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A constitucionalidade da transferência do sigilo bancário para o fisco preconizada pela Lei complementar nº 105/2001

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Agenda 01/10/2001 às 00:00

Com a edição da Lei Complementar no 105, de 10 de janeiro de 2001, o debate acerca do sigilo bancário assumiu proporções não experimentadas anteriormente. Pelo menos três ações diretas de inconstitucionalidade foram propostas perante o Supremo Tribunal Federal perseguindo o afastamento da ordem jurídica nacional de vários dispositivos do citado diploma legal (1).

De um lado, a Secretaria da Receita Federal divulga dados estarrecedores (2), tais como:

(a) 62 pessoas físicas que declararam perante a Receita Federal suas condições de isentas de imposto de renda tiveram movimentação financeira anual acima de R$ 10 milhões, totalizando R$ 11,03 bilhões;

(b) 139 pessoas físicas omissas perante a Receita Federal tiveram movimentação financeira anual acima de R$ 10 milhões, totalizando R$ 28,92 bilhões;

(c) 45 pessoas jurídicas incluídas no SIMPLES (pressupõe receita bruta anual inferior a R$ 120 mil) tiveram movimentação financeira anual acima de R$ 100 milhões, totalizando R$ 53,21 bilhões;

(d) 46 pessoas jurídicas que declararam perante a Receita Federal suas condições de isentas de imposto de renda tiveram movimentação financeira anual acima de R$ 100 milhões, totalizando R$ 18,39 bilhões;

(e) 139 pessoas jurídicas omissas perante a Receita Federal tiveram movimentação financeira anual acima de R$ 100 milhões, totalizando R$ 70,96 bilhões.

Ainda nesta linha, existe um nítido movimento internacional no sentido da flexibilização do sigilo bancário sem intermediação do Poder Judiciário. As razões justificadoras desta tendência, envolvendo países como os Estados Unidos (3), a Espanha (4), a França (5), a Bélgica (6), a Holanda (7), entre outros, repousam na necessidade de combate à lavagem de dinheiro oriundo de práticas criminosas (8) e de viabilização, em novos patamares, da fiscalização e arrecadação tributárias.

Por outro lado, importantes vozes do empresariado e dos meios jurídicos manifestam veemente irresignação contra o que seria a "quebra" do sigilo bancário em afronta aos direitos de intimidade, vida privada e sigilo de dados, todos consagrados na Constituição (art. 5o, incisos X e XII) (9).

Uma das objeções levantadas, justamente aquela construída a partir do sigilo de dados (art. 5o, inciso XII da Constituição), perde força e consistência continuamente com o avanço das discussões. Afirma-se, com acerto, que a Carta Magna inviabiliza a interceptação da comunicação de dados, mas não proíbe o acesso aos dados em si, mediante o emprego dos procedimentos adequados (10). Prevalecendo uma interpretação literal do dispositivo em questão, não seria possível acessar qualquer tipo de informação (não só fiscal), mesmo com intervenção judicial, somente necessária e possível para afastar a inviolabilidade nos casos de comunicação telefônica. Nesta despropositada linha de raciocínio, todo e qualquer dado, em qualquer meio ou veículo, estaria imune ao conhecimento alheio (do Fisco ou de quem quer que seja). Trata-se de uma conclusão absurda, que deve ser afastada do palco dos debates. Uma das mais insólitas conseqüências desta definição seria a impossibilidade do Fisco conhecer de livros e documentos fiscais nos estabelecimentos dos contribuintes por estar transgredindo a suposta inviolabilidade dos dados, referidos genericamente pela norma, sem qualquer restrição quanto à natureza, qualidade ou local de armazenamento.

O âmago da polêmica estabelecida, no entanto, gira em torno dos direitos à incolumidade da intimidade e da vida privada (art. 5o, inciso X da Constituição). Curiosamente, as manifestações contrárias à dita "quebra" do sigilo bancário não se detêm na análise e demonstração de como o conhecimento de operações bancárias ou financeiras efetivamente afronta os direitos ou garantias antes referidos.

Entendemos que em algumas operações ou situações de natureza financeira seria possível identificar traços ou elementos reveladores da forma de vida, costumes, preferências ou planos das pessoas (esfera de sua conduta e modo de ser não realizada perante a comunidade). Os destinatários de pagamentos, por exemplo, podem indicar o estilo de vida de determinado cidadão. Entretanto, na maior parte das operações bancárias ou financeiras não existe nenhuma, por menor que seja, possibilidade de conhecimento da esfera da vida privada e intimidade de alguém. Vejamos alguns exemplos: depósito à vista realizado pelo próprio titular da conta, resgate em conta de depósito realizado pelo próprio titular da conta, aplicação em fundo de investimento e aquisições de moeda estrangeira. Temos, nestes casos, eventos isolados, objetivos, padrões comerciais impessoais onde emerge, só e somente só, um dado contábil ou quantitativo.

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Assim, não assiste razão aos que sustentam não ser o tema constitucional (11). De outra banda, também não é possível afirmar ser o tema completamente ou integralmente constitucional. É correto consignar, isto sim, que certas e determinadas operações podem, em função de sua conformação, revelar ou indicar aspectos do modo de vida de alguém. Entretanto, mesmo estas operações somente viabilizam este conhecimento quando vistas além do mero dado quantitativo. Neste círculo limitado, do dado meramente contábil, não há espaço para invasão da intimidade ou privacidade. Um débito em conta corrente, a título de ilustração, tanto pode ter sido realizado para viabilizar uma doação a um moribundo quanto para remunerar o autor material de um crime. O dado numérico em si nada revela em relação ao detentor da conta bancária.

Verificamos, portanto, a inafastável necessidade de confrontar cada tipo de operação bancária ou financeira com os direitos à intimidade e vida privada. Somente o aspecto qualitativo de cada uma delas, até porque o dado numérico ou contábil em si não revela costumes ou preferências pessoais, poderá ter relação com os direitos inscritos na Constituição. A conclusão irrecusável, a partir da análise proposta, aponta para:

(a) ausência de invasão da intimidade ou vida privada nas operações isoladas, objetivas e impessoais;

(b) ausência de violação da intimidade ou vida privada nas operações que envolvem terceiros quando conhecido tão-somente o dado numérico ou contábil nela presente;

(c) possibilidade de ingresso em indicadores da intimidade e vida privada de alguém nas operações que envolvem terceiros quando conhecido o "lado" qualitativo nelas presentes.

Nesta linha de raciocínio, a regra do art. 5o da Lei Complementar no 105/2001 não pode ser inquinada de inconstitucional (12). Como as operações bancárias são comunicadas ao Fisco em "... montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados", conforme cláusula explícita naquele comando legal, não subsiste a menor possibilidade de invasão da intimidade ou vida privada das pessoas com o conhecimento tão-somente de valores, de dados numéricos, frias quantidades.

Toda discussão envolvendo a intimidade e vida privada de pessoas não pode fugir da análise cuidadosa da existência e extensão, se for o caso, destes direitos para as empresas. Observe-se que a Constituição exige autorização judicial para a busca domiciliar (art. 5o, inciso XI) (13). Por outro lado, não subsiste dúvida quanto à possibilidade do Fisco realizar, por sua iniciativa exclusiva e independentemente de autorização, diligências e verificações no ambiente físico dos estabelecimentos empresariais. Portanto, a diferença é flagrante. Admitindo, como admitimos, a manifestação de vida privada nas pessoas jurídicas, consistindo em práticas comerciais específicas, padrões organizatórios, e outros neste rumo, não podemos dar a estas o mesmo status e proteção jurídica da vida privada das pessoas físicas. No sentido destas considerações, o Tribunal Constitucional espanhol distingue a intimidade pessoal da intimidade econômica.

Importa ainda ressaltar que o conhecimento das operações bancárias pelo Fisco não significa quebra do sigilo bancário. A idéia de quebra está relacionada com a comunicação ou informação prestada a terceiros, de forma ampla, dos dados protegidos. Não há quebra quando as informações são transferidas, por razões juridicamente aceitáveis, com a manutenção do traço sigiloso por parte do novo conhecedor. Assim, quando o Fisco toma conhecimento de informações financeiras dos contribuintes não o faz com o intuito ou com o fim de divulgá-las para terceiros. Pelo contrário, todos os agentes fiscais estão obrigados a resguardar as informações manuseadas sob pena responsabilidade penal e administrativa.

Neste ponto é preciso tratar da chamada reserva constitucional de jurisdição. Este seria um postulado no sentido da submissão de determinadas decisões ao âmbito exclusivo de ação dos magistrados. Vários juristas inserem o conhecimento de informações bancárias ou financeiras na referida reserva constitucional. Tal inserção, no entanto, não se sustenta, sequer resistindo ao crivo da análise a partir do próprio texto constitucional e do sistema jurídico por ele inaugurado.

Com efeito, a ordem jurídica pátria estabelece que o Poder Judiciário será competente para apreciar ameaças e lesões a direitos. Assim, em regra, o juiz será chamado para apreciar atos já praticados (mesmo no caso de ameaça, atos indicadores de uma provável lesão de direitos). Não subsiste como atividade normal do magistrado autorizar a prática de atos. Entretanto, para algumas matérias o constituinte entendeu necessária a autorização judicial, dada a relevância dos bens jurídicos envolvidos. Assim, identificamos a necessidade de prévia manifestação judicial para: busca domiciliar (art. 5o, inciso XI), interceptação de comunicações telefônicas (art. 5o, inciso XII) e prisão, fora do flagrante (art. 5o, inciso LXI). Nestes casos, a Constituição expressamente exige a intervenção judicial preliminar. Este aspecto, devemos sublinhar, é fundamental. A reserva constitucional de jurisdição reclama explícita menção, na medida em que foge aos parâmetros normais da atuação judicial (14). Em assim sendo, não definiu o constituinte a necessidade de autorização judicial, e somente judicial, para acesso às informações bancárias e financeiras do contribuinte. Ao contrário, a Constituição foi explícita em viabilizar o acesso do Fisco ao patrimônio, aos rendimentos e às atividades econômicas do contribuinte (art. 145, §1o).

A cláusula final do art. 145, §1o da Constituição não reforça a inacessibilidade aos dados bancários ou financeiros, como querem alguns. As expressões "... respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, ..." procuram resguardar o contribuinte em dois sentidos: (a) para as informações relacionadas com sua vida privada, em relação à não divulgação ou conhecimento amplo das mesmas e (b) na fixação de regras de organização e procedimento das ações fiscais quando voltadas para identificação de manifestações econômicas tributáveis.

Mas as vozes irresignadas insistem em que o Fisco não pode conhecer estas informações. Afirmam, reafirmam, teimam que o acesso às informações financeiras pela Administração Tributária seria o mais claro e nítido caso de "quebra" do sigilo bancário. Vamos admitir esta premissa como verdade, embora não o seja, para efeito de argumentação. Mesmo assim o Fisco teria o poder, e o dever, de pesquisar a vida financeira dos contribuintes. Tal possibilidade está consagrada, como destacamos, explicitamente no art. 145, §1o da Constituição. O dispositivo em foco autoriza a conclusão de que a presença do interesse público relativiza as restrições ao acesso aos fatos de natureza ou conteúdo financeiro reveladores da intimidade ou vida privada.

Se de um lado temos a necessidade de sigilo daquelas informações bancárias reveladoras de intimidade e vida privada, de outro lado temos a necessidade de fiscalização, de apuração da ocorrência de fatos geradores tributários anunciados na própria Constituição. Ademais, somente o amplo e total conhecimento da vida econômica dos contribuintes, hoje majoritariamente financeira, dadas as características da economia moderna, permitirá a efetividade, aqui o discurso é constitucional, de ditames, também constitucionais, como a pessoalidade dos impostos, a capacidade contributiva, a isonomia e livre iniciativa, mediante combate à concorrência desleal daquele que não recolhe a carga tributária devida. Afirme-se, ainda, como absolutamente incompatível com a idéia de Estado Democrático de Direito a possibilidade de tornar inacessíveis atividades econômicas tributáveis, cujos recursos arrecadados via tributação constituem a principal, quiçá, única forma de realização da justiça social.

Assim, diante de um confronto de interesses, bens ou valores constitucionais é preciso realizar o chamado sopesamento ou avaliação ponderada dos fins, conforme construção da doutrina constitucional alemã. Ao buscar a convivência de vetores constitucionais em sentidos contrários, o jurista terá de afastar ou diminuir a força de um deles, sem aniquilá-lo, para viabilizar a realização do outro (15). O exemplo mais eloqüente deste expediente na prática constitucional brasileira foi efetivado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1.790-DF (16). Neste precedente, importantíssimo para os rumos do debate acerca da extensão do sigilo bancário, o Excelso Pretório firmou a premissa de que é juridicamente possível a convivência da privacidade com os "arquivos de consumo" amplamente utilizados no mercado. Portanto, diante desta decisão do Supremo, subsiste, sem resposta, a seguinte pergunta: por que a formação e utilização dos chamados "arquivos de consumo" pode conviver com os direitos à intimidade e vida privada e a transferência criteriosa e sigilosa de informações financeiras para o Fisco não pode? Qualificamos propositalmente de criteriosa e sigilosa a transferência das informações financeiras para o Fisco porque no âmbito da constituição e manuseio dos tais "arquivos de consumo" não verificamos estes rigores. Em regra, qualquer caixa ou atendente de uma loja comercial tem acesso imediato, "on-line", instantâneo, em tempo real a uma multidão de dados financeiros do cliente (ou possível cliente). Entre estes dados podemos encontrar: endereços, telefones, contas bancárias, saldos médios, patrimônio mobiliário e imobiliário, níveis de crédito na praça, os últimos contratos de compra e venda realizados no mercado, cartões de créditos, etc, etc, etc.

Como argumento definitivo em favor do acesso pelo Fisco às informações em comento, temos que estas simplesmente atestam ou confirmam as declarações já apresentadas pelo contribuinte. Afinal, existe a obrigação deste de comunicar ao Fisco uma série considerável de dados relevantes, inclusive saldos bancários ao final do exercício. Ademais, parece completamente despropositado que a fiscalização possa levantar, in loco, todos as informações fundamentais de uma empresa, vistoriando livros, documentos, estoques, entre outros, e não possa fazer o mesmo no âmbito dos eventos financeiros.

Resta fora de dúvida, portanto, a constitucionalidade do art. 6o da Lei Complementar no 105/2001 ao permitir o acesso das autoridades e dos agentes fiscais aos documentos, livros e registros de instituições financeiras quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

Embora a jurisprudência do egrégio Supremo Tribunal Federal não tenha uma posição definitiva sobre o acesso direto pelo Fisco às informações bancárias, vislumbramos, no conjunto de decisões já proferidas, com relação direta e indireta ao assunto, uma nítida tendência no sentido de chancelar a constitucionalidade da Lei Complementar no 105/2001. Notadamente, as decisões no sentido da previsão explícita das reservas constitucionais de jurisdição e da convivência entre a proteção da privacidade e os chamados arquivos de consumo (bancos de dados fundamentais para a economia da sociedade de massas).

Concluímos, lembrando Sérgio Carlos Covello e sintetizando a argumentação realizada, "banco não é esconderijo".

Sobre o autor
Aldemario Araujo Castro

Advogado Procurador da Fazenda Nacional. Professor da Universidade Católica de Brasília - UCB. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília – UCB. Ex-Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB (pela OAB/DF) Ex-Corregedor-Geral da Advocacia da União (AGU)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Aldemario Araujo. A constitucionalidade da transferência do sigilo bancário para o fisco preconizada pela Lei complementar nº 105/2001. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2220. Acesso em: 26 dez. 2024.

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