradição do ex-militante de esquerda Cesare Battisti, tendo como foco primordial as ações do Supremo Tribunal Federal, no tocante à aplicação da Constituição brasileira, da Lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro) e do Tratado de Extradição firmado entre Brasil e Itália em 1989. Para que tal análise seja feita com sucesso, será invocado o positivismo jurídico de Hans Kelsen, abordado aqui de forma justa, evitando a excessiva dogmatização das idéias desse autor. Ao final, será vista qual a principal dificuldade, na opinião dos autores do artigo, que enfrenta o STF quando do julgamento de casos jurídico-políticos, como é a situação em tela.

Palavras-chave: Extradição, Battisti, STF, Kelsen, Constitucionalidade.


1.Introdução

Extradição significa entregar um criminoso a um governo que o reclama. É um instrumento eficaz para punir aqueles que cometeram delitos em um país e evadiram-se para outros territórios na tentativa de escapar de sua pena. Esse aparato encontra fundamento nas Constituições de muitos países e é reforçado por tratados firmados entre os Estados.

A Constituição brasileira discorre acerca desse assunto em seu art. 5º, LI e LII, que segue:

Art. 5º. (...)

LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;

LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião

De forma mais específica, regula o Estatuto do Estrangeiro sobre as condições formais e motivacionais em que se dará a extradição, bem como aquelas em que tal feito não ocorrerá.

Recentemente, foi tema de discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) o pedido de extradição do italiano Cesare Battisti, condenado em seu país natal à prisão perpétua por quatro assassinatos cometidos no final da década de 1970. A Corte Suprema, de forma acirrada, decidiu, em 2009, pela extradição; decisão esta não compartilhada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2010, que optou por permitir a permanência de Battisti no Brasil. Inconformado com a situação, o governo da Itália recorreu da decisão presidencial, fato que originou um novo julgamento em 2011. Nesse segundo momento, o STF entendeu que o governo italiano não tinha legitimidade para agir dessa forma, visto que a decisão do Presidente nada mais era do que uma questão política, um ato de soberania, não cabendo judicialização. Na mesma oportunidade, também foi acolhido o pedido de soltura do italiano apresentado pela defesa deste. Hoje, Battisti está livre e, num processo que não durou mais do que treze dias, foi-lhe concedida autorização para viver e trabalhar no Brasil pelo tempo que quiser – para os estrangeiros em geral, esse processo dura, em média, 45 dias.

O presente artigo se propõe a fazer um estudo do caso Battisti, tentando esmiuçar as decisões tomadas durante todo o processo, adotando como pano de fundo, principalmente, a ótica do positivismo de Hans Kelsen; fazendo referência, também, ao pensamento de Ronald Dworkin. Não cabe, aqui, declarar a inocência ou culpa do italiano, mas sim analisar as decisões do Supremo Tribunal Federal e do Presidente da República acerca do caso.

Este trabalho será divido em três partes principais: na primeira, discorreremos acerca do instrumento da extradição no Brasil, explicitando suas particularidades; posteriormente, será feita uma narrativa cronológica dos eventos da vida de Battisti que o trouxeram ao Brasil, culminando na ocorrência do caso em tela; por fim, serão discutidos os julgamentos do processo de Extradição 1.085 (número do processo de extradição aqui trabalhado), oportunidade na qual será feita a análise embasada nos pensadores anteriormente citados, com especial destaque a Kelsen.


2.Extradição no ordenamento brasileiro

A extradição consiste em um instrumento de cooperação internacional, visando ao combate ao crime, diminuindo as possibilidades de que alguém que responde a processo criminal refugie-se em outro país. Além disso, consideramos que ela seja uma forma de respeito à soberania dos Estados, visto que é um instituto que regulariza a entrega de um criminoso a outro país, possibilitando que este puna aqueles que cometeram delitos em seu território.

O ex-ministro do STF, Francisco Rezek, ensina que:

[a extradição consiste na] entrega, por um Estado a outro, e a pedido deste, de pessoa que em seu território deva responder a processo penal ou cumprir pena. Cuida-se de uma relação executiva, com envolvimento judiciário de ambos os lados: o governo requerente da extradição só toma essa iniciativa em razão da existência do processo penal – findo ou em curso – ante sua Justiça; e o governo do Estado requerido (...) não goza, em geral, de uma prerrogativa de decidir sobre o atendimento do pedido senão depois de um pronunciamento da Justiça local. (REZEK, 2005, pg. 197)

Vê-se, portanto, que se trata de um instituto essencialmente político, mas que carece de tratamento judicial, porquanto requer a existência de um processo penal na Justiça do país requerente, bem como que haja uma deliberação no Judiciário do país requerido antes da participação do Executivo. Vale ressaltar que, para Rezek, o processo penal não precisa estar findo, ou seja, não é necessária a existência de sentença punitiva para que o extraditando seja enviado ao país requerente.

A legislação brasileira, entretanto, impõe algumas condições necessárias para que a extradição seja autorizada. É o que dispõe o art. 77 da Lei 6.815/80, também chamada Estatuto do Estrangeiro.

Art. 77. São condições para concessão da extradição:

I - ter sido o crime cometido no território do Estado requerente ou serem aplicáveis ao extraditando as leis penais desse Estado; e

II - existir sentença final de privação de liberdade, ou estar a prisão do extraditando autorizada por juiz, tribunal ou autoridade competente do Estado requerente (...).

Ao contrário do que lecionou Rezek, a legislação brasileira afirma a necessidade de existência de sentença final ou estar a prisão decretada por autoridade competente a fim de que a extradição seja autorizada. A mesma lei também normatiza, em seu art. 75, os fundamentos do pedido de extradição, o qual só será deferido "quando o governo requerente se fundamentar em convenção, tratado ou quando prometer ao Brasil a reciprocidade".

Nesse mesmo sentido, Rezek (2007) doutrina que seria o tratado o fundamento jurídico de um pedido de extradição e que, na falta deste, a promessa de reciprocidade é válida, desde que o país requerido assim entenda.

Uma vez entendido do que se trata a extradição, passemos a analisar como esta se dá. O processo extradicional no Brasil é longo e, por conta de sua complexidade, divide-se em três fases: a primeira e terceira fases ocorrem no âmbito do Executivo, portando são fases administrativas; a segunda fase procede no STF, órgão do Judiciário competente para a análise de ações de extradição.

No primeiro momento, é feito o pedido de extradição pelo país requerente, que deve ser direcionado ao Ministério das Relações Exteriores para então ser remetido ao Ministro da Justiça. Este pedido deve estar fundamentado, como já foi visto, em um tratado previamente assinado entre ambos os países ou em uma promessa de reciprocidade. Sendo tal pedido acolhido pelo Ministro, o processo é encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, que avaliará as questões legais de que dispõem Constituição, tratados ou promessas de reciprocidade.

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Na terceira fase, em que entra em cena o Presidente, Rezek (2007) leciona que cabe ao Executivo concretizar a decisão tomada pelo Pretório Excelso, ou seja, uma vez deferida a extradição, deve o chefe do Executivo efetivá-la. Em caso de indeferimento, o Presidente deverá apenas comunicar tal decisão ao país requerente.

Concedida a extradição, o governo requerente deve obedecer a algumas exigências do governo brasileiro para que o processo seja efetivado. Tais requisições, que encontram lugar no art. 90 da Lei 8.615/80, são: a impossibilidade de ser o extraditando preso ou processado por fatos anteriores ao pedido; de computar o tempo de prisão preventiva imposta no Brasil, por ocasião do processo de extradição (art. 80 da referida lei); de comutar a pena privativa de liberdade com pena corporal ou de morte; de não ser o extraditando entregue a um terceiro Estado sem o consentimento prévio do Brasil; e, por último, de não considerar qualquer motivo de natureza política para agravar a pena.

Todavia, não foi este o entendimento que teve o STF, uma vez que delegou ao Presidente Lula a palavra final, podendo este fazer uso de seu poder discricionário, desde que observadas as disposições do Tratado de Extradição assinado entre Brasil e Itália em 1989. Esse tratado discorre sobre as condições em que se dará a extradição – e também quando esta será recusada –, seus limites, os documentos que fundamentam seu pedido, sobre quem vai arcar com as despesas do processo entre outros itens.


3.Entendendo o caso Cesare Battisti

Cesare Battisti cresceu em meio a uma efervescência anti-governista durante os chamados "anos de chumbo italianos". Participou do Partido Comunista Italiano e uniu-se aos contestatários – grupo de jovens não-armados. Posteriormente, têm origem os squats, um grupo melhor organizado que se reunia em casas utilizadas como quartéis e que, para se manter, promovia pequenos roubos e furtos. Por conta destes, Battisti fora preso duas vezes e, na última delas, conheceu Arrigo Cavallina, o idealizador dos Proletários Armados pelo Comunismo (PAC); organização na qual ingressa em 1977, logo após sair da prisão.

Entre os meses de junho de 1978 e abril de 1979, o grupo foi responsável por quatro assassinatos [01], cometidos por motivo torpe e por vingança. No mesmo ano de 1979, Battisti foi condenado a 12 anos de prisão; os motivos: participação em grupo armado, roubo e receptação de armas. Dois anos mais tarde, ele fugiu do presídio e refugiou-se em Paris, onde morou por um ano, tendo fugido para o México logo após.

Em 1982, é preso Pietro Mutti, um ex-integrante do PAC, que acusa Battisti de ser o comandante das operações que culminaram nos assassinatos entre 1978 e 1979. À revelia, este é condenado à prisão perpétua pela Justiça italiana em 1988.

Em 1985, o então Presidente da França, François Mitterrand, instaura a "doutrina Mitterrand", que oferecia asilo político a todos os envolvidos em atividades terroristas na Itália até 1981 e que haviam deixado a luta armada. Acreditando na proteção dessa doutrina, Battisti retorna à França em 1990 e, um ano mais tarde, a Itália requer a extradição do mesmo, sendo esta não aceita em virtude da "doutrina Mitterrand".

Quase dez anos após o trânsito em julgado, é reaberto na Itália o processo contra Battisti, tendo como principal elemento o depoimento de seu ex-companheiro Pietro Mutti, o qual trocava informações por negociação na sua pena. Nessa ocasião, já em 2004, a França decide reconsiderar sua decisão e autoriza a extradição de Battisti. Na iminência de ser extraditado, Battisti foge novamente, dessa vez para o Brasil.

Aqui, Battisti viveu clandestinamente no Rio de Janeiro, onde foi preso em 2007 em uma operação conjunta da Interpol e das polícias brasileira, italiana e francesa. Ficou preso até 2009, quando o então Ministro da Justiça brasileiro, Tarso Genro, concedeu-lhe o status de refugiado político: tal feito se deu por vislumbrar o Ministro um cunho político nas ações atribuídas a Battisti. A mesma interpretação teve o Presidente brasileiro da época, Luiz Inácio Lula da Silva, que fundamentou sua opinião no art. 4º, X, da Constituição brasileira, que dispõe sobre a concessão de refúgio político, e por enxergar essa questão como um assunto de soberania nacional.


4.Os julgamentos da Extradição 1.085

4.1. O primeiro julgamento do STF

Tudo exposto até esse ponto serve para permitir um maior entendimento do verdadeiro mister deste artigo. Julgamos necessário discorrer sobre o instituto da extradição e fazer uma breve análise dos acontecimentos que trouxeram Cesare Battisti ao Brasil para que possamos compreendê-los, formando um juízo adequado sobre o caso analisado.

Em 2007, teve início o processo de extradição nº. 1.085, a tratar do pedido de extradição do italiano Cesare Battisti. O governo italiano fundamentou seu pedido, o qual teve aceitação na primeira fase administrativa, no Tratado de Extradição firmado entre Brasil e Itália em 1989, o qual assim regula em seu art. 1º:

Art. 1º. Cada uma das partes obriga-se a entregar à outra, mediante solicitação, segundo as normas e condições estabelecidas no presente tratado, as pessoas que se encontrem em seu território e que sejam procuradas pelas autoridades judiciais da parte requerente, para serem submetidas a processo penal ou para a execução de uma pena restritiva de liberdade pessoal. (grifamos).

O problema que complexifica o caso é o fato de que os crimes pelos quais responde Battisti foram cometidos quando de sua participação no grupo de extrema esquerda PAC, que lutava contra o governo vigente na Itália durante a década de 1970 – fato que poderia configurar tais crimes como de natureza política. Nesse ponto, firmaram Brasil e Itália no art. 3º do Tratado que a extradição será recusada "se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela parte requerida, crime político". Além disso, o mesmo artigo explica que "se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de (...) opinião política", o pedido também será respondido com uma negativa.

Cumpre salientar a exceção da prerrogativa dos artigos acima referidos disposta no art. 76 da Lei 8.615/80:

Art. 76. Não se concederá a extradição quando:

VII - o fato constituir crime político

§ 1º A exceção do item VII não impedirá a extradição quando o fato constituir, principalmente, infração da lei penal comum, ou quando o crime comum, conexo ao delito político, constituir o fato principal. (grifamos).

Kelsen (2009) doutrina que, por terem fulcro numa norma fundamental (a Constituição), todas as normas possuem validade e vigência; em suas palavras,

uma pluralidade de normas forma uma unidade, um sistema, um ordenamento, quando sua validade pode ser atribuída a uma única norma, como fundamento último dessa validade (...). E que uma norma pertença a determinado ordenamento só acontece porque sua validade – que constitui esse ordenamento – pode ser referida à norma fundamental". (KELSEN, 2009, pg. 121 e 122).

Portanto, é conveniente, seguindo a linha kelseniana, considerarmos o art. 76 transcrito acima para interpretar o pedido de extradição de Battisti como merecedor de deferimento – como de fato o foi no primeiro julgamento realizado pelo STF. Os fatos principais julgados não são senão quatro assassinatos cometidos no fim da década de 1970, ou seja, infrações da lei penal comum. Mesmo que estivessem conectados a atos de subversão às estruturas políticas italianas, o art. 76, §1º é taxativo ao ajuizar que uma situação dessa natureza extrapola o crime político.

Pensamos que, por seguir esse raciocínio, tenha o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) negado provimento ao pedido de refúgio formulado por Cesare Battisti após sua prisão no Rio de Janeiro em 2007. Entretanto, numa manobra um tanto quanto arbitrária, o Ministro da Justiça Tarso Genro revogou a decisão do CONARE e concedeu a condição de refugiado político a Battisti em 2009. Coube, então, ao STF determinar a não legitimidade da ação do Ministro Tarso Genro, uma vez que esse procedimento não era da competência deste. Assim foi o entendimento da Ministra Ellen Gracie, que votou com fulcro no art. 76, § 2º, o qual normatiza que cabe, exclusivamente, ao Supremo Tribunal a apreciação do caráter da infração em processos extradicionais.

No caso em tela, vemos o Ministro Tarso Genro como um seguidor dos princípios e de uma moralidade histórica, por tentar ser coerente com a história de muitos brasileiros de perseguições políticas dos tempos de ditadura: seria, assim, o autor de mais um capítulo de um romance que vem sendo escrito desde o golpe de 64. Esqueceu-se, contudo, de agir como o Juiz Hércules de Dworkin (1986). Deveria ele, caso objetivasse agir de modo conveniente, fazer um estudo preciso do caso Battisti, analisando todas as possibilidades de resolução, ou seja, o Ministro tinha que ter se trajado de Hércules. Não conseguimos identificar nas ações do Ministro em questão, a apreciação devida que deve ter o juiz hercúleo sobre todo o histórico de casos precedentes – sem se esquecer, todavia, dos efeitos futuros de sua decisão. Estar de acordo com o passado não é suficiente para um romance em cadeia bem escrito: cada capítulo deve dar a melhor narrativa para o nascimento de futuras laudas.

Por outro lado, seria o Supremo um defensor da lei, que tenta não se influenciar pelo passado revolucionário de muitos governantes do Brasil. Acreditamos que agiu a Suprema Corte, quando do primeiro julgamento, de modo semelhante ao pensamento kelseniano. Pode-se fazer um paralelo entre a ação do STF e o "caráter antiideológico da Teoria Pura do Direito", uma vez que a ideologia impede que a ciência descubra, de modo verdadeiro, seu objeto, qual seja o Direito. (KELSEN, 2009, pg. 82).

Depois de resolvido esse primeiro impasse, os ministros do Supremo voltaram-se para a decisão do mérito em si. Eles deliberaram acerca da natureza dos crimes pelos quais Battisti estava sendo julgado, tendo por objetivo classificá-los como políticos ou comuns. Essa classificação seria decisiva para determinar o futuro do italiano, visto que, sendo seus crimes tidos como de natureza comum, sua extradição seria iminente.

O Pretório Excelso foi categórico ao considerar os quatro assassinatos cometidos pelo PAC em operações cujo comando foi atribuído a Battisti como crimes comuns. Ora, em concordância com a legislação brasileira, não poderiam ser considerados tais crimes como, exclusivamente, de cunho político. Nesse sentido votou o Ministro Ricardo Lewandowsky, afirmando que no caso em pauta, mais que crimes comuns, são estes hediondos, tendo em vista o modo como foram realizados, ou seja, mediante premeditação e por vingança. Sendo assim, conclui o Min. Lewandowsky, não poderiam esses homicídios ser enquadrados como políticos, ainda que se pudesse imaginá-los como meios de subversão às instituições italianas.

Chamou-nos atenção, também, o voto do Ministro Ayres Britto, que destacou o nome do grupo no qual Battisti militava, em seu deferimento da Extradição 1.085. Assim afirmou o Ministro:

Parece-me que, no PAC – Proletários Armados para o Comunismo -, o adjetivo "armados" já desnatura o objetivo ideológico, o objetivo político da instituição, porque uma organização que se auto-intitula de armada já se predispõe ao cometimento de crimes comuns, de crimes de sangue com resultado morte. E, no limite, até mesmo ao terrorismo. Esse terrorismo que a nossa Constituição rechaça, repudia às expressas e cuja prática é inconciliável, seja com a concessão de asilo político, seja com a concessão de refúgio. (STEIN, Leandro Konzen. Caso Battisti: afinal, o que decidiu o STF?. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2779, 9 fev. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/18455>. Acesso em: 4 jul. 2011.)

Pelo exposto, vê-se que o STF entendeu que a extradição de Cesare Battisti seria devida, por esta estar de acordo com os preceitos constitucionais e com o Tratado de Extradição de 1989 entre Brasil e Itália. Decidiu-se, na forma da lei, pelo deferimento do pedido extradicional.

4.2. A decisão do Presidente Lula

Finda a votação sobre a natureza dos crimes imputados a Battisti, uma polêmica ainda maior nascia: estaria o Presidente da República vinculado à decisão do Pretório Excelso ou poderia ele fazer uso de sua discricionariedade? Por julgar que a questão carecia de tratamento político, o STF decidiu que caberia ao Presidente analisar o caso, com a ressalva de que este observasse o Tratado de Extradição firmado entre Brasil e Itália. A resolução do Supremo buscou amparo no art. 84, VII, da Constituição Federal, cuja redação diz assim:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

VII - manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos

O Ministro Lewandowsky e a Ministra Carmen Lúcia entenderam que a decisão de extraditar alguém, por se tratar de relação entre dois Estados, tem que ser tomada pela figura do Presidente, por ser deste a competência constitucional para tal feito. A interpretação dada pelos Ministros é completamente legítima, vez que teve origem dentro dos limites do artigo supracitado. Nesse ponto, Kelsen (2009) doutrina que

"a norma a ser executada (...) forma apenas uma moldura dentro da qual são apresentadas várias possibilidades de execução, de modo que todo ato é conforme a norma, desde que esteja dentro dessa moldura, preenchendo-a de algum sentido possível". (KELSEN, 2009, pg. 150).

O autor nos mostra que, através de uma mesma norma, várias são as possibilidades de entendimento. Todas as interpretações são válidas, porquanto contidas na fronteira da moldura hermenêutica. É a partir desse conceito que conseguimos compreender a legalidade do ato do Presidente Lula de não permitir a extradição de Battisti, posto que a determinação do STF, ao delegar a palavra final ao chefe do Executivo, era de que este observasse as disposições do Tratado de Extradição quando fosse tomar sua decisão.

Lula apresenta, como justificativa de sua determinação, o art. 3º, § 1º, alínea f, que segue:

Artigo 3º. Casos de Recusa da Extradição

1.A Extradição não será concedida:

f) se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados.

O fato é que o Presidente nada mais fez do que conferir seu melhor entendimento ao artigo acima destacado. O problema é que, muitas vezes, as interpretações são recheadas de vontade subjetiva. Kelsen (2009) assim versa:

A teoria da interpretação comum fará crer que a lei, aplicada ao caso concreto, só pode fornecer uma decisão correta e que a "correção" juspositivista dessa decisão acha-se baseada na própria lei. Apresenta, assim, o processo dessa interpretação de maneira tal que parece tratar-se de um ato intelectual que a esclarece e compreende, como se o intérprete só pusesse em ação sua compreensão e não sua vontade (...). (KELSEN, 2009, pg. 151)

Fundamentando a validade dos tratados homologados entre países, usamos o tratamento que dá Kelsen (2009) ao direito internacional. Este autor afirma que cada Estado, através do tratado, na fórmula pacta sunt servanda, "autoriza a comunidade jurídica internacional a regulamentar (...) a conduta de seus órgãos e súditos" (KELSEN, 2009, pg. 182). O mesmo autor assevera que, da mesma forma do direito de um Estado singular, o direito internacional também constitui um ordenamento coercitivo; sendo suas conseqüências a represália e a guerra (KELSEN, 2009, pg. 183).

4.2. O segundo julgamento do STF e soltura de Battisti

Inconformado com o resultado final do processo, o governo italiano interpôs recurso, a fim de reformar a decisão do Presidente da República. Nesse novo julgamento, ocorrido em junho de 2011, o entendimento da Suprema Corte brasileira é de que o ato do presidente não é senão um ato de soberania, não tendo o Estado italiano competência legal para questionar uma decisão do chefe do Executivo brasileiro.

Nesse caso, a decisão do STF vai de encontro ao pensamento kelseniano, quando este relaciona Estado e direito internacional. Para Kelsen (2009), seria o Estado um membro de uma comunidade jurídica internacional, um ordenamento jurídico parcial, relativamente centralizado, cuja validade tem limites territoriais e temporais (KELSEN, 2009, pg. 201).

O Estado como órgão do direito internacional é apenas uma expressão figurada para o ordenamento jurídico estatal singular que, juntamente com o ordenamento jurídico de direito internacional e, por meio deste, encontra-se com todos os demais ordenamentos jurídicos estatais singulares (...). (KELSEN, 2009, pg. 203 e 204).

O autor é taxativo ao afirmar que um dos efeitos mais marcantes de sua Teoria Pura do Direito é a "dissolução do dogma da soberania", sendo esta um instrumento essencial da ideologia imperialista. Tal conceito é assim definido por acreditar este jurista que a soberania seria um obstáculo ao perfeito estabelecimento do direito internacional.

No mesmo julgamento, também deferiu o Pretório Excelso a soltura imediata do ex-ativista; pois, uma vez findo o processo de extradição, não havia que se manter o italiano preso, posto que seu encarceramento se dava na forma dos artigos 80 e 83 da Lei 6.815/80. Estes versam sobre o instituto da prisão preventiva do extraditando, que deve perdurar durante todo o processo extradicional, se extinguindo com o final dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal.

Sobre os autores
Sávio Modesto Ribeiro

Estudante de Direito pela Universidade Federal do Piauí.

Luan de Araújo Brito

Estudante de Direito pela Universidade Federal do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Sávio Modesto; BRITO, Luan Araújo. Uma visão kelseniana sobre os julgamentos do caso Battisti. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3112, 8 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20795. Acesso em: 22 dez. 2024.

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