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Responsabilidade por danos à soberania causado por empresas multinacionais através da internet

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Agenda 26/01/2012 às 14:01

CAPÍTULO III – RESPONSABILIDADE POR DANOS À SOBERANIA ESTATAL ATRAVÉS DA INTERNET CAUSADO POR EMPRESAS MULTINACIONAIS

Definido o bem jurídico internacional estudado, bem como as formas como aquele pode ser lesionado, encerra-se o presente trabalho com a verificação das hipóteses em face dos dados levantados. O presente capítulo definirá o conceito e a abrangência da responsabilidade internacional, introduzirá a noção de empresa multinacional e a relação desta com o direito internacional, bem como verificará se as hipóteses levantadas condizem com a atual realidade jurídica internacional. Verificar-se-á também se no caso concreto que ensejou o presente trabalho, o caso China e Google Inc., pode-se aplicar as alguma das hipóteses desenvolvida.

3.1.Responsabilidade Internacional

A noção de responsabilidade está muito ligada à noção de dever. Kelsen, na sua Teoria Geral do Direito e do Estado, afirma que "uma pessoa é juridicamente responsável por certa conduta ou que ela arca com a responsabilidade jurídica por essa conduta significa que ela está sujeita a sanção em caso de conduta contrária". [104]

A natureza da sanção varia de acordo com a natureza da norma desrespeitada. Conforme exemplifica Chamone, enquanto da infração da norma penal nasce uma sanção predominantemente punitiva, da infração civil nasce uma sanção restauradora. [105]

Sendo a soberania um direito decorrente de normas internacional, não se pode falar em outro tipo de responsabilidade que não a responsabilidade internacional.

Responsabilidade internacional é, segundo Mazzuoli,

O instituto jurídico que visa responsabilizar determinado Estado pela prática de um ato atentatório (ilícito) ao Direito Internacional perpetrado contra os direitos ou a dignidade de outro Estado, prevendo certa reparação a este último pelos prejuízos e gravames que injustamente sofreu. [106]

A responsabilidade internacional é "ainda um instituto consuetudinário e tem aspecto político na tentativa de limitar o uso da força" [107] devido, principalmente à dificuldade de obtenção do consenso entre os Estados para que haja a codificação da matéria. [108]

Segundo vários internacionalistas [109], a responsabilidade internacional é constituída por três elementos essenciais: a) ato ilícito; b) imputabilidade e c) prejuízo ou dano.

Ato ilícito é aquele conforme delimitado pelo direito internacional. Segundo Accioly, é o ato que viola os deveres internacionais resultantes de tratados, costumes e princípios gerais do direito. [110]

Imputabilidade, segundo Mello, corresponde ao "nexo que liga o ilícito a quem é responsável por ele". [111] Isto significa que nem sempre o autor do ilícito é diretamente responsável por ele. Conforme explica Mazzuoli, a imputabilidade é a possibilidade de o ato antijurídico ser atribuído a um sujeito de direito internacional. [112] São imputáveis, de acordo com Rezek, a não só os Estados, mas também as organizações internacionais. [113]

A existência do dano é necessária para se constituir a responsabilidade internacional. E ainda, conforme explica Mazzuoli, este dano deve sempre decorrer de uma conduta ilícita. [114]

Estando os elementos essenciais da responsabilidade internacional delineados, é possível afirmar que uma empresa multinacional é responsável por seus atos internacionais ilícitos? Primeiramente, deve-se precisar a abrangência da definição de empresa multinacional antes de tentar responder a esta pergunta.

3.2.EMPRESAS MULTINACIONAIS

3.2.1.Acepção do termo e conceito jurídico

A legislação internacional é pouco precisa em conceituar a empresa multinacional. Uma das poucas convenções internacionais sobre o assunto, as Diretrizes para Multinacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, dá a seguinte definição:

[O termo "Empresas multinacionais"] Designam habitualmente firmas ou outras entidades estabelecidas em mais de um país e ligadas de tal modo que possam coordenar suas atividades de várias maneiras. Embora uma ou mais destas entidades possa exercer influência significativa nas atividades das outras entidades, seu grau de autonomia dentro da empresa pode variar consideravelmente de uma empresa multinacional para outra. Podem ser de domínio privado, público ou misto. As Diretrizes são dirigidas a todas as entidades que compõem uma empresa multinacional (controladoras e/ou unidades locais). [115]

Uma empresa multinacional é, segundo Touscoz, "constituída por empresas repartidas por territórios de diferentes Estados ligadas juridicamente entre si de tal modo que obedecem a uma estratégia comum". [116]

Já August classifica as empresas multinacionais em relação a uma empresa mãe, responsável por toda atividade empresarial. As multinacionais podem ser, segundo o autor, nacionais e internacionais. As primeiras compreendem àquelas que possuem uma empresa mãe em um só país, e que desenvolvem suas atividades através de empresas filiais e subsidiárias em outros países. Já a segunda, de modo semelhante à primeira, também desenvolve suas atividades empresariais através de filiais e subsidiárias, mas possuem mais de uma empresa mãe localizadas em diferentes países. Neste tipo de organização, as empresas mãe possuem gerenciamento unificado e a propriedade solidária sobre as empresas subsidiárias. [117]

Dos conceitos apresentados tanto pela doutrina, quanto pela legislação, pode-se inferir que a característica que diferencia a empresa multinacional das outras empresas com atuação internacional é a coordenação da atividade de empresas localizadas em mais de um país, liderada por uma empresa mãe. As empresas multinacionais são compostas, deste modo, por um conjunto de pelo menos duas pessoas jurídicas, constituídas em dois Estados diferentes, sendo que uma pessoa jurídica, justamente a empresa mãe, coordena a atividade empresarial das demais, as empresas filhas ou secundárias, ficando estas últimas responsáveis por diferentes funções dentro da atividade empresarial do conjunto.

Não há, no entanto, unidade na personalidade jurídica da empresa multinacional, mas sim uma unidade de fato. Cada uma das pessoas jurídicas que compõe a empresa multinacional é distinta uma da outra, são constituídas e exercem sua atividade empresarial de acordo com o Estado sob cuja jurisdição se encontra, adequando-se ao sistema jurídico do deste. [118]

Consideradas enquanto elementos da empresa multinacional, as empresas que a compõem podem ser classificadas de acordo com sua posição hierárquica no conglomerado empresarial. Segundo August, além da empresa mãe, que está no topo da hierarquia, tem-se outras três entidades principais: a filial (branch), a subsidiária (subsidiary) e a sociedade gestora de participações sociais (holding company).

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Para o autor, a filial é uma parte do estabelecimento comercial da empresa mãe, sob seu domínio direto, não possuindo personalidade jurídica distinta desta. Subsidiárias são sociedades empresariais sob o controle da empresa mãe ou de uma sociedade gestora de participações sociais desta última. Diferente das filiais, são pessoas jurídicas distintas da empresa mãe. [119]

Por fim, as sociedades gestoras de participações sociais são uma empresa controlada pela empresa mãe que por sua vez controla as empresas subsidiárias desta. Segundo Fábio Nusdeo, tal sociedade empresarial é uma sociedade "cuja a totalidade ou parte de seu capital é aplicada em ações de outra sociedade gerando controle sobre a administração das mesmas. Por essa forma assegura-se uma concentração do poder decisório nas mãos da empresa mãe". [120]

Esboçado um conceito de empresa multinacional, parte-se para sua inclusão entre os atores da sociedade internacional e a consequente submissão à ordem internacional.

3.2.2.Empresas multinacionais e o direito internacional

São poucas as normas de direito internacional direcionadas especificamente à regular a conduta das empresas multinacionais. Pode-se citar, por exemplo, a Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo, de 1969 [121], e a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. [122] Outras convenções como certas diretrizes criadas por diversas organizações internacionais, como as da Organização Internacional de Trabalho e as da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, também são direcionadas às empresas multinacionais, mas estas regras são apenas sugestões de comportamento, sem força vinculativa. [123] A regulação das multinacionais, conforme explica August, continua sendo matéria de jurisdição local, tendo os Estados de origem e o Estado acolhedor disciplinado, respectivamente, as empresas mãe e as empresas controladas existentes em seu território. [124]

Porém, cada vez mais, torna-se evidente o poder das empresas multinacionais no cenário internacional. Conforme afirma Mazzuoli, "(...) não se pode negar que tais empresas exercem influência direta sobre os Estados (principalmente os menos favorecidos economicamente) e, portanto, sobre o próprio direito internacional em alguns campos". [125]

Segundo Luciana Fernandes, as empresas multinacionais possuem duas peculiaridades capazes de inverter esta lógica de submissão plena à jurisdição do Estado. Elas detêm o controle sobre a tecnologia, criando, localmente, dependência tecnológica, e, ainda, possuem flexibilidade no deslocamento internacional de seus fatores de produção, que lhes proporcionam significativa força de barganha e pressão. [126]

Se não se pode negar o poder das empresas multinacionais de influenciar os assuntos internos dos Estados, de igual maneira, não se nega que tais condutas devem estar submetidas à ordem internacional.

Não obstante a existência, no direito internacional, de poucas regras específicas e efetivas que restrinjam a atuação de empresas multinacionais frente à soberania estatal, uma visão sistêmica do direito internacional leva à compreensão da real abrangência das normas internacionais vigentes.

O direito internacional, considerado como "conjunto de regras e instituições jurídicas que regem a sociedade internacional" [127], possui tantos regras direcionadas isoladamente aos atores da sociedade internacional quanto normas mais gerais, que têm sua incidência direcionada a todos os atores que integram a sociedade internacional, o que inclui as empresas multinacionais. [128]

A própria CIJ, em parecer consultivo no caso Reparação por Prejuízos sofridos a serviço das Nações Unidas, admitiu que a existência de novas personalidades jurídicas no campo do direito internacional é possível, mesmo que elas sejam consideravelmente diferentes em direitos e capacidade de atuação das pessoas jurídicas existentes. Segundo a Corte,

"Os sujeitos de direito, em qualquer sistema legal, não são necessariamente idênticos em sua natureza ou na extensão de seus direitos e sua natureza depende da necessidade da comunidade. Através de sua história, o desenvolvimento do direito internacional foi influenciado por requerimentos da vida internacional, e o crescimento progressivo das atividades Estatais coletivas já deu origem a instâncias de ação no plano internacional de certas entidades que não são Estados.". [129]

No caso Disputa entre Texaco Overseas Petroleum Company e California Asiatic Oil Company contra o governo da República Árabe da Líbia levantou a questão da capacidade jurídica de direito internacional de outros entes que não Estados ou organizações internacionais. No caso, a corte de arbitragem entendeu ser possível pessoas jurídicas de direito interno possuírem capacidade jurídica de direito internacional, afirmando que:

…Capacidade legal internacional não é somente atribuível a um Estado e o direito internacional acolhe sujeitos de naturezas diversificadas. Se Estados, sujeitos originais da ordem legal internacional gozam de uma capacidade plena concedida por esta ordem, outros sujeitos gozam de uma capacidade limitada, designada a propósitos específicos... [130]

Isto posto, e considerando que a empresa multinacional efetivamente é um destinatário de normas internacionais, pode-se discorrer sobre a responsabilidade das empresas multinacionais por atos internacionalmente considerados ilícitos.

3.3.Responsabilidade internacional das Empresas Multinacionais

Não há dúvida que empresas multinacionais são capazes de influenciar e até mesmo intervir nos assuntos internos do Estado. Tal atividade não representa, no entanto, grandes problemas se a empresa multinacional se encontrar dentro do território do Estado. Sob a jurisdição de um Estado, este incontestavelmente irá exercer sua soberania e tratará de aplicar as sanções cabíveis à empresa multinacional de acordo com seu próprio ordenamento jurídico. Como visto anteriormente, a soberania, em sua manifestação interna, significa "o poder supremo do Estado de impor dentro de seu território suas decisões". [131]

A situação muda completamente se a empresa multinacional estiver localizada fora do território do Estado afetado pela ação interventiva daquela. Isto porque fora de seu território, a soberania estatal é confrontada com outras soberanias e, em decorrência do direito à liberdade que os Estados possuem, o Estado diretamente afetado pelo ato ilícito de uma empresa multinacional fica impossibilitado de aplicar sanções no território do Estado sob cuja jurisdição se encontra a empresa mencionada. Segundo Mazzuoli, "nenhum Estado pode imiscuir-se na esfera de competência de outro". [132]

Esta situação é ainda mais complexa considerando-se uma evidente lacuna do direito internacional: a ausência de mecanismos de sanção direcionado às empresas multinacionais no âmbito do direito internacional.

O Centro internacional para solução de litígios relativos a investimentos (conhecido por sua sigla inglesa, ICSID), um organismo arbitral, representa uma das poucas instituições voltadas à solução de conflitos entre Estados e investidores individuais. Segundo Rezek, o ICSID, instituído em 1965 por meio de iniciativa do Banco Mundial, surge como alternativa às disputas internacionais causadas por litígios relativos a investimentos internacionais, oferecendo aos Estados membros do organismo uma série de serviços com o objetivo de facilitar a solução pacífica das controvérsias. [133]

Porém, de acordo com as próprias decisões dos árbitros do ICSID, a matéria de competência do organismo advém de questões originadas de um investimento, ou seja, "direitos e obrigações que são aplicáveis a um investidor como consequência de um contrato de investimento celebrado com o Estado de acolhimento". [134] Isto exclui da competência da organização qualquer direito ou obrigação advinda de outra fonte que não de acordos de investimento. Como, no caso do presente estudo, o dever de não intervenção decorre de normas internacionais, não compete ao ICSDI intervir no litígio originado a partir de uma violação da soberania.

Além deste mecanismo arbitral, não existe nenhum outro mecanismo sancionador quando se trata de ilícito internacional de empresas multinacionais. Apesar de o dever da não intervenção incidir também sobre a conduta das multinacionais, a aplicação de uma sanção internacional encontra um obstáculo na soberania do Estado sob cuja jurisdição se encontra a empresa multinacional, pois será necessário, ao final, o consenso deste último para que uma sanção internacional seja aplicada em seu território.

Além disto, o ato da empresa multinacional que atenta contra a soberania estatal descumprindo norma internacional não constitui suporte fático para a incidência da responsabilidade internacional direcionada a empresa internacional. A responsabilidade internacional é um instituto de direito internacional direcionado apenas aos sujeitos de direito internacionais formais. [135]

Não sendo possível a responsabilização das empresas multinacionais por suas ações ilícitas, caberia responsabilizar o Estado sob cuja jurisdição ela se encontra?

3.4.Responsabilidade ESTATAL PELOS atos das Empresas Multinacionais

Mesmo que o ato da empresa multinacional que atenta contra a soberania estatal não constitua suporte fático para a incidência da responsabilidade internacional direcionada a este tipo de empresa justamente por faltar-lhe personalidade jurídica de direito internacional, não significa, porém, que o ato ilícito danoso passará impune.

Normalmente, responsável é aquele que, tendo incorrido em conduta contrária à que deveria seguir, está sujeito a uma sanção jurídica. Existem casos, no entanto, em que a sanção é dirigida a uma figura diversa da do infrator do dever jurídico. Nesse sentido Kelsen conclui que "a responsabilidade de alguém pode incluir a conduta de outros". [136]

A doutrina internacional fala em responsabilidade internacional originada por atos ilícitos de particulares. Nestes casos, de acordo com Accioly, "a responsabilidade do estado não resulta diretamente dos atos dos indivíduos (...). Esta decorre da atitude do estado, ou seja, da inexecução, por este, de obrigações que o direito internacional lhe impõe, relativamente a pessoas ou coisas em seu território". [137]

O Estado somente é responsabilizado quando há inobservância das normas de direito internacional, e, dada sua omissão, ocorre um ato ilícito causado por particulares, sejam eles estrangeiros ou nacionais, indivíduos ou pessoas jurídicas.

Uma hipótese que busca responsabilizar um Estado por ato de particular, que, na presente análise, trata-se de uma empresa multinacional, deve-se verificar a presença dos elementos necessários para a incidência da responsabilidade internacional. Deve-se verificar, se houve dano a um direito do Estado, se o ato do particular constitui ilícito internacional e se este ato é imputável ao Estado em face do descumprimento de uma conduta internacional deste esperada.

Como já se abordou, na seção sobre soberania, a questão da intervenção como ilícito internacional, passa-se à verificação da existência do dano e da imputabilidade do Estado.

3.4.1.A existência do prejuízo ou dano

Invariavelmente, falar em dano a soberania é falar em intervenção. Sendo a soberania a expressão jurídica da independência de um Estado, haverá dano a ela quando a independência não for respeitada pelos atores do direito internacional.

A doutrina consolidou, e este entendimento ainda se mantém, a ideia de que intervenções só são praticadas por Estados, grupos de Estados e, ainda, organizações internacionais. [138]

Porém, não se pode deixar de notar a crescente influência das multinacionais nas competências internas do Estado. Com a globalização da economia, novos fatores externos põem em xeque a capacidade de controle político, econômico e social do Estado frente aos efeitos internos de decisões de agentes externos, conforme afirma Baptista. [139]

Como apontado anteriormente, quando se discutiu a relação entre as empresas multinacionais e o direito internacional, é plausível considerar que as empresas multinacionais são destinatárias finais de certas normas internacionais, entre elas, o dever de não intervenção. Logo, considerando que da soberania, princípio fundamental do direito internacional, emanam deveres aplicáveis a todos os atores da sociedade internacional, torna-se possível conceber que a violação da soberania, um ilícito internacional danoso, possa ser praticada por empresas multinacionais.

3.4.2.A Imputabilidade do dano ao Estado em face do descumprimento de um dever internacional

O cerne do princípio da não intervenção se traduz na ideia de que um Estado, ou grupo de Estados, não deve intervir direta ou indiretamente, nos assuntos internos de outro Estado. Inicialmente, portanto, somente a abstenção da prática da intervenção é requerida de um Estado. Nada se fala do dever de um Estado em prevenir a realização de atos de particulares que atentem contra a soberania de outros Estados. [140]

Porém, no Caso Atividades Militares e Paramilitares na Nicarágua e contra ela julgada em 1986, a CIJ entendeu que certas Resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas, cujos textos visam ampliar o núcleo do princípio da não intervenção, agregando-lhe novos deveres correspondentes, tornam possível reconhecer estes últimos como normas costumeiras aplicáveis aos Estados que direta ou indiretamente as aceitem. [141]

A resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas 36/103 de 1981 aprova a Declaração de inadmissibilidade de intervenção e interferência nos assuntos internos dos Estados, adicionando novos deveres e direitos ao princípio da não ingerência.

2. O princípio da não intervenção e não interferência nos assuntos internos e externos dos Estados compreende os seguintes direitos e deveres: (...)

(b) O dever do Estado de assegurar que seu território não é usado de nenhuma maneira que viole a soberania, independência política, integridade territorial e unidade nacional ou perturbe a estabilidade política, econômica e social de outro Estado; [142](grifo adicionado)

Trata-se de uma obrigação internacional do Estado para que este assegure que seu território não seja usado de nenhuma maneira para a prática de violência à soberania de outro Estado. Esta é uma obrigação do Estado enquanto, nas palavras de Mello, "responsável pela ordem pública". [143] O dever acima apresentado é deflagrador de uma hipótese em que seria possível imputar ao Estado a responsabilidade pelos atos ilícitos cometidos em seu território cujos efeitos repercutam no território de outro Estado.

Vale lembra que, este dever se traduz na ideia de repressão e punição do ilícito. Como afirma Mello, "o Estado só é responsável se deixar de cumprir dois deveres: o de prevenir o ilícito e o de reprimi-lo". [144]

Logo, considerando que o ato da empresa multinacional violando a soberania de um Estado constitui um ato ilícito, que este ato ilícito causa um dano e que ao Estado o qual não tomou as medidas preventivas e punitivas determinadas pelo direito internacional é imputada a responsabilidade por este ato ilícito, pode-se deduzir que há incidência da responsabilidade internacional do Estado sob cuja jurisdição se encontra a empresa multinacional que, através da Internet, cometeu uma violação à soberania de outro Estado.

3.5.O CASO CHINA E GOOGLE INC.

O conflito entre a empresa multinacional Google Inc. e a República Popular da China foi a razão inicial da problemática introduzida no presente trabalho. Espera-se poder encerrá-lo com a análise deste caso sob a luz das respostas encontradas.

Google Inc. é uma empresa norte-americana fundada em 1998 por Larry Page e Sergey Brin. [145] De acordo com Costa, o diferencial do Google Inc. é que através de seu principal produto livre, isto é, sua mundialmente conhecida ferramenta de busca de sites e conteúdos, a empresa fatura bilhões de dólares comercializando propagandas. Sua principal fonte de renda é, portanto, uma eficiente ferramenta de publicidade altamente personalizada. [146]

De acordo com Martin, Google Inc. entrou no mercado chinês em meados de 2000 ao lançar uma versão chinesa de sua ferramenta de busca – google.com – hospedada em servidores americanos. Com a modificação do sistema chinês de informação, em 2002, a ferramenta bloqueada e em seguida restabelecida, mas com uma série de restrições que tornaram a ferramenta de busca lenta e não confiável. [147]

Conforme Leonardi aclara, a República Popular da China se destaca quanto ao controle de acesso à Internet. Segundo o autor, apesar de não possuir legislação específica sobre a Internet, um grande número de normas é aplicado ao controle de informações na rede nacional de computadores: lei da imprensa, lei de proteção de segredos estatais, lei que regula a atividade de provedores de serviço e cybercafés, entre outras. O sistema de controle chinês, conclui o autor, é um dos mais sofisticados e dinâmicos do mundo, impedindo o acesso de cidadãos comuns a uma grande lista de assuntos considerados sensíveis pelo governo. [148]

Segundo Wilson, em 2006, Google Inc. retorna ao mercado chinês, através de uma empresa subsidiária, Google China, com uma nova versão de sua ferramenta de busca – google.cn – hospedada agora em território chinês, sob o compromisso de censurar os resultados da ferramenta de busca de acordo com a regulação das leis chinesas. [149]

Em março de 2010, após vários atritos entre o governo chinês e a empresa Google Inc. e sua subsidiária, Google China, a ferramenta de busca google.cn foi realocada para um servidor localizado em Hong Kong, [150] permitindo que os resultados das pesquisas em todo território chinês não mais estivessem censurados pelo sistema de informação chinês, uma vez que este é mais maleável na região de Hong Kong. A empresa local, Google China, responsável pela manutenção da referida ferramenta de busca, agiu, portanto, contra seu compromisso de censurar certos temas considerados proibidos pelo governo chinês.

Porém, sob a luz dos resultados encontrados no presente trabalho, tal atividade ilícita da empresa chinesa Google China não representa, no entanto, um ilícito internacional. A empresa foi constituída em território chinês, estando sob a jurisdição deste Estado. Nem se pode falar em responsabilidade da empresa norte-americana Google Inc., pois esta possui personalidade jurídica distinta da empresa Google China, respondendo, esta última, por seus próprios atos em território chinês.

Como visto anteriormente, a soberania, em sua manifestação interna, significa "o poder supremo do Estado de impor dentro de seu território suas decisões". [151] A República Popular da China incontestavelmente pode exercer sua soberania e tratar de aplicar as sanções cabíveis à empresa de acordo com seu próprio ordenamento jurídico.

Sobre o autor
João Felipe Brandão Jatobá

Advogado em Maceió (AL). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JATOBÁ, João Felipe Brandão. Responsabilidade por danos à soberania causado por empresas multinacionais através da internet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3130, 26 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20935. Acesso em: 23 dez. 2024.

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