O julgamento, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, de Ação Civil Pública contra a cobrança de taxa mensal por ponto extra nos serviços de televisão por assinatura (TV a cabo), ocorrido no último 29 de fevereiro, reacendeu a discussão acerca desta prática comum entre as operadoras cearenses e brasileiras.
Paga a contragosto pelos consumidores, referida cobrança foi expressamente proibida pela Resolução n.º 528, de 17 de abril de 2009[1], editada pela Anatel. Naquela oportunidade, a agência reguladora deixou clara a impertinência da taxa mensal pelo ponto extra ao reformar os arts. 29 e 30 do Regulamento de Proteção e Defesa dos Direitos dos Assinantes dos Serviços de Televisão por Assinatura (Resolução n.º 488, de 3 de dezembro de 2007), que passaram a ter a seguinte redação:
Art. 29. A programação do Ponto-Principal, inclusive programas pagos individualmente pelo Assinante, qualquer que seja o meio ou forma de contratação, deve ser disponibilizada, sem cobrança adicional, para Pontos-Extras e para Pontos-de-Extensão, instalados no mesmo endereço residencial, independentemente do Plano de Serviço contratado.
Art.30. Quando solicitados pelo Assinante, a Prestadora pode cobrar apenas os seguintes serviços que envolvam a oferta de Pontos-Extras e de Pontos-de-Extensão:
I - instalação; e
II - reparo da rede interna e dos conversores/decodificadores de sinal ou equipamentos similares.
§ 1o A cobrança dos serviços mencionados neste artigo fica condicionada à sua discriminação no documento de cobrança, conforme definido nos arts. 16 e 17 deste Regulamento.
§ 2o A cobrança dos serviços mencionados neste artigo deve ocorrer por evento, sendo que os seus valores não podem ser superiores àqueles cobrados pelos mesmos serviços referentes ao Ponto-Principal. (grifou-se)
Como se vê, a programação do ponto principal deve ser disponibilizada no ponto extra sem cobrança adicional e a instalação ou manutenção do ponto extra só pode ser cobrada por evento e quando solicitada pelo assinante.
Esclareça-se que o ponto extra, segundo a Resolução n.º 488, pode ser sintonizado de forma independente do ponto principal, diferentemente do ponto de extensão, que reproduz integral e simultaneamente o canal sintonizado no ponto principal ou num ponto extra. No caso, a proibição à cobrança adicional abrange tanto o ponto extra como o ponto de extensão.
Mesmo diante das novas disposições do regulamento, as operadoras mantiveram a cobrança amparadas por decisão liminar da 14ª Vara Federal do Distrito Federal, que havia sido dada anteriormente em ação movida pela Associação Brasileira de Televisão por Assinatura[2], na qual se requereu a sustação da eficácia do art. 29 supra, pela falta de clareza de sua redação original.
No entanto, tal decisão foi revogada pelo próprio juízo, em 25 de agosto de 2009, após a vigência da Resolução n.º 528, que deixou mais contundente a determinação pelo fim da cobrança do ponto extra.
Sem o albergue judicial para sua conduta, algumas operadoras mantiveram a taxa sob o pretexto de aluguel do aparelho decodificador, a despeito de nunca terem cobrado por este serviço anteriormente, no intuito de não lhe ver aplicada a nova resolução. Em meio à nova celeuma, a Anatel exarou sua Súmula n.º 9/2010[3], na qual estabelece que a prestadora e o assinante podem pactuar livremente sobre o comodato (empréstimo gratuito), aluguel ou venda do aparelho, embora ressalte que eventual modificação no contrato já estabelecido não é obrigatória e depende da anuência do consumidor, sob pena de nulidade da alteração e devolução em dobro dos valores pagos indevidamente pelo assinante, mais juros e correção monetária.
A permissividade da Anatel em relação ao aluguel do decodificador deixou as prestadoras à vontade para continuarem praticando a cobrança do ponto extra disfarçadamente, sob a nova alcunha de aluguel. Embora editadas visando a proteção do consumidor, a Resolução n.º 528 combinada com a Súmula n.º 9 passaram a servir de embasamento normativo para a manutenção da conduta das operadoras, que se aproveitavam da brecha legal e da hipossuficiência dos assinantes para obrigá-los ao pagamento, restando a estes últimos o socorro do Judiciário apenas.
Uma simples verificação dos preços praticados basta para notar o abuso, uma vez que os "aluguéis" cobrados mensalmente chegam a R$ 40,00 (quarenta reais) por ponto extra, enquanto os aparelhos decodificadores não custam mais que R$ 200,00 (duzentos reais), em valores de mercado. Caracteriza-se ainda a chamada "venda casada", pois, ao requerer o ponto extra, o consumidor fica obrigado a alugar o decodificador em valores definidos unilateralmente pela operadora, sem que lhe seja facultada alternativa.
As operadoras têm argumentado que seu pacto com o assinante advém de relação privada, ou seja, ambos estariam livres para contratar da maneira que lhes conviesse, mormente quanto aos preços e modo de fornecimento dos serviços. No entanto, tal afirmativa consiste em meia verdade: apesar de, em tese, haver liberdade contratual nesses casos, as prestadoras devem conduzir-se respeitando plenamente o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8078/90). Neste sentido, vejam-se os dispositivos do texto legal aplicáveis ao caso:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...)
IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
(...)
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;
(...)
V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;
(grifou-se)
A cobrança de aluguel do decodificador em preços além daqueles praticados pelo mercado viola, literalmente, o inciso IV do art. 6º, por estabelecer cláusula abusiva e imposta no fornecimento do ponto extra. Também se trata, no caso dos assinantes que nunca haviam pagado este "aluguel" antes da Resolução n.º 528, de modificação contratual que estabelece prestação desproporcional, ao cobrar mensalmente 20% (vinte por cento) ou mais do valor do aparelho a título de aluguel.
A dita venda casada, descrita anteriormente, malfere o art. 39, que em seu inciso I veda que as prestadoras condicionem determinado serviço (ponto extra) ao fornecimento de outro (aluguel do decodificador). Os preços praticados no aluguel, por fim, exigem do consumidor vantagem manifestamente excessiva e ofendem o inciso V do art. 39.
Não há, portanto, qualquer amparo legal ou normativo para a continuidade desta prática, o que, ainda assim, não tem inibido as operadoras de mantê-la. Isto ensejou o ajuizamento de inúmeras ações individuais e mesmo ações civis públicas[4] contra as operadoras de televisão por assinatura, nos diversos estados da federação[5]. A multiplicidade de demandas coletivas pelo país se dá pelo fato de que a maioria das empresas, embora transpareça ter caráter nacional para o consumidor, organiza-se de forma a constituir pessoa jurídica diversa em cada estado ou cidade, tornando necessário acionar judicialmente cada uma delas.
Tantos processos, no caso das ações civis públicas, têm gerado decisões divergentes e com abrangência duvidosa, ainda que, em sua maioria, favoráveis aos consumidores. No processo movido pelo Ministério Público Cearense[6], por exemplo, consta como parte adversa apenas a empresa Videomar Rede Nordeste S/A (NET Fortaleza). Dessa forma, os efeitos das decisões ali tomadas aplicam-se somente aos assinantes desta operadora.
Naquela ação específica, o juízo da 5ª Vara Cível de Fortaleza havia decidido pela manutenção da cobrança do ponto extra, em sentença que foi reformada pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça Cearense. O didático acórdão, relatado pelo Des. Durval Aires Filho, reafirma que a Resolução n.º 528 proibiu a cobrança, a qualquer título, de taxa adicional para pontos extra ou de extensão na mesma residência. Por isso, apenas o equipamento e os serviços de instalação e manutenção podem ser cobrados, mas em valores de mercado e por evento, nunca mensalmente. A estes últimos deve ainda ser oferecida alternativa, evitando-se a "venda casada".
O voto do relator, corroborado por seus pares, finda nos seguintes termos:
Isso posto, CONHEÇO DO APELO FORMULADO PARA LHE DÁ (sic) PROVIMENTO, determinando a modificação da decisão de origem para que a empresa recorrida fique terminantemente proibida de cobrar valor adicional por ponto extra nos termos do pedido formulado na exordial, retroativo à data da Resolução nº 528 da ANATEL sendo restituível indébito em forma simples, desde que não acobertado pela prescrição quinquenal.
Com base em tal decisão, a NET Fortaleza fica proibida de cobrar valor adicional pelo ponto extra, mesmo que sob o disfarce abusivo de aluguel do decodificador. Mais: a operadora está obrigada a devolver todas as parcelas cobradas em razão do ponto extra desde a edição da Resolução n.º 528 da Anatel, em abril de 2009.
Embora ainda caiba recurso à deliberação judicial, é improvável que as instâncias superiores venham a reformar o acórdão do Tribunal de Justiça do Ceará, ante todos os fundamentos já expostos. O próprio desembargador relator, após a sessão de julgamento, expôs sua crença de que entendimento não será revertido[7].
Ressalte-se que, mesmo em caso de recurso, a decisão em ação civil pública, a priori, tem execução imediata, com a ressalva da lei de que o juiz pode conferir, caso entenda que há risco de dano irreparável, o efeito suspensivo ao recurso. É o que se depreende do art. 14 da Lei n.º 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública):
Art. 14. O juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte. (destacou-se)
Outro dado interessante em relação à Ação Civil Pública em defesa de interesses individuais homogêneos, como o ora tratado, é que o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que os beneficiados podem liquidar e executar individualmente no foro do seu domicílio a sentença genérica proferida[8]. Assim, tomando como exemplo o caso da NET Fortaleza, que atende também o município de Sobral e a região do Cariri, o assinante que reside nestes locais poderia, tão logo a sentença assumisse caráter de título executivo, requerer ao juízo de sua comarca (Sobral, Juazeiro do Norte, Crato, etc.) o efetivo cumprimento da decisão, ainda que o processo tenha tramitado em vara de Fortaleza.
Observa-se, portanto, que os consumidores brasileiros e especialmente os cearenses estão bem próximos de ver finalmente cumprida a Resolução n.º 528 da Anatel, com a interrupção da cobrança do ponto extra. Estes últimos, nos termos da decisão do TJ-CE, terão ainda assegurada a devolução dos valores cobrados a este título desde abril de 2009, data em que foi editada a resolução. Para tanto, é imprescindível que os consumidores mantenham arquivados os extratos enviados por suas operadoras, a fim de comprovar a exigência mensal da taxa e tornar mais célere o ressarcimento, que pode ser exigido na Justiça local.
Notas
[1]Disponível em: <http://www.anatel.gov.br/Portal/verificaDocumentos/documento.asp?numeroPublicacao=238171& documentoPath=226007.pdf>.
[2]Ação Ordinária n.º 0017338-26.2008.4.01.3400, em trâmite perante a 14ª Vara Federal do Distrito Federal.
[3]Disponível em: <http://www.anatel.gov.br/Portal/verificaDocumentos/documento.asp?numeroPublicacao=240880& documentoPath=240880.pdf>. A Anatel presta esclarecimento sobre a nova súmula no seguinte endereço eletrônico: <http://www.anatel.gov.br/Portal/exibirPortalNoticias.do?acao=carregaNoticia&codigo=19916>.
[4]As decisões em ações civis públicas têm, por conta do art. 16 da Lei 7.347/85, efeitos erga omnes, ou seja, atingem a todos, e não apenas as partes envolvidas. Neste caso específico, significa dizer que tais ações beneficiam todos os assinantes das empresas que respondem ao processo. De forma diversa ocorre quando o próprio assinante move individualmente ação contra a operadora, pelo que a decisão proferida nos autos beneficiará somente a ele. Apenas as entidades previstas no art. 5º da Lei n.º 7.347/85 (Ministério Público, Defensoria Pública, entes federativos, entre outros) têm legitimidade para propôr ação civil pública.
[5]Em São Paulo, há processo neste sentido em trâmite na 6ª Vara da Fazenda Pública (ACP n.º 0005878-92.2010.8.26.0053). No Rio de Janeiro, corre ação perante a 14ª Vara Federal (ACP n.º 0006688-23.2011.4.02.5101). Em Brasília, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios considerou ilegal a cobrança pelo ponto extra no processo n.º 0120406-08.2005.807.0001, originário da 14ª Vara Cível. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais deve julgar ainda esse ano caso idêntico por meio do processo n.º 0614872-52.2006.8.13.0024, no qual houve determinação pelo juízo da 4ª Vara Cível de Belo Horizonte, em primeira instância, para que as operadoras deixem de cobrar a taxa.
[6]Ação Civil Pública n.º 0029528-30.2006.8.06.0001, originária da 5ª Vara Cível de Fortaleza.
[7]De acordo com o Jornal O Povo, de Fortaleza. Reportagem disponível em: <http://www.opovo.com.br/app/opovo/ economia/2012/03/01/noticiasjornaleconomia,2793373/cobranca-de-ponto-extra-e-proibida.shtml>.
[8]Vide decisão tomada em dezembro de 2011 pela Corte Especial do STJ no REsp 1243887 / PR, em julgamento submetido ao rito dos recursos repetitivos. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro= 201100534155&dt_publicacao=12/12/2011>.