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Ficha Limpa: era bom demais para ser verdade

Agenda 13/09/2012 às 16:01

Os efeitos da Lei da Ficha Limpa ficaram bem aquém do esperado, provocando profunda decepção na população e conduzindo o Judiciário a um descrédito ainda maior.

Resumo: Este trabalho comenta algumas falhas e imperfeições da chamada Lei Complementar 135/2010, a conhecida Lei da Ficha Limpa, e, assim, busca explicações jurídicas para sua não aplicação em centenas de casos concretos nestas eleições. A suspensão dos efeitos da sentença era carta guardada na manga de muitos políticos desonestos. Não pretendemos aqui esgotar o assunto, senão apenas contribuir, modestamente, para com o aperfeiçoamento dessa lei que, embora em um momento tenha enchido os brasileiros de esperança para dias melhores, desiludiu-os, sobremaneira, em seguida.

Palavras-chave: Lei da ficha limpa. Inelegibilidades. Suspensão de efeitos de sentença. Ineficácia da lei. Descrédito para o judiciário. 


1 INTRODUÇÃO

De repente, renasceu a esperança de ver dias melhores na política brasileira, isso em virtude da decisão de o Supremo Tribunal Federal aplicar a Lei Complementar (LC) 135/2010, mais conhecida como lei da ficha limpa, nas eleições municipais de 2012.

A lei da ficha limpa apertou, sensivelmente, o crivo das inelegibilidades ao considerar inelegível não mais apenas o político condenado por decisão judicial transitada em julgado, mas também aquele que condenado fosse por decisão de órgão judicial colegiado. Afinal, chega a ser tão longa a duração de um processo judicial, no Brasil, que a antiga exigência de sentença judicial condenatória transitada em julgado soava mais como uma piada de mau gosto.

E, então, justamente quando o povo mais ansiava por presenciar o início de uma profunda mudança no cenário político brasileiro, políticos de ficha suja, às centenas ou milhares, ainda não se sabe, romperam o cerco da lei complementar 135/2010 e receberam surpreendente deferimento aos seus pedidos de candidatura.

É bem verdade que muitos políticos condenados, foram impedidos de se candidatarem, porém o número dos barrados na festa da democracia ficou bem aquém do esperado. O povo, pasmado, não compreendeu o ocorrido e, até agora, parece que ninguém se lhes dispôs a explicar. Pior para o judiciário cujos integrantes têm agora de ouvir os reclamos populares e com eles se resignarem, pois merecem.

Se explicar o acontecido aos leigos, importa em uma hercúlea tarefa, aos estudantes e aos observadores do direito, parece um tanto mais fácil elucidá-lo, não obstante seja ainda mais difícil concebê-lo.


2 “CARTA NA MANGA”: SUSPENSÃO DOS EFEITOS DA SENTENÇA

O legislador, ao redigir o texto da LC 135/2010 que alterou a redação da LC 64/1990, estabeleceu uma única e exclusiva hipótese em que a suspensão ou anulação judicial de uma decisão possibilitaria a eleição de candidato outrora tornado inelegível. Trata-se da hipótese prevista na alínea g do inciso I do art. 1º da LC 64/1990, que cuida da suspensão dos efeitos ou anulação de decisão de Câmara Municipal que rejeite as contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas.     

Art. 1º São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:

1.contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;

g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;[1]Grifo nosso.

Em todas as demais hipóteses de inelegibilidade previstas na LC 64/1990, alterada, o legislador sequer fez menção à suspensão de efeitos ou anulação da decisão que torne inelegível candidato.

Ocorre, porém, que já há algum tempo vem sendo sustentado que a suspensão de efeitos, ou anulação, da decisão judicial que torne candidato inelegível poderá habilitá-lo a concorrer às eleições, muito embora já declarada sua inelegibilidade por decisão transitada em julgado ou prolatada por órgão judiciário colegiado. Como exemplo desse entendimento, convém aqui transcrever:

A instância superior, a quem compete julgar o recurso contra o julgado, poderá conceder medida cautelar de suspensão dos efeitos das inelegibilidades decorrentes da condenação por órgão colegiado por abuso de poder, pelos crimes especificados na norma, por improbidade administrativa e por corrupção eleitoral – hipóteses previstas nas alíneas “d”, “e”, “h”, “j”, “l” e “n” do inciso I do art. 1º, da Lei das Inelegibilidades. Consoante exigido a qualquer tutela de emergência, necessária a exigência da plausibilidade da pretensão jurídica, pois o risco de dano irreparável sempre se encontra presente ante a natureza dos bens envolvidos, diretamente relacionados com a democracia e a expressão da vontade popular. A medida cautelar de concessão de efeito suspensivo deve ser requerida na petição recursal, sob pena de se operar a preclusão. Nada impede, porém, que a parte interessada interponha ação cautelar incidental diretamente no tribunal ad quem, sempre que aberta a instância superior, ou seja, quando dado seguimento ao recurso. Como sabido, antes da admissibilidade do recurso ser admitida pelo presidente do tribunal recorrido, compete a este a apreciação de medidas cautelares.[2]

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No que tange à anulação de decisão já transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, não há quaisquer óbices a se levantar, pois que tal desígnio somente pode ser levado a efeito por decisão de órgão colegiado, em acórdão, devidamente fundamentado, e que reconheça a nulidade da decisão que resultou na inelegibilidade do candidato. Afinal, o que é nulo não produz quaisquer efeitos e é quase como se nunca houvesse existido. 

Contudo, concernente à suspensão dos efeitos da decisão que acarrete inelegibilidade, convém aqui fazer algumas oposições, as quais serão a seguir expostas de forma pormenorizada.

Primeiro, que, em muitos desses casos, uma decisão monocrática acaba por inutilizar uma decisão colegiada. Afinal, o que importa em um maior grau de segurança jurídica? Uma decisão singular ou uma decisão colegiada? Evidente que a decisão colegiada melhor representa um julgamento justo. Tanto é que, no desejo de apertar o crivo na escolha dos representantes do povo, buscou o legislador federal adotar um segundo critério, idôneo, que se prestasse a complementar o critério do trânsito em julgado na aferição da elegibilidade dos candidatos. E o critério escolhido? Adivinhe qual foi: decisão colegiada.

Segundo, porque, se o legislador desejasse estabelecer exceção às regras de inelegibilidade estabelecidas na LC 64/1990, ele mesmo o teria feito, eivando cada um dos incisos e suas respectivas alíneas da referida lei com a mesma previsão de suspensão ou anulação contida na alínea g, que trata da rejeição da prestação de contas. Definitivamente, essa não foi a vontade do legislador! Com base em que se afirma tal coisa? Basta lembrar que a LC 135/2010 foi um projeto de lei de iniciativa popular.

Em terceiro lugar, a legislação que possibilita a suspensão dos efeitos de sentença transitada em julgado ou de decisão judicial colegiada é a legislação processual civil, que, em matéria de direito eleitoral, somente pode ter aplicação subsidiária.[3] Portanto, se a LC 64/1990, alterada pela LC 135/2010, está a fixar a inexistência de sentença transitada em julgado ou de decisão judicial colegiada como condição de elegibilidade, não pode a legislação processual civil, meramente supletiva, negar-lhe aplicação e eficácia.

Ou seja, a LC 64/1990, norma de cunho eminentemente eleitoral, estabelece a inexistência de sentença transitada em julgado e de decisão judicial colegiada condenatória como condições de elegibilidade do candidato; e uma vez infringidas essas determinações, indiferente se mostra para a aferição de elegibilidade de candidato, se tais julgados tiveram ou não seus efeitos suspensos nos juízos cível ou criminal, ambos regidos por normas das quais o direito eleitoral se vale apenas subsidiária e supletivamente. A lei eleitoral não estabelece qualquer ressalva e não as permite estabelecer.

Por esse mesmo motivo, o efeito suspensivo atribuído ao Recurso contra a Diplomação está previsto no art. 216 do Código Eleitoral, não simplesmente calcado em legislação processual civil. Uma coisa é justificar a interposição, o conhecimento e o provimento de embargos de declaração (os quais não têm nenhuma previsão na legislação eleitoral) pelo uso de normas processuais, outra, completamente diferente, é forjar dessa legislação subsidiária uma conclusão que põe em risco a eficácia da própria norma de direito material. 

Destarte, essa sobreposição de normas de direito processual civil e penal à LC 135/2010 vem somente deturpar o seu caráter moralizante, embotando-lhe os sentidos, fazendo-lhe perder toda a sua utilidade e objetivos práticos.

Enfim, tão absurda quanto à simples exigência de trânsito em julgado de sentença condenatória, outrora contida na LC 64/1990, é a exigência de que a sentença transitada em julgado ou a decisão judicial colegiada condenatória não tenha seus efeitos suspensos pelos próprios prolatores!

Isso se prova simplesmente perscrutando-se as finalidades existenciais das normas eleitorais, as quais o eminente jurista eleitoralista Djalma Pinto, esclarece com singular maestria:

A interpretação das normas eleitorais deve convergir sempre para a busca da prevalência do interesse público. O Bem protegido pelo Direito Eleitoral é, acima de tudo, a lisura do processo para a escolha dos representantes do povo. Não é o interesse específico dos participantes das disputas eleitorais, mas, exclusivamente, o interesse superior da coletividade em realizar eleições limpas, em ver registrado apenas candidato com vida pregressa compatível com a magnitude do mandato a ser exercido em nome do povo. Essa, definitivamente, a preocupação primeira deste ramo da ciência jurídica.[4]

Nesse específico ponto, latente a existência de um conflito de opiniões entre o eleitoralista Djalma Pinto e o já referido Dr. Ophir Cavalcanti, pois este último sustenta que:

Corre por conta e risco do próprio candidato a postulação de mandato baseada em efeito suspensivo atribuído a recurso, resultando em afastamento provisório da inelegibilidade. Isto porque, em havendo revogação da cautelar suspensiva ou na hipótese de julgamento do pelo desprovimento ou não conhecimento do recurso, mantendo-se a condenação constante do acórdão recorrido, o candidato terá o seu registro cancelado e o eleito terá o seu diploma desconstituído, significando a cassação do mandato.[5]

Afinal, quem correrá o risco? O candidato? Ou a sociedade? Evidentemente que o maior prejudicado com o deferimento do pedido de candidatura de candidato condenado escudado em efeito suspensivo de decisão não será ele próprio, o político, mas toda a coletividade por ele gerida!

É lamentável discordar do ilustre advogado, mas ele está a olhar para o direito público com olhos privatistas e o pior: com espírito chicanista. É esse tipo de concepção distorcida, para não dizer depravada, do direito eleitoral que ora se combate de corpo, alma e espírito.

Corroborando o aqui exposto, convém transcrever mais um excerto da obra do festejado eleitoralista Djalma Pinto:

Entre os direitos fundamentais de quarta geração, um está a merecer especial destaque: o direito do cidadão de ser governado, exclusivamente, por pessoa honesta. O direito ao governo honesto constitui um direito fundamental, objeto de tutela constitucional no Estado Democrático. Governo honesto é o que pauta suas ações sempre respeitando os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. O governo de assaltantes nada tem a ver com a democracia. Trata-se apenas de um quadro doloroso em que marginais, travestidos de homens públicos, passam a ter acesso ao poder, fazendo ruir um dos pilares do estado Democrático: a dignidade da pessoa humana, tida pela doutrina como núcleo essencial dos direitos fundamentais.[6]

Não faz o menor sentido lógico que a cunhagem de uma norma moralizante como a LC 135/2010 seja seguida de um entendimento tão frouxo e covarde quanto o que ora se vergasta.

Outrora, quando se exigia o trânsito em julgado da decisão condenatória para que se declarasse a inelegibilidade do candidato, fazia-se uso do princípio da presunção de inocência, discussão esta já superada, e agora? Qual princípio fundamentaria a recusa na aplicação da LC 135/2010 pelo simples fato de a decisão judicial ter seus efeitos declarados suspensos? Nenhum!

[...] o mais intransigente defensor da presunção de inocência se disporia a adquirir imóvel de um estelionatário, invocando este, para concretizar a venda, a ausência de condenação penal res judicata, bem como o apreço incondicional daquele pretenso comprador por tão exaltado princípio? Obviamente que não. É justamente a imediata aferição da vida pregressa, feita pelo cultor do princípio da não-culpabilidade, que o impedirá de adquirir o bem, inviabilizando a consumação do contrato. Isso só confirma que as pessoas, na sua atividade privada, levam-na em consideração, não se justificando descaso na sua análise em se tratando de acesso à função pública.[7]  

Referente aos efeitos produzidos pela sentença judicial, convém aqui transcrever um esclarecedor excerto: “A verdade é que a sentença do juiz não exaure em si mesma os seus efeitos; ela se insere no contexto geral do ordenamento, realizando valores de igualdade, coerência e continuidade do ordenamento”.[8]

Ora, se a sentença judicial não exaure em si mesma os seus efeitos, logicamente produzirá, ainda que por via oblíqua, outros efeitos que nela não estejam previstos, tal como o da inelegibilidade. Destarte, a suspensão dos efeitos eleitorais de uma sentença cível ou criminal somente poderia ser admitida por decisão de juiz eleitoral, e não por outro qualquer.

No entanto, esta é uma discussão que não terá lugar nas eleições de 2012, é tarde demais, fica para a próxima quando, então, os políticos corruptos, provavelmente, disporão de mais uma carta na manga, restando saber qual será ela... A promessa da lei da ficha limpa era bom demais para ser verdade.   


3 CONCLUSÃO

A respeito do que fora discutido acerca da lei da ficha limpa, pode-se concluir:

1) Os efeitos da lei da ficha ficaram bem aquém do esperado, provocando profunda decepção na população e conduzindo o judiciário a um descrédito ainda maior;

2) A suspensão dos efeitos da sentença era trunfo guardado na manga por muitos políticos e seus habilidosos advogados para obterem o deferimento de seus pedidos de registro de candidatura;

3) O legislador, ao elaborar a LC 135/2010, não autorizou a suspensão dos efeitos de decisão senão no caso específico do julgamento de contas;

4)  O uso de regras de processo civil em contrário à norma de direito material eleitoral compromete, em absoluto, a eficácia da lei da ficha limpa;

5) A suspensão dos efeitos eleitorais de uma sentença não eleitoral é provimento que não deveria ser obtido, ao menos fora do juízo eleitoral.

Não pretende este modesto e ligeiro ensaio declinar a última palavra acerca dessa matéria, mas certamente promoverá uma maior reflexão sobre o assunto e, talvez, assim contribua para com uma melhor interpretação das normas eleitorais, ou mesmo, para com seu aperfeiçoamento.


4 REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Complementar nº. 64/90, de 18 de maio de 1990. Estabelece, de acordo com o art. 14, § 9º da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação, e determina outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. 21 maio 1990, p. 9.591. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp64.htm>. Acesso em: 13 jun. 2012.

CAVALCANTE JÚNIOR, Ophir. Ficha limpa: a vitória da sociedade. OAB – Conselho Federal, 2010.

LENZA, Pedro. Direito eleitoral esquematizado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

PINTO, Djalma. Direito eleitoral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

PICARDI, Nicola. Jurisdição e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008.


Notas

[1] BRASIL. Lei Complementar nº. 64/90, de 18 de maio de 1990. Estabelece, de acordo com o art. 14, § 9º da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação, e determina outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. 21 maio 1990, p. 9.591. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp64.htm>. Acesso em: 13 jun. 2012.

[2] CAVALCANTE JÚNIOR, Ophir. Ficha limpa: a vitória da sociedade. OAB – Conselho Federal, 2010. p 25.

[3] LENZA, Pedro. Direito eleitoral esquematizado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p 677.

[4] PINTO, Djalma. Direito eleitoral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p 26.

[5] CAVALCANTE JÚNIOR, 2010, p 26.

[6] PINTO, 2008, p. 32.

[7] Idem

[8] PICARDI, Nicola. Jurisdição e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 22.

Sobre o autor
Wesley Corrêa Carvalho

Advogado militante. Ex - Assessor Jurídico da Câmara Municipal de Governador Lindenberg (ES). Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Wesley Corrêa. Ficha Limpa: era bom demais para ser verdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3361, 13 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22612. Acesso em: 5 nov. 2024.

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