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Legítima defesa da honra e crimes passionais

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Agenda 18/08/2012 às 15:35

O padrão social que outrora se posicionava ao lado e em defesa do homicida passional deve ser extinto, prevalecendo a liberdade de escolha da pessoa que decidiu não mais levar a diante o relacionamento afetivo fadado ao insucesso, seja pela incompatibilidade das personalidades ou ainda pela simples ausência do sentimento que já motivou a união.

Resumo: O presente trabalho tem como tema a inaplicabilidade da tese de legítima da honra nos crimes passionais. Como objetivo deste estudo, procurou-se esclarecer as hipóteses excludentes de ilicitude, bem como o conceito de honra no direito brasileiro e o afastamento da respectiva tese de legítima defesa. Neste tocante, indispensável se revelou tecer considerações acerca das ações que configuram o crime, sob análise e a influência do estado psicológico sensivelmente alterado pela manifestação da emoção e paixão em uma situação fática provocada pelo ciúme. Em conclusão, traz-se o entendimento de que a aceitação da referida tese de defesa equivaleria a um retrocesso social, porquanto ignorada a norma que institui punição àqueles que cometerem homicídio e lesões corporais contra consortes, rivais e eventuais descendentes, ao passo que o ciúme obsessivo, ainda que patologicamente caracterizado, não viabilizaria a isenção da pena descrita no tipo legal.

Palavras-chave: Crime passional. Honra. Legítima defesa.

Sumário: Introdução - 1 Da teoria do delito - 1.1 Do conceito de crime - 1.1.1 Da ação, omissão e resultado - 1.1.2 Do nexo de causalidade e a tipicidade - 1.1.3 Das excludentes de ilicitude - 1.1.3.1 Do estado de necessidade - 1.1.3.2 Da legítima defesa - 1.1.3.3 Do exercício regular de direito ou estrito cumprimento de dever legal - 1.2 Culpabilidade e exclusão de ilicitude - 2 Da honra - 3 Da defesa da honra nos crimes passionais - 3.1 Da paixão enquanto manifestação da emoção - 3.2 Do ciúme patológico: combustível da ira que motiva o crime passional - 3.3 Da inaplicabilidade da tese de legítima defesa da honra nos crimes passionais - Considerações finais - Referências.


INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objeto a inaplicabilidade da tese de legítima defesa da honra nos crimes passionais.

O seu objetivo geral é analisar criticamente as causas que admitem o afastamento da aludida ilicitude e, especificadamente, definir os critérios de configuração da legítima defesa, além de esclarecer as peculiaridades da conduta do autor de crime passional, definindo a inaplicabilidade da excludente respectiva.

Para tanto, principia-se tratando da teoria do delito, através da qual se esclarece acerca das hipóteses excludentes de ilicitude previstas no Código Penal.

A seguir, tratando do conceito de honra no ordenamento jurídico brasileiro, e a sua qualificação enquanto direito personalíssimo, que exige especial proteção do Estado.

Para finalizar, aborda-se a emoção e a paixão, bem como o ciúme obsessivo enquanto objeto patológico, fazendo indicação à Síndrome de Otelo e às particularidades especiais deste tipo de delito que inviabilizam a aplicação da tese de legítima defesa da honra.

O trabalho se encerra com as Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos das reflexões sobre a importância de se punir os sujeitos ativos desta espécie de crime, porquanto a negativa da vigência da proibição do homicídio e lesões corporais no âmbito das relações afetivas implicaria em retrocesso social e insegurança jurídica.


1 DA TEORIA do DELITO

Em princípio, revela-se importante ressaltar o conceito de crime concebido através da conjunção dos seus elementos caracterizadores, quais sejam a ação, típica, antijurídica e culpável, integrando teoria quadripartida do delito[1].

1.1 Do conceito de crime

Acerca do assunto, Fernando Capez[2] doutrina que o crime pode ser conceituado sob os aspectos material e formal ou analítico, de modo que o primeiro seria relativo à razão pela qual determinando fato é considerado criminoso, ao passo que os demais comportamentos não o são; já o segundo, resultaria de mera subsunção da conduta ao tipo legal, considerando-se, pois, infração penal tudo que o legislador assim definir; finalmente, o terceiro buscaria estabelecer os objetos estruturais do crime, com isto identificando todo fato típico e ilícito.

De acordo com os ensinamentos de Miguel Reale Júnior, para que se qualifique uma ação como crime “é necessário que não só haja identidade entre a conduta paradigmática e a conduta concreta, mas é preciso também que essa conduta seja antijurídica e culpável”[3].

Celso Delmanto, por sua vez, aduz que crime “é a lesão de um bem jurídico protegido pela lei penal, ou a sua exposição a efetivo perigo de lesão, como decorreria de uma conduta dolosa ou culposa (com inobservância do dever de cuidado) e contrária ao ordenamento jurídico”[4].

Já o fato típico é aquele que se amolda perfeitamente aos elementos constantes do tipo previsto na lei penal, quais sejam: conduta dolosa ou culposa, resultado, nexo causal e  tipicidade[5].

1.1.1 Da ação, da omissão e do resultado

Ao tratar do tema em comento, Júlio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini salientam que a conduta (ação ou omissão) é o comportamento humano consciente dirigido a uma finalidade, sendo representada por um verbo que constitui o núcleo do tipo, e, igualmente, indica, em determinas hipóteses, o resultado ou o evento a ela ligado pela relação de causalidade[6].

Neste tocante, Cezar Roberto Bittencourt e Francisco Munõz Conde[7] sustentam que do conceito de ação e omissão devem ser ignorados todos os movimentos corporais ou atitudes passivas que careçam de relevância ao Direito Penal. Em outras palavras: “quando o movimento corporal do agente não for orientado pela consciência e vontade, não se pode falar em ação”.

Na sequência, os autores citados esclarecem que

São atos reflexos, puramente somáticos, aqueles em que o movimento corpóreo ou a sua ausência é determinado por estímulos dirigidos diretamente ao sistema nervoso. Nesses casos, o estímulo exterior é recebido pelos centos sensores que o transmitem diretamente aos centros motores, sem intervenção da vontade, como ocorre, por exemplo, em um ataque epilético[8].

Resta bem evidenciado, assim, que os atos reflexos não dependem da vontade do agente.

Ademais, a conduta será considerada dolosa quando, por vontade exclusiva do agente, vier a ocorrer a ação ou omissão que der ensejo à caracterização do fato típico. De outro vértice, será tida por culposa quando o agente der causa ao delito em razão de negligência, imprudência ou imperícia, tal como disciplinado pelo artigo 18, inciso II, do Código Penal Brasileiro[9].

O resultado, por sua vez, é toda lesão ou ameaça de lesão a um interesse penalmente relevante, por exemplo, a perda patrimonial no furto, a conjunção carnal no estupro, a morte no homicídio, a ofensa à integridade corporal nas lesões. Algumas infrações, porém, não produzem qualquer alteração no mundo natural. Neste caso, quando não houver resultado jurídico, não existe crime[10].

O Código Penal de 1940[11] adota a teoria da equivalência das condições, minimizando a relevância causal pelo parágrafo primeiro do artigo 13, de acordo com o qual a superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado, de que, nos termos do respectivo caput, depende a existência do crime.

1.1.2 Do nexo de causalidade e a tipicidade

Noutra abordagem, pode-se afirmar que o nexo causal é a ligação entre a conduta e o resultado e, nesta linha de pensamento, Fernando Capez destaca que

O nexo causal consiste em uma mera constatação acerca da existência de relação entre conduta e resultado. A sua verificação atende apenas às leis da física, mais especificamente, da causa e do efeito. Por essa razão, sua aferição independe de qualquer apreciação jurídica, como, por exemplo, da verificação da existência de dolo ou de culpa por parte do agente[12].

Como alerta o sobredito Promotor de Justiça, não se trata de questão opinativa, visto que a conduta é capaz de provocar o resultado, ou não.

Doutrinariamente criaram-se teorias para apontar o nexo causal, dentre elas a da equivalência dos antecedentes, para a qual toda e qualquer conduta que, de algum modo tiver contribuído para a produção do resultado deve ser considerada sua causa; bem como a teria da causalidade adequada, que tem por posicionamento a análise do fato isolado no contexto da situação para se aferir a sua potencialidade de causar o resultado.

Gize-se, a propósito, que o nexo causal só tem relevância para os crimes cuja consumação depende do resultado naturalístico.

De outro vértice, a tipicidade diferencia e especifica as condutas criminais em seu aspecto objetivo, enquanto o tipo constitui apenas e tão-somente a descrição objetiva, não encerrando elementos objetivos, tampouco possuindo conteúdo valorativo[13].

Neste tocante, Aníbal Bruno[14] destaca que a tipicidade não resulta necessariamente antijuridicidade, que, por sua vez, constitui a contrariedade à norma de cultura juridicamente reconhecida, mas apenas revelando um indício desta, legitimando eventual dúvida sobre a licitude do fato.

1.1.3 Das excludentes de ilicitude

Revela-se, ainda, conveniente ressaltar as causas de exclusão de antijuridicidade ou de ilicitude, que estão previstas no artigo 23 do Código Penal Brasileiro[15], segundo o qual não há crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de um dever legal ou no exercício regular de um direito. O seu parágrafo único, todavia, traz a ressalva de que o agente, em qualquer das hipóteses retro mencionadas, responderá pelo excesso doloso ou culposo.

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1.1.3.1 Do estado de necessidade

Com arrimo em o disposto no artigo 24 do Codex[16] sobredito, considera-se em estado de necessidade aquele que pratica o fato para salvar de perigo atual, desde que não o tenha provocado por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não lhe era razoável exigir-se.

Cuida-se, portanto, da “colisão de interesses juridicamente protegidos, devendo um deles ser sacrificado em prol do interesse social”[17].

Neste sentido, Heleno Fragoso exalta que “o que justifica a ação é a necessidade que impõe o sacrifício de um bem em situação de conflito ou colisão, diante da qual o ordenamento jurídico permite o sacrifício do bem de menor valor”[18].

1.1.3.2 Da legítima defesa

A legítima defesa, que também é uma excludente de ilicitude, é tida como “uma verdade imanente à consciência jurídica universal, que paira acima dos códigos, como conquista da civilização”[19], ou, como afirma Giuseppe Bettiol[20], corresponde a uma exigência natural, “a um instituto que leva o agredido a repelir a agressão a um bem tutelado, mediante a lesão de um bem do agressor”.

Por ser uma reação, a legítima defesa pressupõe uma ação precedente, que se configura como ilegítima, e para que seja reconhecida como excludente de antijuridicidade, de fato, deve restar evidenciado que seja atual ou iminente e injusta, ao passo que a repulsa deve estar pautada na moderação e ser suficiente para repelir a lesão ou ameaça de lesão a determinado bem jurídico.

Célio de Melo Almada faz uma ressalva, no sentido de que a injustiça da agressão decorre da ausência de provocação da parte ofendida, se esta for provada, a excludente não incide no caso concreto[21].

Em princípio, todos os direitos são suscetíveis de legítima defesa, tais como a vida, a liberdade, a integridade física, o patrimônio e a honra, basta, apenas, que o respectivo seja tutelado pela ordem jurídica. Neste passo, a discussão não deve se limitar à admissibilidade da legítima defesa da honra, mas, sim, à proporcionalidade entre eventual ofensa e a intensidade da repulsa[22]. A questão peculiar é identificar os meios em que a eventual e injusta agressão é repelida, sempre devendo ser pautada pela moderação, devendo ser constatado se o modo escolhido pelo agente era, realmente, o menos lesivo no momento da ocorrência dos fatos. Uma vez reconhecido o excesso, a excludente deixa de ser aplicada, tal como disciplinado pelo parágrafo único do artigo 23 do Código Penal Brasileiro[23].

Nas palavras de Celso Delmanto,

Quando uma pessoa age em legítima defesa, protegendo direito seu ou alheio, em caso de excepcional urgência, em face de uma agressão injusta, atual ou iminente, não tem o cidadão, naquele instante, como recorrer ao Estado para assegurar a proteção do bem jurídico que está sendo ameaçado pelo agressor, como a sua vida ou a de terceiro [...]. Ou ele, com moderação, contra-ataca, ou o injusto agressor irá ter sucesso em sua criminosa empreitada. Trata-se, assim, de uma atuação necessária e ínsita a um dos mais elementares instintos humanos: o da preservação[24].

Dentro do conceito amplo de legítima defesa, o mestre Rui Stoco sobressai que "compreendem-se não somente os bens materiais, mas, ainda e igualmente, os valores morais, como a honra, a boa fama, a imagem, a personalidade do agredido"[25].

1.1.3.3 Do exercício regular de direito ou estrito cumprimento de dever legal

Se o sistema normativo permite determinada conduta, não se pode admitir que, contraditoriamente, o Direito Penal a considere como sendo ato ilícito, devendo ser observado se o agente está no seu exercício regular, ou seja, dentro dos limites legalmente impostos - determinados ou implícitos -, sob pena de seu comportamento ser admitido como abuso.

Ainda se pode considerar atípica uma conduta quando o agente está apenas efetivando o estrito cumprimento de um dever legal, que pode ser imposto por qualquer norma, desde que respeitadas as características desta respectiva imposição, e, caso ultrapasse tais limites, haverá o que o parágrafo único do artigo 23 do Código Penal[26] denomina excesso punível.

1.2 Culpabilidade e exclusão de ilicitude

É a reprovabilidade da conduta praticada pelo sujeito, de modo que o seu pressuposto é justamente a imputabilidade do agente, isto é, a sua capacidade de entender o caráter ilícito de seus atos, comportando-se segundo este entendimento, sendo imprescindível a capacidade da pessoa agir de forma diversa[27].

De salientar, ademais, que o artigo 23 do Código Penal disciplina que é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Em consonância com a lição de Celso Delmanto[28], a imputabilidade é a capacidade de a pessoa entender que o fato é ilícito e de agir de acordo com esse entendimento. E, como o Código Penal não define quais doenças mentais poderiam ser admitidas como causas de isenção de pena, compete à Psiquiatria Forense identificá-las. De um modo geral, pode-se afirmar que a expressão inclui as enfermidades mentais de qualquer origem, com fatores biopsicológicos.

De acordo com Jorge Trindade[29], o retardo mental constitui um manifesto prejuízo da inteligência, uma condição de desenvolvimento incompleto da mente caracterizada pelo comprometimento das habilidades para resolver problemas, que são influenciados por fatores genéticos, ambientais e psicológicos. Tratando-se de um transtorno cognitivo, importa diretamente ao Direito quando se devem considerar os requisitos psicológicos da capacidade do agente para a prática do ato: capacidade de querer (volitiva) e capacidade de compreender (cognitiva).

A Classificação Internacional de Doenças (CID-10)[30], ao especificar os transtornos mentais e de comportamento, os divide de acordo com o nível de gravidade: retardo mental leve, moderado, grave, profundo outro tipo ou não especificado.

Também leva à exclusão da capacidade de entendimento e vontade do agente a embriaguez acidental e completa do agente, seja pelo uso imoderado de álcool ou qualquer outra substância de efeitos psicotrópicos (entorpecente, estimulante ou alucinógeno). É necessário que seja em decorrência de caso fortuito ou força maior[31].


2 DA HONRA

Nos dizeres de Pontes de Miranda, o sentimento e consciência de ser digno, mais a estima e consideração moral dos outros, dão o conteúdo do que se chama honra, e, por se tratar de um direito de personalidade, é considerado absoluto, público e subjetivo[32].

A honra é o bem de maior apreciação da personalidade humana, consoante Aparecida Amarante[33], porque representa o seu campo moral e social, e a autora cita Ludwing Enneccerus para acrescentar que

A honra é um sentimento que nos dá a estima de nós mesmos, pela consciência do cumprimento do dever; a consideração é uma homenagem prestada por aqueles que nos cercam, em virtude de nossa posição social. Um homem considerado pode ser sem honra, um homem honrado pode ser sem consideração. Contestar a probidade de uma pessoa é atacar sua honra[34].

Atualmente, a concepção jurídica considera a honra inerente à pessoa, enquanto reflexo da sua personalidade, razão porque qualquer lesão que atinja a reputação humana, seja pela honra ou decoro, deve ser objeto de reparação e de imposição de sanção penal e civil.

A honra está inserida no rol dos denominados direitos de personalidade, que, nos dizeres de René Ariel Dotti[35], "são os que se referem à própria pessoa". Em outras palavras, são aqueles inatos ao indivíduo que pertence à determinada sociedade.

Nesta linha de raciocínio, Rubens Limongi França ressaltou que "direitos da personalidade dizem-se as faculdade jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas emanações e prolongamentos"[36], e, segundo lição do renomado Rui Stoco[37], "trata-se de um direito universal e natural da pessoa humana".

Ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[38] preconizou no inciso X do seu artigo 5° que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Com a finalidade de conferir maior proteção à honra, o legislador inseriu um Capítulo específico no Código Penal[39], dispondo sobre os crimes de calúnia, difamação e injúria, nos artigos 138, 139 e 140, respectivamente, de modo que nos dois primeiros tipos legais busca-se tutelar a honra objetiva, que é o conceito em que cada pessoa é tida, ao passo que o último se refere à honra subjetiva enquanto sentimento que cada humano tem a respeito do seu decoro e dignidade.

É a proteção deste direito personalíssimo que em regra é utilizado como justificativa para o descontrole do criminoso passional, mas que, como será estudado a seguir, não deve prevalecer, sob pena de privilegiar o comportamento anti-social e ilícito em detrimento da dignidade alheia aqui referente à vítima.


3 DA DEFESA DA HONRA NOS CRIMES PASSIONAIS

Para melhor evidenciar a hipótese dos crimes passionais, mostra-se imprescindível esclarecer alguns sentimentos que inevitavelmente se destacam em se tratando desta espécie de delito e a influência destes para a respectiva consecução.

3.1 Da paixão enquanto manifestação da emoção

De registrar, inicialmente, que emoção e paixão não se confundem. Aquela, conforme preleciona Fragoso H. C.[40], constitui “um estado afetivo que produz momentânea perturbação da personalidade”, com isto afetando o equilíbrio psíquico, ou seja, “o processo ideativo, acarretando alterações somáticas, com fenômenos neurovegetativos (respiratórios, vasomotores, secretores, entre outros) e motores (expressões e mímica)”, ao passo que esta, ainda de acordo com o referido autor, seria a emoção-sentimento, que parte  de  um “processo afetivo duradouro”.

Damásio de Jesus[41], por sua vez, salienta que a emoção é um estado de ânimo ou de consciência “caracterizado por uma viva excitação do sentimento”, e a paixão “é a emoção do estado crônico, perdurando como um sentimento profundo e monopolizante”, do qual o doutrinador destaca o amor, ódio, vingança, fanatismo, despeito, avareza, ambição e ciúme.

Já Celso Delmanto avulta que a emoção é um movimento psíquico de forte e repentina comoção ou excitação, que pode acometer uma pessoa, à vista de alguém ou pela percepção de algo bom ou ruim, enquanto a paixão é um estado psíquico similar à emoção, porém mais duradouro, muitas vezes originário de uma emoção guardada e constantemente lembrada[42].

Nesta senda, Fernando Capez[43] sobressai que emoção é um sentimento abrupto, súbito, repentino, arrebatador, que toma de assalto a pessoa, ao tempo em que também é fugaz, efêmero, passageiro, esvaindo-se com a mesma rapidez. A paixão, segundo o autor, é um sentimento lento, que se vai cristalizando paulatinamente na alma humana até alojar-se de forma definitiva.

Quanto à personalidade do criminoso passional, insta ressaltar Luiz Ângelo Dourado, citado por Sérgio Nogueira Ribeiro, que esclarece que o autor geralmente é narcisista, isto é, um indivíduo vaidoso, com autoconfiança exagerada, desejoso de prestígio e admiração, querendo ser amado e incapaz de dedicar amor aos outros[44].

Além disso, destacam os autores que

O uxoricida-narcisista considera o objeto amoroso – a esposa – como prolongamento do próprio eu, uma vez que ela só existe em função do agente, portanto, não pode sequer conceber qualquer tipo de infidelidade. Mas, quando se concretiza a traição, a vida se lhe torna tão insuportável que, sem liberdade de escolha, mata a esposa ao mesmo tempo amada e odiada (ambivalência). Por outro lado, e pela mesma razão, o homicídio pode ser seguido de suicídio: destruído o objeto que é o prolongamento do agente, este não poderá subsistir. O crime passional seria para a mente distorcida do delinqüente um  ‘direito’ e  a  traição  da vítima, um ‘crime’ contra o ‘agente’[45].

O criminoso por paixão é, nos dizeres de Cláudio Gastão da Rosa Filho[46], “vítima de um humor exaltado, de uma sensibilidade exagerada, irrefletida, a quem a contrariedade dos seus sentimentos o leva, por vezes, a cometer atos criminosos violentos, como solução para suas crises passionais”.

Luiza Nagib Eluf[47] sustenta que numa análise superficial e equivocada, poderia parecer que a paixão, “decorrente do amor, tornaria nobre a conduta do homicida, que teria matado por não suportar a perda de seu objeto de desejo ou para lavar sua honra ultrajada”. No entanto, conforme alerta a doutrinadora, “a paixão que move a conduta criminosa não resulta do amor, mas sim do ódio, da possessividade, do ciúme ignóbil, da busca da vingança, do sentimento de frustração aliado à prepotência”, e, ainda, “da mistura de desejo sexual frustrado com rancor”.

Outro fator determinante para a conduta do criminoso passional é a violência, que não supõe nem o amor e nem o ódio, preexistindo a qualquer ambivalência afetiva, de modo que “o ataque se faz sem ódio, nem se justifica por nenhum sentimento de ódio, pois este supõe a presença e a capacidade do amor”, residindo unicamente “pela busca da autopreservação e da expansão vital”[48].

Diferentemente, a agressividade tem um objeto definido em função das pulsões libidinais e supõe a capacidade de amar e de odiar, visando a prejudicar o objeto ou mesmo destruí-lo. Além disso, supõe a presença de ambivalência afetiva, do sentimento de culpa, conflitos, confrontos abertos e explícitos, que ferem mais os sentimentos de probidade e provocam a reprovação social[49].

3.2 Do ciúme patológico: combustível da ira que motiva o crime passional

Para Roque de Brito Alves[50], o “ciumento não se sente somente incapaz de manter o amor e o domínio sobre a pessoa amada, de vencer ou afastar qualquer possível rival como, sobretudo, sente-se ferido e humilhado pelo seu amor próprio”, sobressaindo o autor que “o ciumento considera a pessoa amada mais como ‘objeto’ que verdadeiramente como ‘pessoa’ no exato significado desta palavra”, interpretação que “é característica do delinqüente por ciúme”.

Para Léon Rabinowcs[51], “ciúme é o medo de perder o objeto para o qual se dirigem os nossos desejos. O ciúme destrói, instantaneamente, a tranqüilidade da alma”.

Nessa linha de raciocínio, Geraldo J. Balone[52] sobresai que o ciúme é circundado por uma tênue linha divisória entre imaginação, fantasia, crença e certeza, ao passo que as dúvidas podem se transformar em ideias supervalorizadas ou delirantes.

Segundo Almeida[53], o ciúme é um sentimento tão controvertido quanto complexo. Num contexto amoroso, ele geralmente surge quando uma das pessoas envolvidas na relação diádica percebe que não tem mais tanta importância para o parceiro e que esta atenção frequentemente está voltada para outra pessoa, o que caracteriza um rival na disputa pelos reforçadores que o parceiro oferece.

Destaca-se, ademais, relevante estudo sobre o ciúme patológico enquanto sintoma do transtorno obsessivo-compulsivo, através do qual restou evidenciado que

A maneira como o ciúme é visto tem variações importantes nas diferentes culturas e épocas. Assim, no século XIV relacionava-se à paixão, devoção e zelo à necessidade de preservar algo importante, sem as conotações pejorativas de possessividade e desconfiança. Nas sociedades monogâmicas, o ciúme associava-se à honra e moral, sendo um instrumento de proteção da família, talvez até um imperativo biológico, uma adaptação evolutiva à questão da incerteza da paternidade. Dava-se grande ênfase à fidelidade feminina, enquanto a infidelidade masculina era bem aceita. Mesmo em tempos modernos, pode-se atribuir um papel positivo ao fenômeno, considerando-o um sinal de amor e cuidado, havendo quem se queixe da ausência de demonstrações de ciúme e chegue a provocá-las propositadamente[54].

Ora, remete à longa data o drama de Otelo - editado por William Shakespeare -, homem maduro que é induzido a erro por Iago, quem lhe fez acreditar que seu nobre amigo, Cássio, estaria se relacionando afetivamente com Desdêmona, jovem e encantadora. Otelo, no âmago do seu ressentimento, mata a esposa, e, posteriormente, ao saber da companheira de Iago sobre a armação, retira a própria vida, por não suportar a dor de ter assassinado sua amada.

A sinonímia do sobredito relato com as trágicas histórias reais daqueles que matam em nome do amor fez com que se qualificasse o ciúme possessivo de Síndrome de Otelo. 

Nos pacientes obsessivos destacam-se preocupações que tipicamente envolvem maior preservação da crítica, vergonha, reputação, honra e moral perante a sociedade e o meio em que o relacionamento afetivo se desenvolve, ao passo que eventuais atitudes tópicas de agressividade para com o outro são objeto de descontrole emocional, muitas vezes frutos de delirantes e exageradas distorções da realidade, induzindo o enfermo ao imaginário de que o consorte estaria lhe traindo ou planejando assim agir.

Como tratamento desta Síndrome a literatura médica recomenda a denominada terapia de melhoria do relacionamento, "envolvendo uma combinação de intervenções, tais como: controle da raiva e da violência, treino de comunicação e assertividade", além de "aconselhamento, dessensibilização a estímulos desencadeantes das preocupações, parada de pensamento, técnicas de relaxamento, de inversão de papéis, de exposição com prevenção de resposta, técnicas cognitivas e uso de psicofármacos"[55].

Ainda sobre o assunto, convém destacar que o sujeito ativo desse tipo de delito 

Sem ter meios para ressignificar a paixão, acaba por realizar atos criminosos que envolvem violência psicológica, lesão corporal, homicídio ou tentativa de homicídio contra a mulher amada, na fase de gestação ou não, quando o relacionamento está em vias de rompimento ou já acabado. Há casos em que a violência se dirige aos seus rivais e se estende aos filhos em tenra idade ou às pessoas mais próximas[56].

Para Barry Lenson e Kenneth C.  Ruge[57], o ciúme é uma das principais causas da violência contra crianças e da perseguição de antigos parceiros. E, em relação às estatísticas da violência, os autores afirmam que as questões ligadas ao ciúme são pouco relatadas. De acordo com esses autores, o ciúme tem proporções epidêmicas, sendo a principal causa de assassinatos, violência doméstica, abuso conjugal e divórcio.

E foi por ciúmes e pela impossibilidade de obter a fidelidade de Maria da Conceição que o Desembargador Pontes Visgueiro matou a menina-mulher tão desejada, assim como Euclides da Cunha, o autor de ‘Os Sertões’, que foi morto ao tentar ferir Dilermando de Assis, amante de sua então esposa, Anna da Cunha, e, idem, com Augusto Carlos Eduardo da Rocha Monteiro Gallo, que desferiu onze facadas na esposa, Margot Proença Gallo, pela suspeita de traição da parte dela. Do mesmo modo, Raul Fernandes do Amaral Street, homem de personalidade forte, assassinou a companheira Ângela Diniz, e a atriz Dorinha Duval que ceifou a vida do jovem Paulo Sérgio Garcia Alcântara, todos objeto de estudo de  Luiza Nagib Eluf, que, por súbito descontrole emocional, mataram em nome da honra e do dito amor, que justificariam a aplicação da respectiva tese de legítima defesa.

3.3 Da inaplicabilidade da tese de legítima defesa da honra nos crimes passionais

Consoante Jorge Trindade[58], paulatinamente vai sendo produzida "uma objetivação do pensamento, das opiniões, das atitudes e dos valores, criando-se a consciência que resulta da faculdade inerente à psique individual de atribuir valor ao que se harmoniza com as formas usuais de sentir, de pensar e de agir". Dito de outro modo, "através de um processo psíquico criam-se os ideais de consciência coletiva que se transformariam em normas de conduta".

Aliás, segundo o renomado autor, "se o mundo das relações sociais e jurídicas foi criado pelo homem, seus princípios devem se encontrar no próprio homem, no seu pensamento e na sua mente, na sua vontade e nos seus sentimentos" [59].

O filósofo Platão já afirmava que a atividade humana é essencialmente motivada por fatores psicológicos, que coexistem com tantos outros, econômicos, sociais e políticos.

A vontade aliada à cognição do desejo de vingar-se, de fazer prevalecer o ego perante a infâmia do ser amado, que se aventurou por uma traição, real ou ficta, pode, sim, levar o ciumento passional ao cometimento de crimes contra à vida, tanto do consorte, do então rival, e inclusive da descendência comum ou unilateral, isto com o objetivo de fazer cessar a inquietação espiritual.

Embora reconhecido como patologia, o ciúme compulsivo, exagerado e desmedido, não se revela causa eficiente para afastar a punibilidade do agente. Admissível seria, apenas, o reconhecimento da respectiva inimputabilidade, pela prevalência de doenças mentais, como o transtorno obssessivo-compulsivo (CID.10 - F.42)[60].

De acordo com Luiza Nagib Eluf[61], a inaceitável tese de legítima defesa da honra ‘nasceu no Tribunal do Júri, criada por astutos advogados de defesa que pretendiam alcançar a absolvição de clientes acusados de crimes passionais’.

Entretanto, convém destacar que o Direito Penal deve proteger bens reconhecidos pela própria Magna Carta como essenciais à concretização da liberdade do ser humano, como membro de uma sociedade que nela se fundamenta, com respeito a uma existência digna e igualitária[62].

Bem por esta razão que a paixão não pode ser usada para perdoar o assassinato, senão para explicá-lo. É possível entrever os motivos que levam um ser dominado por emoções violentas e contraditórias a matar alguém, destruindo não apenas a vida da vítima, mas, muitas vezes, sua própria vida, no sentido físico ou psicológico. Sua conduta, porém, não perde a característica criminosa e abjeta, não recebe a aceitação social[63].

Não é o caso de Otelo, da literatura de Shakespeare, que afirma ser um assassino, mas por honra, apenas pela honra, e, não, por ódio.

O amor-afeição não origina a idéia de morte, pois perdoa sempre, ainda que haja ciúme. Já o amor-sexual-possessivo é muito egoísta, podendo gerar ciúmes violentos que levam a grandes equívocos.

Luiza Nagib Eluf[64] define que o autor de crime passional possui uma ilimitada necessidade de dominar e uma preocupação exagerada com a sua reputação, valorizando a repercussão social que fulmina o homem traído, ao passo que a incapacidade de dividir a atenção do outro que traz o desespero.

Àqueles que se afirmam vítimas de uma traição, o atual ordenamento jurídico garante reparação pela violação da sua honra subjetiva, a exemplo da indenização fixada em virtude do abalo anímico causado pela descoberta do engano e da deslealdade de cônjuge, matéria objeto de recente precedente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, de lavra do Desembargador Luiz Fernando Boller, que, após considerar as particularidades do caso sob julgamento, fixou em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a prestação pecuniária devida por dano à honra[65].

Admitir-se outra forma de justificar o ego ferido, isentando o autor de crime passional da respectiva pena, equivaleria a negar vigência à norma que prevê punição a atos equivalentes a homicídio e lesões corporais, sobretudo no âmbito das relações afetivas, causando intensa insegurança jurídica e desconsiderando o imprescindível respeito na esfera íntima das relações sexuais-amorosas.

Prestigiando o referido raciocínio, registram-se precedentes no sentido da inaplicabilidade da tese de legítima defesa da honra nos crimes passionais, conforme decisão prolatada pelo pretório catarinense em sede de Recurso em Sentido Estrito n° 2011.007718-4, de relatoria do Desembargador catarinense Rui Fortes[66], bem como no Recurso em Sentido Estrito n° 70041261082, de lavra do Desembargador gaúcho Marco Antônio Ribeiro de Oliveira[67], e, ainda, no Recurso em Sentido Estrito n° 363471-5, cujo relator foi o Desembargador paranaense Mário Helton Jorge[68].

Sobre a autora
Naiara Czarnobai Augusto

SECRETARIA DE INTEGRIDADE E GOVERNANÇA no Governo do Estado de Santa Catarina. Peofissional bacharel em Direito, e pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal, em Propriedade Intelectual, em Compliance e Direito Corporativo. Possui Certificação internacional em compliance público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AUGUSTO, Naiara Czarnobai. Legítima defesa da honra e crimes passionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3335, 18 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22448. Acesso em: 2 nov. 2024.

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