Através de medida provisional, prolatada nos autos da ação declaratória de constitucionalidade, ajuizada pelo Presidente da República (ADC nº 9/201, Rel. Min. Néri da Silveira), o STF validou as normas da Medida Provisória nº 2.152-2, de 1º de junho de 2001. Basicamente a ação teve por objeto o exame da constitucionalidade da sobretarifa e do corte de fornecimento de energia elétrica para aqueles que ultrapassarem a meta estabelecida em seu artigo 14, ou aquela que vier a ser estabelecida pela Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica, conforme delegação contida no instrumento normativo em questão
Com o deferimento da cautelar em seu efeito vinculante e eficácia ex tunc, contra votos do Ministro Relator e do Ministro Marco Aurélio, todas as liminares concedidas pelos juizes e tribunais, que tenham por pressuposto a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade dessas duas medidas, ficaram suspensas até final decisão de mérito pela Corte Suprema.
Poder-se-ia argumentar que a Carta Magna só prevê o efeito vinculante da decisão de mérito, consoante prescrição contida em seu art. 102, § 2º. Aliás, a Constituição Federal sequer prevê medida cautelar nesse tipo de procedimento. Por conseguinte, poderia ser acoimado de inconstitucional o art. 21 da Lei nº 9.868/99, que prescreveu a possibilidade de concessão de medida liminar, por maioria absoluta dos membros do tribunal.
De qualquer forma, a lei não prevê a possibilidade de efeito retroativo da liminar como acontece relativamente à ação direta de inconstitucionalidade em que, salvo expressa manifestação em sentido contrário, a liminar terá efeito ex nunc, isto é, ficou apenas facultada a concessão de efeito retroativo a critério do tribunal (§ 1º do art. 11 da Lei nº 9.868/99).
Teria o art. 21 de Lei 9.868/99 extravasado os limites da outorga constitucional?
No nosso entender, a cautela integra a atividade jurisdicional, que é exercida pelo Poder Judiciário em regime de monopólio estatal. Daí a noção de soberania do Judiciário, de juiz–Estado. O juiz, quando decide, no exercício de sua atribuição típica, acertadamente ou não, o faz em nome do Estado, usando do poder geral de cautela, sempre que entender necessário. Por isso escrevemos:
"A riqueza infinita da realidade impede o legislador de prever todas as situações em que se impõe a concessão de medida provisional, para evitar o perecimento do direito. Por tal razão, conferiu-se o poder de cautela geral ao juiz, a quem cabe ordenar as medidas provisórias que julgar certas, justas e adequadas às exigências valorativas de cada caso concreto. O legislador confiou o exercício desse poder cautelar geral à consciência e à prudência do juiz. Este exercerá, no caso, um poder discricionário decidindo de acordo com os princípios da autonomia e do livre convencimento, o que significa necessidade de fundamentar e motivar a decisão. O poder cautelar é discricionário, mas não arbitrário, pois, confere ao juiz apenas a liberdade de escolha e de decisão nos limites da ordem jurídica vigente. A discrição, pois, pode e deve integrar os critérios informativos da jurisdição, tendo em vista as peculiaridades das matérias sobre as quais atua o poder jurisdicional do Estado, como nos casos de medidas de urgência, destinadas a evitar a lesão grave ou de difícil reparação." (Da liminar em matéria tributária. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 17).
Aliás, não é a primeira vez que o STF decide dessa forma. Na ADC nº 4-6 de que foi Relator o Min. Sydney Sanches já havia concedido, por maioria de votos, a medida cautelar com efeito vinculante, mas com eficácia ex nunc relativamente ao art. 1º da Lei nº 4.494/97, que estabeleceu medidas protetivas à Fazenda Pública, no que concerne à concessão de tutela antecipatória. Afinal, a ação foi julgada procedente, por maioria de votos (DJ de 4-11-99).
Dessa forma, smj, não há que se questionar a liminar concedida pela Corte Suprema. O que se poderia é questionar a própria Emenda Constitucional nº 3/93, que introduziu essa esquisita ação declaratória de constitucionalidade, que se desenvolve no plano abstrato e sem o contraditório, produzindo eficácia erga omnes e efeito vinculante. Por isso, essa ação superdotada assume feição legislativa, implicando supressão do princípio do duplo grau de jurisdição. Mas, essa é uma tese absolutamente inviável, na prática, somente servindo para enriquecer as discussões acadêmicas.
Contudo, a decisão liminar do Excelso Pretório Nacional não encerrou a discussão em torno da aplicação dos preceitos editados pelo legislador palaciano. Não poderá haver aplicação automática e simultânea da sobretarifa e da suspensão de fornecimento da energia elétrica, que faz lembrar a execução da pena capital, precedida da imposição de pesada multa pecuniária de caráter educativo.
A decisão do Excelso Pretório Nacional não implicou a supressão do princípio do devido processo legal, nem do princípio do contraditório e da ampla defesa, com os recursos a ela inerentes, que estão esculpidos nos incisos LIV e LV do art. 5º da Constituição Federal.
Referidos princípios constituem direitos fundamentais, protegidos por cláusula pétrea e que não podem ser suprimidos nem mesmo por meio de Emendas Constitucionais, consoante expressa proibição estabelecida no inciso VI, do § 4º, do art. 60 da CF.
Dessa forma, o consumidor, em o querendo, poderá apresentar impugnação dirigida à Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica, assim que receber a carta da concessionária, contendo advertência de suspensão do fornecimento de energia de que cuida o § 2º do art. 14 da indigitada Medida Provisória. Da mesma forma, ele poderá impugnar o valor da sobretaxa, vedada, numa e noutra hipótese, a invocação de inconstitucionalidade dessas medidas. Na ausência de normas processuais específicas para reger o processo deverão ser observadas as normas básicas previstas na Lei nº 9.784/99. Entendimento em contrário levaria à tese da impossibilidade de implementação prática das duas medidas punitivas, consideradas, em tese, constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. A Corte Suprema teria decidido sobre um "nada" como salientado por um jurista de renome, o que não corresponde ao nosso entendimento.
As impugnações são possíveis, porque o critério estabelecido pela Medida Provisória, para apuração da média de consumo de energia (consumo dos meses de maio, junho e julho de 2000), é por demais genérico, não representando a média real de consumo, em determinado trimestre, para muitos consumidores. Aqueles que viajaram no mês de julho, por exemplo, em virtude de férias escolares, foram prejudicados pela inclusão desse mês no trimestre considerado. Em relação às habitações novas, posteriores a julho de 2000, cabe à concessionária considerar qualquer período trimestral dentro dos últimos doze meses, segundo a delegação outorgada pelo Medida Provisória em questão. E se a habitação tiver menos que doze meses? Qual seria o critério? Seria aquele que viesse na cabeça do burocrata da concessionária? Ninguém o sabe, pois, a Medida Provisória em questão nada adiantou a respeito. E mais, existem casos em que o consumo no trimestre considerado não espelha a necessidade atual por "n" razões. Exemplos: superveniência do aumento de membros da família com nascimento de sêxtuplos; danificação, na época considerada, dos equipamentos eletrodomésticos como freezer, geladeira, máquina de lavar louça, máquina de lavar roupas, secadora, televisão; superveniência de doenças do consumidor, que implicam utilização intensiva de energia elétrica para tratamento de sua saúde etc.,etc.. Há, ainda, a possibilidade de defeitos nos relógios instalados pela concessionária, acarretando medição maior do que a energia efetivamente consumida.
Enfim, as causas que motivam a superação dos limites estabelecidos para o consumo de energia são das mais variadas e as dificuldades delas decorrentes são enormes e de toda ordem.
Por tais razões, não se pode suprimir o fornecimento de energia e nem cobrar a sobretaxa, na verdade, receita derivada, sem a observância do contraditório e da ampla defesa, como se a legislação palaciana em tela tivesse instituído um critério justo, perfeito, impecável e infalível.