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O direcionamento de multa diária contra o representante do poder público

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Agenda 24/04/2012 às 16:45

3. ESSÊNCIA DO DEBATE – CHOQUE ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS ou CHOQUE VALORATIVO

Como se observou, o direcionamento das astreintes ao representante do Poder Público admite duas interpretações: a) pela impossibilidade, tendo-se em vista que (i) não se deve confundir a pessoa jurídica com a pessoa física e que (ii) a pessoa física (representante) não participa da lide, apenas a pessoa jurídica (Ente Público); b) pela possibilidade, tendo-se em vista a efetividade da tutela jurisdicional e diante do argumento de que se o Poder Público descumpre comando jurisdicional, em verdade é o seu agente (pessoa física) que deixa de obedecer à ordem judicial.

Crê-se estar diante, como costuma ocorrer nos hard cases, de um conflito entre direitos fundamentais ou choque entre valores.

Os defensores da impossibilidade de direcionamento da multa ao representante do Poder Público sustentam tal tese no argumento central de que o representante não é parte no processo, e, portanto, por não lhe ser oportunizado o contraditório e a ampla defesa, não poderia ser atingido por decisão judicial.

Vislumbra-se neste pensamento a defesa de um valor caro às sociedades que superaram Estados de Exceção: o valor de que ninguém pode ser condenado sem o prévio direito de se defender, sob a égide de regras processuais prévias, que garantam imparcialidade no julgamento.

De outro giro, os defensores da possibilidade do citado direcionamento fundamentam o posicionamento no argumento da efetividade da tutela jurisdicional e no raciocínio de que se a pessoa jurídica age através da pessoa física, o descumprimento de ordem judicial é em último momento perpetrado pelo representante da pessoa jurídica. Vislumbra-se neste pensamento a defesa de um valor contemporâneo importante: a efetividade da tutela jurisdicional.

Assim, é possível explicar o embate de interpretações através do choque entre direitos fundamentais e valores. De um lado, prestigia-se o direito fundamental ao contraditório, forjado no valor de que ninguém pode ser atingido em seu patrimônio por decisão judicial sem o prévio direito de se defender. De outro lado, sublinha-se o direito fundamental do devido processo legal efetivo, pautado no valor de que a justiça só é concretizada na medida em que é efetiva.

Como resolver este choque?

Com supedâneo na doutrina de Norberto Bobbio, afirma-se que os direitos fundamentais possuem as seguintes características: relatividade, historicidade e conflituosidade.

Os direitos fundamentais estão dispersos na Constituição e são pleiteados pelos seus defensores na medida em que se quer emprestar força à reivindicação[10]. Como cada um enxerga a fundamentalidade do direito segundo a sua óptica, só se pode concluir pela relatividade dos direitos fundamentais.

Assim, tem-se a regra segundo a qual os direitos fundamentais não são absolutos, embora haja exceções admitidas pela doutrina majoritária, representada, dentre outros, por Norberto Bobbio, o qual admite os direitos fundamentais absolutos de não ser escravizado nem torturado[11], por Miguel Reale[12] e Sérgio Alves Gomes[13], para os quais há invariáveis axiológicas. Tal entendimento é comungado por este signatário.

Além disso, os direitos fundamentais são resultados do contexto histórico. São direitos históricos, nascidos em certas circunstâncias e caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de forma gradual.[14]

No tocante à conflituosidade, Bobbio afirma que por não haver fundamentos absolutos para os direitos fundamentais, eles irão muitas vezes se chocar. Para o doutrinador italiano o fundamento de direitos está apoiado na eleição de valores últimos e esses valores não são justificados, mas apenas assumidos. “O que é último, precisamente por ser último, não tem nenhum fundamento”. “De resto, os valores últimos são antinômicos: não podem ser todos realizados globalmente e ao mesmo tempo. Para realizá-las, são necessárias concessões de ambas as partes” [15].

Assim, partindo-se destas características dos direitos fundamentais, em especial a conflituosidade, o mestre italiano propõe que a solução seja algo que na comunidade jurídica brasileira chama-se princípio da proporcionalidade, ou seja, no conflito entre direitos, um deles prevalece, sem que se aniquile por completo o direito preterido. Neste sentido:

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É preciso partir da afirmação óbvia de que não se pode instituir um direito em favor de uma categoria de pessoas sem suprimir um direito de outras categorias de pessoas.

(...)

Na maioria das situações em que está em causa um direito do homem, ao contrário, ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se enfrentem, e não se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante.[16]

Desta forma, apenas a ponderação entre os direitos protegidos pelo ordenamento constitui-se no método para solucionar o conflito posto neste trabalho científico. Com base no discurso de Sérgio Alves Gomes, entende-se que a tensão demonstrada neste artigo é resolvida à luz da prudência:

Métodos de interpretação não substituem e nem afastam a preocupação do intérprete comprometido com os valores jurídico-democráticos, tais como, vida, liberdade, igualdade, segurança, justiça... Serão úteis para decisões justas se o intérprete for capaz de utilizá-los adequadamente mediante uma argumentação que demonstre equilíbrio e sensatez na ponderação dos valores presentes no âmago do caso concreto a ser solucionado mediante decisão.

(...)

Daí não haver outro caminho (método) que possa substituir os caminhos da prudência. Só por meio desta é possível realizar a verdadeira Jurisprudência, no sentido clássico e originário desta expressão que precisa urgentemente ser revisitado... [17]

E qual o entendimento prudente para solucionar o caso em tela? É sobre isso que se discorre no item a seguir.


4. SOLUÇÃO PONDERADA ATRAVÉS DO SABER PRUDENCIAL

Os ensinamentos teóricos e empíricos demonstram que na vida quase nada é absoluto. No Direito também é assim. Por este motivo, devem ser evitados posicionamentos inflexíveis e estanques na história.

Com base nisto, criticável o posicionamento do STJ no sentido de ser impossível o direcionamento de multa diária contra o representante do Poder Público em razão da pessoa física não ser parte no processo. O STJ simplesmente fecha as portas à aplicação da multa a um terceiro no processo, criando uma situação de inflexibilidade e obstando atitudes louváveis do Poder Judiciário de fazer com que o processo seja efetivo e a justiça concretamente aplicada.

É público e notório o desrespeito do Poder Público para com decisões do Poder Judiciário, e o direcionamento da multa, no cenário contemporâneo, não pode ser descartado.

Por outro lado, descartar o direito ao contraditório implica atitude inflexível do operador jurídico quanto a um direito fundamental que não pode ser aniquilado. O contraditório representa conquista histórica contra o não longínquo Estado Ditatorial, no qual a liberdade e o patrimônio eram tolhidos sem que antes fosse propiciado o direito de se defender. Não é por outro motivo que Kazuo Watanabe, valendo-se das lições de Cândido Rangel Dinamarco, entende ser o contraditório uma exigência política do processo.[18]

Desta forma, este signatário entende que a solução prudente a ser dada ao presente embate é aquela que favorece o direcionamento da multa diária contra o representante do Poder Público, porque está em consonância com o valor, a todo momento buscado, da efetividade da tutela jurisdicional, mormente quando a decisão judicial que se prestigia visa tutelar direito à vida, v.g, ações em que se pleiteia tratamento de saúde.

Entretanto, prestando homenagens ao julgado do TRF5 (apelação cível 200582010051188), deve-se, em atenção aos princípios do contraditório e da ampla defesa, observar que a cominação de astreintes ao gestor deve ser precedida obrigatoriamente da sua convocação aos autos, para que seja oportunizado a este o direito de defesa.


Considerações finais

O direcionamento da multa diária contra o representante do Poder Público exige ponderação de valores e demanda que se trate da problemática com a aplicação do princípio da proporcionalidade.

Se por um lado é plausível a alegação de que o direcionamento não deve ser acatado sob o fundamento do desrespeito à garantia do contraditório, posto que o representante não é parte na lide, por outro lado merece atenção a proposta que direciona a multa diária ao representante do Poder Público sob o fundamento da eficiência da tutela jurisdicional.

Com base nos ensinamentos de Norberto Bobbio, quando há choque entre direitos fundamentais (garantia do contraditório versus direito fundamental à eficiência da tutela jurisdicional) não se pode adotar qualquer postura que dê guarida a um direito com a conseqüência do completo aniquilamento do direito preterido. O princípio da proporcionalidade, como técnica de solução para o choque entre direitos fundamentais ou entre valores conflitantes, requer a prevalência de um valor sem tornar o outro inoperante.

A proposta denegatória do direcionamento da multa torna inoperante o direito à eficiência da tutela jurisdicional, pois a imposição de medidas criminais por descumprimento de decisão judicial ou a elevação da multa contra o Poder Público não tem se mostrado eficiente.

A proposta que acolhe a possibilidade do direcionamento da multa diária ao representante do Poder Público, nos termos do acórdão proferido pelo TRF5 (apelação cível 200582010051188), ou seja, com a prévia intimação do representante para que possa se defender, é a única que atende ao princípio da proporcionalidade, pois, ao dar prevalência ao direito à tutela jurisdicional eficiente, não torna inoperante a garantia do contraditório.


Referências

ASSIS, Araken de. Manual da execução. 11 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. – Nova Ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 200500736827. Relator: Jorge Mussi. Brasília, DF, 06 de abril de 2010.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo n. 1256988. Relator: Vasco Della Giustina. Brasília, DF, 01 de agosto de 2011.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.178.621. Brasília, DF, 1º de fevereiro de 2011.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5º Região. Apelação cível n. 508909. Relatora: Desembargadora Federal Margarida Cantarelli. Recife/PE, 08 de fevereiro de 2011.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação cível 0424021-9. Relator: Adalberto Jorge Xisto Pereira. Curitiba/PR, 02 de maio de 2008.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação cível 444926-5. Relatora: Regina Afonso Portes. Curitiba/PR, 14 de abril de 2008.

BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela jurisdicional executiva. São Paulo: Saraiva, 2008.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil IV. 3 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.

______________. Execução civil. 8 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

GOMES, Sérgio Alves. Hermenêutica constitucional: um contributo à construção do Estado Democrático de Direito. 1 ed. 2. Reimpressão. Curitiba: Juruá, 2010.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

______________. Curso de processo civil, volume 3: execução. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 3 ed. Bookseller, 2005


Notas

[1] ASSIS, Araken de. Manual da execução. 11 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 118.

[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil IV. 3 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 535.

[3] ______________. Execução civil. 8 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

[5] ______________. Curso de processo civil, volume 3: execução. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

[6] BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela jurisdicional executiva. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 419.

[7] www.cjf.jus.br

[8] www.stj.jus.br

[9] www.tjpr.jus.br

[10] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. – Nova Ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004., p. 9: “A linguagem dos direitos tem indubitavelmente uma grande função prática, que é emprestar uma força particular às reivindicações dos movimentos que demandam para si e para os outros a satisfação de novos carecimentos materiais e morais.”

[11] Ibid, p. 20.

[12] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

[13] GOMES, Sérgio Alves. Hermenêutica constitucional: um contributo à construção do Estado Democrático de Direito. 1 ed. 2. Reimpressão. Curitiba: Juruá, 2010, passim.

[14] BOBBIO, Norberto, Op cit, p. 5.

[15] BOBBIO, Norberto, Op cit, p. 18.

[16] Ibid, p. 41.

[17] GOMES, Sérgio Alves. Hermenêutica constitucional: um contributo à construção do Estado Democrático de Direito. 1 ed. 2. Reimpressão. Curitiba: Juruá, 2010, p. 311.

[18] WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 3 ed. Bookseller, 2005, p 140/141.

Sobre o autor
Bruno Quiquinato Ribeiro

Servidor do Ministério Público Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Bruno Quiquinato. O direcionamento de multa diária contra o representante do poder público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3219, 24 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21604. Acesso em: 22 dez. 2024.

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