O advento da Lei nº 8072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) trouxe várias discussões ao mundo jurídico.
Dentre outros assuntos, discutiu-se a revogação tácita, ou não, do parágrafo único do artigo 213 do Código Penal (acrescentado pela Lei 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente), superada pela revogação explícita do parágrafo pela Lei 9281/96. Este, porém, não é o objetivo deste trabalho.
Buscaremos ao longo deste discutir o inciso V da Lei 8072/90, donde surge a indagação que dá título a este trabalho: Qual estupro é hediondo?
O ESTUPRO COMO CRIME HEDIONDO
A locução “crime hediondo” é empregada, pela primeira vez, na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XLIII)[1], não correspondendo a nenhuma expressão consagrada pela usual terminologia penal. O texto constitucional adotou-a para significar uma restrição, por sinal, extremamente, rigorosa, de direitos e garantias enunciados no artigo 5º da Carta Magna. O eixo fundamental dessa restrição centra-se na referência a uma nova classe tipológica de delitos na qual se exclui a garantia processual da fiança e se proibiu o reconhecimento de determinadas causas extintivas de punibilidade (anistia e graça).[2]
O texto do artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal deu origem à Lei 8072/90. O legislador infraconstitucional não se preocupou, contudo, em conceituar o crime hediondo. Em vez de fornecer uma noção clara, explícita, concreta do que entendia ser essa modalidade de atuação criminosa, preferiu adotar um sistema bem mais simples, ou seja, o de rotular, com a expressão “hediondo”, alguns tipos descritos no Código Penal, ou em lei especial. Desta forma, não é “hediondo” o delito que se mostre “repugnante, asqueroso, sórdido, depravado, abjeto, horroroso, horrível, por sua gravidade objetiva, ou por seu modo ou meio de execução, ou pela finalidade que presidiu e iluminou a ação criminosa, ou pela adoção de qualquer critério válido, mas sim aquele crime que, por um verdadeiro processo de colagem, foi etiquetado como tal pelo legislador”. A insuficiência do critério é manifesta e dá azo a distorções sumamente injustas, a partir da seleção, feita pelo legislador, das figuras criminosas ou da forma, extremamente abrangente, de sua aplicação pelo juiz.[3]
O legislador infraconstitucional, ao formular a Lei 8072/90, levou em consideração, para efeito de aplicar a etiqueta de hediondo, alguns tipos mencionados no Código Penal e alguns referidos em lei penal especial (Lei 2889/56). O que, em verdade, lhe serviu de base para optar por essa rotulação jurídica? Com primazia, a tutela patrimonial; depois, a liberdade sexual; por fim, algumas situações fáticas de perigo comum. Na oportunidade, o texto legislativo foi, sob dois enfoques, alvo de áspera crítica. Analisando um dos enfoques; recebeu as críticas porque antes de tudo considerava que a vida, em si, desligada do bem jurídico “patrimônio” era um valor menor. O homicídio, simples ou qualificado, não estava incluído entre os crimes hediondos.
A Lei 8930/94 reformulou o artigo 1º da Lei 8072/90, mas, nem por isso atendeu, por inteiro, às observações críticas que lhe eram endereçadas. O novo diploma legal não se preocupou em dar uma definição de crime hediondo, preferindo manter o mesmo processo de etiquetagem anteriormente adotado. Apenas, efetuou a inclusão de um tipo e a exclusão de outro, já referidos no Código Penal. No mais, manteve as mesmas figuras delituosas às quais imprimiu o caráter de “hediondas”. O tipo acrescido foi o de homicídio e o eliminado foi o de envenenamento de água potável, ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificada pela morte.
Ao nos debruçarmos sobre o delito de estupro nos deparamos com duas correntes. De um lado, os defensores de que mesmo o estupro “simples” deve ser considerado hediondo. De outro lado, há quem diga que a redação da lei somente classifica como hediondos os estupros qualificados, ou seja, combinados com o artigo 223.
Cumprindo o objetivo deste trabalho, qual seja o de posicionarmos frente ao tema, fincamos bandeira junto aos defensores da primeira corrente. Parece-nos claro que inciso V visa contemplar todas as formas de estupro. Vejamos a redação do artigo:
Art. 1º: “São considerados hediondos os seguintes crimes...:
(...)
V- estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único)”;
A conjunção e utilizada pelo legislador na redação do dispositivo representaria a idéia de adição. Assim, teria sido a intenção do legislador alcançar as formas simples e qualificada. Outro indicativo da intenção legislativa, encontra-se no art. 6º, da Lei 8072/90, que majorou as penas do estupro e atentado violento ao pudor nas suas formas simples e qualificadas, separadamente.
O estupro é crime invariavelmente considerado por todas as legislações dos povos civilizados. Em quase todas as leis os elementos dos delitos são os mesmos: as relações carnais e a violência física ou moral. Assim, nos Códigos da Suíça (art. 187), da Itália (art. 519, caput), Polônia (art. 204), Uruguai (art. 272), Argentina (art. 119), Peru (art. 196), Espanha (art. 431), Portugal (art. 393), Alemanha (§ 177), China (art. 221), Rússia (art. 153) e outros.
Vejamos como se comportaram nossas leis. Começando pelas Ordenações Filipinas, no Livro V, vemos que grande era a severidade para com o estupro, como, aliás, para com quase todos os “delicta carnis”. No Título XVIII, sob a rubrica “Do que dorme per força com qualquer mulher, ou trava dela, ou a leva per sua vontade”, prescrevia: “Todo homem de qualquer estado e condição que seja, que forçosamente dormir com qualquer mulher, posto que ganhe dinheiro per seu corpo, ou seja escrava, morra por ello”. A pena era a morte natural, mantida mesmo no caso em que se seguisse o matrimônio com aprazimento de ambas as partes, como se verifica no mesmo título: “É posto que o forçador, depois do malefício feito se case com a mulher forçada e ainda que o casamento seja feito por vontade dela, não será relevado da dita pena, mas morrerá, assi como se com ella não houvesse casado”. Verdade é que, como observa Mendes de Almeida, esse rigor já cessara antes do Código Criminal do Império, como se depreende da Lei de 19 de junho de 1775.
Bem mais elevada era a punição no Código de 1830, em relação ao de 1890 e ao atual. No art. 22 dispunha: “Ter cópula carnal por meio de violência ou ameaça com qualquer honesta. Pena de prisão por três a doze anos, e de dotar a ofendida”.[4]
Mas o que é o Estupro?
Em breves palavras podemos conceituá-lo como a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça.
A “Declaração Universal dos Direitos Humanos desde uma Perspectiva de Gênero”, no tópico referente aos Direitos Sexuais e Reprodutivos, estabelece no tema XV: “Todos os seres humanos têm direito à autodeterminação no exercício da sexualidade, incluindo o direito ao prazer físico, sexual e emocional, o direito à informação sobre sexualidade e o direito à educação sexual”.[5]
Será que alguma mulher, ao ser estuprada, pode ter prazer? É lógico, ao menos a nós, que isso é impossível. Não se pode ter prazer ao fazer uma coisa por imposição, mediante uma violência ou uma grave ameaça.
O crime de estupro simples,[6] bem como suas formas qualificadas pelo resultado lesão grave ou morte, são considerados hediondos.[7] O dispositivo abrange o estupro cometido com violência (real ou presumida) ou grave ameaça. Há, entretanto, alguns julgados do STJ rejeitado o caráter hediondo ao estupro com violência presumida, sob o fundamento de que o dispositivo não faz menção ao artigo 224 do Código Penal – que faz menção à violência presumida. Não se pode aceitar tal entendimento porque o estupro é sempre definido no artigo 213 do CP, e o artigo 224 apenas cita as situações onde a violência é presumida e não, portanto, precisa ser provada.
SALLES JÚNIOR, comungando da posição de GONÇALVES afirma que serão hediondos o estupro em sua forma básica e o estupro com lesão grave e morte da vítima.[8] Também PRADO defende caracterização do estupro simples como crime hediondo.[9] E ainda acrescenta que, com o advento da Lei 8072/90, houve a derrogação do artigo 213 do Código Penal, no que tange a pena, alterando-a de três a oito anos para o patamar atual – de 6 a 10 anos.
Passando a análise da jurisprudência temos decisão histórica proferida aos 17 de dezembro de 2001, na qual o STF, revertendo orientação anterior, decidiu majoritariamente que o estupro, mesmo quando não houver morte ou lesão corporal grave à vítima será sempre crime hediondo.
Em seu voto magistral, a Ministra Ellen Gracie Northfleet enfatizou que o estupro, por suas características de aberração e desrespeito à dignidade humana, causa tão grande repulsa, que as próprias vítimas, via de regra, preferem ocultá-lo.
Para posicionar-se quanto à “hediondez” do estupro simples evoca os ensinamentos de Nélson Hungria, a respeito das lesões corporais graves, que preleciona:
“... não se trata, como o “nomem juris” poderá sugerir, prima facie, apenas do mal infligido à inteireza anatômica da pessoa. Lesão corporal compreende toda e qualquer ofensa ocasionada à normalidade funcional do corpo ou organismo humano, seja do ponto de vista fisiológico ou psíquico. Mesmo a desintegração da saúde mental é lesão corporal, pois a inteligência, a vontade ou a memória dizem com a atividade funcional do cérebro, que é um dos mais importantes órgãos do corpo. Não se concebe uma perturbação mental sem um dano à saúde, sem um mal corpóreo ou uma alteração do corpo. Quer como alteração da integridade física, quer como perturbação do equilíbrio funcional do organismo (saúde), a lesão corporal resulta sempre de uma violência exercida sobre pessoa”.
Em suma, a Corte Suprema deu importantíssimo passo no reconhecimento dos direitos humanos das mulheres e das crianças, vítimas de abuso sexual.
Ainda temos que respeitar a implementação dos Instrumentos Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos das Mulheres e das Crianças a que nosso País deu pronta adesão.[10]
Ainda analisando a jurisprudência, no HC nº 101.022-3, do TJSP, onde foi Relator o Desembargador Renato Nalini, diz-se: “O crime hediondo é aquele que causa repugnância por sua depravação, sordidez ou imundície”. Pergunta-se: “Será que é só o estupro qualificado que possui essas características?”
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em acórdão publicado na RJTJRS 174/157, que teve o desembargador Érico Barone como relator, decidiu: “A Lei 8072/90 considera hediondo o estupro, inclusive na forma simples”. Da mesma forma, o TJSP – RT 737/594 – concluiu que “o estupro, tanto na forma simples quanto na qualificada, constitui crime hediondo, a teor do artigo 1º da Lei 8072/90”.
Para concluirmos.
Se a intenção do legislador fosse a de elencar apenas o estupro qualificado pela lesão corporal grave ou a morte como qualificado, será que pretendia resguardar o resultado estupro, ou o resultado lesão corporal? Parece-nos que, se assim fosse, estaria defendendo a integridade física. Assim, seria mais lógico que fosse alterado o inciso V, passando a vigorar com a lesão corporal grave como crime hediondo.
Se nos posicionássemos de maneira diversa, chegaríamos ao absurdo de que um estupro tentado contra uma menor de 14 anos seria considerado crime hediondo; e o estupro “simples”, consumado, contra uma adolescente de 15 anos, ou uma mulher de 30 anos, ou uma idosa, não seria hediondo.
Pelas razões expostas nos posicionamos pela “hediondez” de todo o tipo de estupro.
Quanto à inconstitucionalidade do regime integralmente fechado, discordamos, pois a Constituição Federal estabelece que a lei regulará a individualização da pena nesses casos. Parece-nos constitucional.
OBRAS CONSULTADAS
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito Penal. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
FRANCO, Alberto Silva et al. Código Penal e Sua Interpretação Jurisprudencial. Vol.1, Tomo 2. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
FRANCO, Alberto Silva et al. Leis Penais Especiais e Sua Interpretação Jurisprudencial. Tomo 2. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo, Tortura. São Paulo: Saraiva, 2001.
JESUS, Damásio E. de. Código Penal Anotado. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
MAGALHÃES NORONHA, E. Direito Penal. Vol. 3. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Vol. 2. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2000.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
PIMENTEL, Sílvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P.; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: Crime ou “Castigo”?. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
SALLES JÚNIOR, Romeu de Almeida. Código Penal Interpretado. São Paulo: Saraiva, 1996.
Notas
[1] Art. 5º, XLIII: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo, e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
[2] FRANCO, Alberto Silva et al. Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 398.
[3] FRANCO, Alberto Silva et al. Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 399.
[4] MAGALHÃES NORONHA, E. Direito Penal. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 101.
[5] PIMENTEL, Sílvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P.; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: Crime ou “Cortesia”? Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998.
[6] Se é que alguma espécie de estupro pode ser simples.
[7] GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo, Tortura. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 7.
[8] SALLES JÚNIOR, Romeu de Almeida. Código Penal Interpretado. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 647.
[9] PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 200.
[10] Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) ratificado pelo Brasil em 1969; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém-PA), ratificada pelo Brasil em 1995; Convenção sobre os Direitos das Crianças, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW), ratificada pelo Brasil em 1984.