III- SISTEMA DE PROTEÇÃO AOS CREDORES
A carta constitucional de 1988 declina em seu art. 5º uma série de direitos individuais consagrados como fundamentais ao homem. Dentre tais direitos está o direito a propriedade, que por sua vez tem seus elementos definidos legalmente no art. 524 do Código Civil nos seguintes termos:
"Art.524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua."
Desde já, percebe-se que o direito de propriedade se desdobra em quatro facetas essenciais: o uso (ius utendi), o gozo (ius fruendi), a disposição (ius abutendi) e o reivindicar. Todas estas facetas, numa relação de complementariedade, conformam a propriedade enquanto direito.
Daí, percebe-se, como denota o essencialíssimo Humberto Theodoro Júnior, que
" um dos atributos do direito de propriedade é a o poder de disposição assegurado ao titular do domínio" (Curso de Direito Processual Civil, pág.108).
Porém, o direito de propriedade, enquanto parcela do patrimônio do devedor , representa para o credor, nos dizeres de Liebman,
"garantia de poder conseguir, em caso de inadimplemento, satisfação coativa pelos meios executivos" (Processo de Execução, pág. 105).
Ora, a partir desse confronto percebe-se que a disposição indiscriminada dos bens por parte do devedor representa, potencialmente, um prejuízo às pretensões do credor. Pode pairar sob a garantia fundamental do direito de propriedade atribuída ao que deve a negra sombra da fraude, prejudicando a Responsabilidade Patrimonial já discutida neste trabalho.
Assim, como corolário da Responsabilidade Patrimonial, o ordenamento pátrio desenvolveu um sistema de proteção aos credores. Tal sistema tenta conciliar entes aparentemente antagônicos, como a liberdade de contratar e dispor do devedor e os anseios legítimos do credor, evitando sempre a fraude e buscando a justiça em sua completude.
Esta concatenação de ordem protetiva desenvolvida pelo sistema jurídico pátrio possui essencialmente duas esferas: a) material, vislumbrada primordialmente na figura da fraude contra credores; b) processual, consubstanciada no repúdio à fraude de execução.
Expostas preliminarmente, passemos à análise destas duas esferas constituintes do Sistema de Proteção ao Credor.
3.1. FRAUDE CONTRA CREDORESTratada nas palavras de César Fiuza como "manobra engenhosa levada a efeito, com fito de prejudicar credores"(Direito Civil- Curso Completo, pág. 116), a fraude contra credores é matéria de Direito Civil, ou seja, refere-se a esfera material do Direito, sendo tratada entre os artigos 106 a 113 do Código Civil. Possui como pressuposto o dano (eventus damni) e a fraude em si (consilium fraudis). Aquele, de caráter objetivo, é entendido como a redução a insolvência do devedor em virtude de tal manobra. Este, de cunho subjetivo, é a voluntariedade do dano, a insolvência ardilosamente planejada, com a previsão do dano causado (Amilcar de Castro).
Tal expediente repudiado pelo Direito, ocorre necessariamente antes de intentados quaisquer procedimentos judiciais para a cobrança do crédito por parte do credor, como bem ensina o professor Humberto Theodoro Júnior (Curso de Direito Processual Civil, pág. 109). Neste sentido também ministra o professor Sálvio de Figueiredo Teixeira, que diz que "a alienação feita na iminência de execução ou após protesto não constitui caso de fraude de execução, mas fraude contra credores "(Código de Processo Civil Anotado, pág. 355). Daí, percebe-se que o objeto prejudicado por esta fraude é apenas a pretensão do credor em torno do recebimento do devido.
Majoritariamente, a fraude contra credores ocorre através da alienação de bens, ora a título gratuito, ora a título oneroso, importando que tal negócio reduza o devedor a insolvência, estado este patentemente prejudicial ao almejado pelo credor. Nas alienações a título gratuito, a fraude, mesmo que sem conhecimento do adquirente, em regra vicia o ato. Já nas alienações a título oneroso, se observada a boa-fé do que recebe o bem alienado, ou seja, seu desconhecimento da possível insolvência do alienante, a fraude não vicia o ato.
Liebman, em seu "Processo de Execução", postula, com razão, que a fraude contra credores, apesar de vislumbrada com maior freqüência nas operações de alienação, pode se dar através de meios análogos, como, por exemplo, o processo fraudulento. Muito comum na Justiça do Trabalho, vertente jurisdicional em que prepondera o princípio de proteção ao empregado, o processo fraudulento é aquele em que o devedor e um "testa de ferro" simulam uma lide, que, por fim, terá a sucumbência do primeiro, reduzido através desta a uma falsa insolvência. È notória a presença do dano e do ânimo fraudulento, caracterizando assim fraude contra credor.
Maculado o ato por tal vício, pode o credor lesado lançar mão da ação revogatória, denominada Pauliana, conforme preceitua o Código Civil. Feito autônomo, a Ação Pauliana possui como efeito precípuo a anulação do ato fraudatório em questão. Neste ponto tem-se uma cisão doutrinária quanto a natureza e efeitos formais da presente ação. Em um pólo, vemos parcela da doutrina, representada por Humberto Theodoro Júnior, postular uma natureza reipersecutória e real dos efeitos produzidos, ou seja, teria esta ação a capacidade de " fazer retornar ao acervo patrimonial do alienante o objeto indevidamente disposto, para sobre ele incidir a execução" (Curso de Direito Processual Civil, pág. 108). A garantia do credor é restaurada através de um restabelecimento do patrimônio do devedor. Em posição diametralmente oposta, vemos alguns processualistas, representados por Liebman, refutar a natureza real produzida na Ação Pauliana. O próprio Enrico Tullio Liebman trata a questão nos seguintes termos:
"Não é pois, completamente exata a afirmação comum, segundo a qual a Ação Pauliana faz reverter os bens alienados para o patrimônio do alienante. Se olharmos para seus efeitos sem deixar influenciar pela tradição histórica, veremos que eles consistem simplesmente em permitir que a execução recaia nos bens alienados em fraude, na medida que for necessário evitar prejuízo aos credores, e isso não por que esses bens tenham voltado ao patrimônio do alienante, ora executado, e sim, apesar de se encontrarem no patrimônio de terceiro adquirente"(Processo de Execução, pág. 106).
Não obstante a relevância da questão doutrinária levantada, importante é fixar-se que o principal instrumento de direito material no sistema de proteção ao credor é a Ação Pauliana, na medida em que seu efeito busca sempre afastar a mácula fraudatória pré-judicial que tombe sobre pretensão legítima de credor.
Como ação própria, a Ação Pauliana deve atender a todas as condições da ação, bem como aos pressupostos processuais. Deve ela, como já foi dito, fundar-se em dano efetivo, ou seja, insolvência em virtude da alienação, e no ânimo de fraudar, respeitando sempre a boa-fé do adquirente quando esta for pertinente.
3.2. FRAUDE CONTRA A EXECUÇÃOEnfaticamente vislumbrada no art. 593 do Código de Processo Civil, é manobra de aspecto processual inegavelmente mais grave que a fraude contra credores, sendo inclusive passível de sanção penal. Isso por que a fraude a execução não atenta apenas contra a pretensão dos credores, mas também é danosa ao desenvolvimento normal da atividade jurisdicional, transformando esta em letra morta. Neste sentido são as palavras de Moacir Amaral dos Santos, aqui expostas:
"Ademais, na fraude contra credores, alienação ou a oneração, apenas prejudica o credor como particular (uti singulis), enquanto na fraude de execução, além de prejudicar o credor, também prejudica a função jurisdicional pelas dificuldades que lhe cria." (Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, pág- 251)
Portanto, para que ocorra, é necessário que a máquina estatal, através de seu aparato jurisdicional, já tenham sido provocada, seja em mero processo condenatório, seja no processo executório. Importante: não há fraude de execução com sustentação em meros protestos, pois estes ainda não adentraram a esfera da jurisdição. Mas não basta o mero ajuizamento de feito para que a alienação fraudatória se configure contra a execução; necessário se faz que seja o devedor seja citado do feito para que ,daí, recaiam sobre o ato as medidas da fraude contra a execução. Tem sido este o entendimento jusrisprudencial, aqui expresso in verbis:
" Penhora. Embargos de terceiro. Alegação de fraude à execução. I – Para que se considere a alienação em fraude de execução não é suficiente o ajuizamento da ação. Há, para tanto, necessidade da citação válida do executado para demanda com possibilidade de convertê-lo à insolvência. II – Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. III- Recurso especial de que, à unanimidade, se conheceu, mas a que se não atendeu" (Resp 2573-RS, Rel. Min. Fontes de Alencar, DJU de 11-06-90).
Como manobra mais grave, atentatória à dignidade da Justiça, a fraude a execução é reprimida, dentro do sistema de proteção aos credores, com mais vigor pelo ordenamento jurídico. Tal severidade é vista em todo tratamento dispensado contra fraude em apreciação.
Primeiramente, a fraude contra a execução prescinde do elemento subjetivo do consilium fraudis, sendo dispensável a prova de má-fé. Como denotou Liebman, " a intenção é re ipse"(Processo de Execução, pág. 108). Já o elemento objetivo consubstancia-se na insolvência do devedor ou no prejuízo do objeto de ações versantes sobre direitos reais.
Em seguida, nota-se maior severidade contra a fraude de execução através da dispensa de ação própria para reconhecimento do ato fraudulento e a sobreposição de seus efeitos. Como diz Sálvio de Figuiredo Teixeira, " na fraude de execução, basta uma petição do interessado" (Código de Processo Civil Anotado, pág. 355), não se falando em questões tais como condições da ação e pressupostos processuais . Além disso, como atentatória ao poder jurisdicional, pode ser afastada de ofício pelo juiz competente. A jurisprudência também consagra tal visão, conforme trechos abaixo:
"O reconhecimento da fraude e da consequente ineficácia da alienação pode ser declarada incidentalmente no processo de execução, independente de ação específica." (RE 92236, Rel. Rafael Mayer, STF, Juriscível 89/183; RTJ 94/918)
"Pendente demanda que poderá levar o réu à insolvência, reputa-se em fraude a alienação de bens do seu patrimônio, podendo a ineficácia da alienação em face do exequente ser declarada, independentemente de ação e, até, de ofício, no próprio processo." (Resp 7712-RS, Rel. Min. Dias Trindade, DJ de 27-05-91)
O efeito precípuo da medida que afasta a fraude a execução é não a anulação do ato, mas sim a ineficácia deste frente ao credor. O ato de alienação, embora válido entre as partes, não subtrai os bens à responsabilidade executória, continuando estes a responder pelas dívidas do alienante como se ficcionalmente nunca tivessem abandonado seu patrimônio. A alienação tem pleno efeito entre alienante e adquirente. Apenas não pode ser oposta ao exequente. O bem responde até o valor suficiente para, se possível, dar cabo a insolvência. Porém, na maioria dos casos tais bens são insuficientes para tal.
A fraude à execução é tratada no art.593 do Código de Processo Civil. No inciso I de tal dispositivo vemos a nossa codificação processual considerar como fraude a execução a alienação de bem objeto de ação fundada em direito real, tutelando o direito de seqüela. Este dispositivo é , em síntese , uma antecipação da seqüela em relação a possível sentença proferida na ação em curso. Assim, o elemento insolvência não é imprescindível, pois está o objeto determinado, podendo configurar-se a fraude a execução nos casos em que o devedor aliene o bem pendente em ação de direito real, mesmo sendo seu patrimônio superior ao valor da coisa alienada. No que se refere a bens imóveis, a doutrina tem entendido que a inscrição da citação da ação real gera publicidade e faz presumir, iure et de iure, a publicidade de terceiros. Assim, a fraude independe de prova quanto ao conhecimento do adquirente. Porém se falta tal inscrição, cabe ao exequente provar o conhecimento da citação. Note-se: provar o conhecimento; não o consilium fraudis. O mesmo é válido para os bens que sofram constrições ou gravames judiciais, tais como a penhora, o sequestro, etc. Neste sentido aponta Sálvio de Figueiredo, dizendo que "inexistindo registro da citação ou do gravame judicial, ao credor cabe o ônus de provar a ciência, pelo terceiro, adquirente ou beneficiário, da existência da demanda ou do gravame. Dispensável é a prova da má-fé."(Código de Processo Civil Anotado, pág. 356). A jurisprudência também tem se posicionado neste sentido, conforme decisões trazida à cola:
"Fraude à execução – Penhora - Falta de inscrição – Ônus da prova. A falta de inscrição da penhora não impede a alegação de fraude contra a execução e, sim, somente tem significação de ficar o exequente no ônus de provar que o adquirente tinha conhecimento ou de que sobre os bens estava sendo movido litígio fundado em direito real, ou de que pendia contra o alienante demanda capaz de lhe alterar o patrimônio, de tal sorte que ficaria reduzido a insolvência." (Ap. 56387, TJMG, Rel. Oliveira Leite).
"Fraude de execução. Registro de penhora. Desnecessidade. Não se exige o registro da penhora para fins de caracterização de fraude de execução. Recurso provido"(Resp 2597-RS, Rel. Cláudio Santos, DJU de 27-08-90).
Já no inciso II, vemos o Código de Processo Civil tratar como fraude contra a execução a alienação que ocorreu ao tempo em que corria contra o devedor demanda capaz de levá-lo a insolvência. Enquanto no caso do inciso I fala-se de um bem determinado, seja pelo fato de ser objeto de lide versante sobre direito real, seja em virtude de gravame judicial, aqui vislumbra-se claramente a insolvência como elemento objetivo, ou seja, a aplicação plena da responsabilidade patrimonial. Neste inciso não se fala de um determinado bem, mas sim da responsabilidade que o patrimônio de alguém possui em relação a pretensão de outro. O ato de disposição patrimonial deve ser suficiente para que esteja configurada a insolvência e consequentemente a fraude à execução.
Por fim, o inciso III, determina que também devem ser consideradas fraude de execução aqueles atos que afrontem os demais casos expressos em lei, tais como o do art. 672 do CPC, na hipoteca judicial do art. 824 do Código Civil, no art. 185 do Código Tributário Nacional, entre outros. Este último inciso dá ao sistema de proteção ao credor, no que toca a fraude contra credores, mais amplitude e maior possibilidade de se modernizar.
Em todos os casos apontados pelo art. 593 do CPC, a defesa do terceiro, em respeito ao princípio do contraditório, faz-se através de Embargos de Terceiro.