É cediço que a administração pública tem como escopo final a realização de obras e prestação de serviços, que, em última análise, visam ao bem comum da sociedade, bem como é fato que as atividades da administração pública, o ente, são realizadas por pessoas e que estas, regra geral, devem ingressar por meio de concurso público.
A Constituição Federal, em seu artigo 37, II, estabelece que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressaltando-se que o inciso IV, do mesmo artigo, diz que, durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos será convocado com prioridade sobre novos concursados para assumir cargo ou emprego, na carreira.
A importância do concurso público surge da necessidade de garantir uma isonomia entre todos (art. 5º, caput, da CF/88), na medida em que permite que qualquer pessoa, desde que preencha requisitos mínimos, possa participar de seleção e, eventualmente, ingressar no serviço público.
Outrossim, tão importante quanto o aspecto da isonomia, há a questão que visa garantir a observância dos princípios básicos que regem a administração em geral, insertos no caput do artigo 37 da Carta Magna, que prevê que a administração pública obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Deste modo, o concurso público se mostra como a maneira mais correta de ingresso no serviço público, pois necessita de norma que estabeleça a forma como será realizada a seleção (legalidade), que permita a participação de todos (impessoalidade) que preencham os requisitos legais, sem qualquer favorecimento ou fraude no processo seletivo (moralidade), dando-se ao maior número possível de pessoas o conhecimento de sua realização e permitindo-se que se escolham aqueles que, por mérito próprio, tenham logrado as melhores posições de classificação (publicidade e eficiência).
A fiel observância da regra do concurso público vem sendo defendida há muito tempo pela Corte Maior do país, guardião nato da Constituição Federal, tanto que Alexandre de Moraes, a esse respeito, assevera que o Supremo Tribunal Federal, ressalvadas as exceções constitucionais, é intransigente em relação à imposição à efetividade do princípio do concurso público, como regra a todas as admissões da administração pública, vedando expressamente tanto a ausência deste postulado, quanto seu afastamento fraudulento (in Direito Constitucional, Editora Atlas, 24ª Edição, 2009, p. 348).
Como visto, aqueles aprovados no certame, dentro do prazo de validade, gozam de preferência quanto aos demais, sendo que o STF, afirmando uma construção jurisprudencial de anos, no julgamento do RE n. 598.099 (Tribunal Pleno, julgado em 10/8/2011, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-189 DIVULG 30/9/2011 PUBLIC 3/10/2011 EMENT VOL-02599-03 PP-00314), de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, consagrou o entendimento de que
Uma vez publicado o edital do concurso com número específico de vagas, o ato da Administração que declara os candidatos aprovados no certame cria um dever de nomeação para a própria Administração e, portanto, um direito à nomeação titularizado pelo candidato aprovado dentro desse número de vagas.
Em tal precedente, assentou-se, ainda, o entendimento de que, havendo esse direito subjetivo à nomeação do candidato aprovado dentro do número de vagas previsto no edital, sua não contratação dentro do prazo de validade é incabível e somente pode se operar se justificada por uma excepcionalidade que decorra da conjugação de alguns fatores.
Colhe-se da ementa de tal julgado que:
Para justificar o excepcionalíssimo não cumprimento do dever de nomeação por parte da Administração Pública, é necessário que a situação justificadora seja dotada das seguintes características: a) Superveniência: os eventuais fatos ensejadores de uma situação excepcional devem ser necessariamente posteriores à publicação do edital do certame público; b) Imprevisibilidade: a situação deve ser determinada por circunstâncias extraordinárias, imprevisíveis à época da publicação do edital; c) Gravidade: os acontecimentos extraordinários e imprevisíveis devem ser extremamente graves, implicando onerosidade excessiva, dificuldade ou mesmo impossibilidade de cumprimento efetivo das regras do edital; d) Necessidade: a solução drástica e excepcional de não cumprimento do dever de nomeação deve ser extremamente necessária, de forma que a Administração somente pode adotar tal medida quando absolutamente não existirem outros meios menos gravosos para lidar com a situação excepcional e imprevisível.
Percebe-se, portanto, que a administração pública, na medida em que tem a faculdade de realizar ou não o concurso público, uma vez feito e homologado, não pode, a seu simples talante, deixar escoar o prazo de validade e não convocar aqueles que foram aprovados, até mesmo porque, ao escolher a via do concurso, pressupõe-se que tenham sido evidenciadas a necessidade da contratação e a disponibilidade orçamentária para tanto.
Dúvida surge, e esse é o ponto do presente trabalho, quando o concurso é para formação do chamado “cadastro de reserva”.
A nosso sentir, tal instituto, o “cadastro de reserva”, revela-se verdadeira tentativa de burla às premissas estabelecidas pela jurisprudência pátria ao longo das últimas duas décadas após a entrada em vigor da nova Constituição Federal, no sentido de que o candidato aprovado tem direito subjetivo à nomeação.
A administração pública, em todas as esferas, federal, estadual e municipal, bem como em todas as suas vertentes, seja em órgãos da administração direta, autárquica ou fundacional, bem como nas empresas públicas e sociedades de economia mista, tem se valido de tal expediente, com o subterfúgio que visa apenas a suprir eventuais vagas surgidas no prazo de validade do certame, sem que fique, por demasiado tempo, desprovida de material humano.
Atrevemo-nos a concluir que o real intento da administração pública é garantir o retorno da discricionariedade plena que tinha acerca da conveniência ou não de contratar pessoas que constam de um quadro de aprovados em concurso público. Tal discricionariedade, como visto, foi sensivelmente reduzida pelo Poder Judiciário, redução esta que foi consolidada pelo STF no julgamento do RE n. 598.099 já mencionado.
O mais grave na conduta da administração em relação a esta modalidade de certame é que, invariavelmente, sob o frágil argumento de que o concurso foi para cadastro reserva, se permite contratar pessoas de forma precária, mesmo tendo candidatos aprovados em “lista de espera”, normalmente o fazendo por meio de terceirizações, para o exercício de funções e atividades próprias dos cargos objeto do concurso público.
Ocorre que o judiciário, nos últimos anos e felizmente, também atentou para tal estratégia e vem, conforme as provocações surgidas nas mais variadas instâncias, Justiça do Trabalho, Justiça Federal, STJ e STF, consolidando o entendimento de que, embora, a princípio, o candidato aprovado em cadastro de reserva tenha mera expectativa de direito à nomeação, o fato da administração pública utilizar material humano decorrente da contratação de forma precária, por terceirizações por exemplo, para a realização de atividades própria de concursados, garante a estes últimos o direito líquido e certo à nomeação.
O atual posicionamento dos tribunais é no sentido de não tolerar práticas violadoras tanto dos princípios constitucionais quanto da boa-fé daqueles que se submetem aos certames públicos. Neste sentido, citamos como exemplo argumentativo, a manifestação do TST no julgamento do RR – 10200-78.2007.5.09.0670, que sinaliza a mudança de entendimento acerca do poder discricionário pleno da administração quanto aos concursos públicos, utilizando palavras fortes para denotar a abusividade da administração em tais casos, como se observa do seguinte trecho:
[…]
Todavia, ainda que se adote o velho entendimento de que a Administração pode deixar de nomear aprovados em concurso público apenas em face de seu poder discricionário, portanto sem precisar de maiores justificativas, note-se que a omissão do Banco do Brasil fundamentou-se, como já asseverado, na manutenção de um ato ilegal - a contratação de empregados por meio de empresas interpostas. Ou seja, mesmo a perspectiva que dá relevo à conveniência e oportunidade da Administração não se configura em argumento suficiente para ratificar a omissão havida, pois essa tem raiz em um ato ilegal (contratação de escriturário sem o devido concurso público).
Ora, as ações do reclamado (contratação de trabalhadores sem concurso público, abertura de concurso cujos aprovados são preteridos...) excederam, para retomar Leal, -os limites da ação discricionária, penetrando no terreno da ação arbitrária- (Id. ibid.). A não nomeação dos aprovados, em razão da contratação ilícita de empregados por meio de empresas interpostas, afigura-se, além de arbitrária, sem dúvida, desprovida de idoneidade, lealdade, justiça ou razoabilidade.
É de se observar que o poder discricionário da Administração na contratação de mão-de-obra há de se compatibilizar com princípios constitucionais a que esta deve se submeter, dentre os quais o da moralidade e o do concurso público, consagrados no caput e inciso II do referido art. 37 da Carta Magna.
[...]
A matéria já foi analisada também no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que, no ARE 660.141, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, manifestou o entendimento de que
Este Supremo Tribunal assentou que o candidato aprovado em concurso público não pode ter sua nomeação preterida em razão da ocupação precária de atribuições próprias do exercício de cargo efetivo vago, dentro do prazo de validade do concurso.
Em sua decisão, cita vários precedentes da Suprema Corte, que denotam ser este o entendimento hoje vigente. Destacamos o seguinte:
“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONCURSO PÚBLICO. TERCEIRIZAÇÃO DE VAGA. PRETERIÇÃO DE CANDIDATOS APROVADOS. DIREITO À NOMEAÇÃO. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. Uma vez comprovada a existência da vaga, sendo esta preenchida, ainda que precariamente, fica caracterizada a preterição do candidato aprovado em concurso. 2. Reexame de fatos e provas. Inviabilidade do recurso extraordinário. Súmula n. 279 do Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental a que se nega provimento” (AI 777.644-AgR, Rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, DJe 14.5.2010).
Em outro julgado, o Min. Ayres Britto, tratando também de concurso público para formação de cadastro reserva, registrou:
DECISÃO: vistos, etc. […] 6. No particularizado caso destes autos, contudo, a instância judicante dá conta de que houve contratações de terceirizados para as mesmas atividades dos cargos para os quais os recorridos foram aprovados: “em que pese a alegação de que o concurso tem como finalidade a formação de cadastro de reserva, vem a apelante mantendo as contratações irregulares e firmando novos contratos, cumprindo registrar que a mesma limita-se a negar tal prática sem, no entanto, apresentar irrefutável prova em contrário” (fls. 993). 7. Nessa contextura, a postura da Administração, a meu sentir, além de revelar a existência de vagas e a necessidade de provimento dos cargos, implicou a preterição de candidatos habilitados. Pelo que passam eles a ter direito à respectiva nomeação. 8. Nesse mesmo sentido, vejam-se: AIs 745.907, da relatoria do ministro Ricardo Lewandowski; e 777.644-AgR, da relatoria do ministro Eros Grau; e ARE 660.141, da relatoria da ministra Cármen Lúcia. 9. Noutro giro, quanto à alegação de que há candidatos aprovados em melhor colocação que a dos recorridos, é de incidir a Súmula 279/STF. 10. À derradeira, observo que a jurisdição foi prestada de forma completa, em decisão devidamente fundamentada, embora em sentido contrário aos interesses da parte recorrente, o que não caracteriza cerceamento de defesa. Ante o exposto, e frente ao caput do art. 557 do CPC e ao § 1º do art. 21 do RI/STF, nego seguimento ao recurso. Publique-se. (RE 582819/RJ, j. 5/3/2012)
Na mesma direção, caminha a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que já decidiu:
ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO APROVADO FORA DO NÚMERO DE VAGAS PREVISTAS NO EDITAL. ABERTURA DE NOVAS VAGAS. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA. EXPECTATIVA DE DIREITO QUE SE CONVOLA EM DIREITO LÍQUIDO E CERTO.
1. O STJ adota o entendimento de que a mera expectativa de nomeação dos candidatos aprovados em concurso público (fora do número de vagas) convola-se em direito líquido e certo quando, dentro do prazo de validade do certame, há contratação de pessoal de forma precária para o preenchimento de vagas existentes, com preterição daqueles que, aprovados, estariam aptos a ocupar o mesmo cargo ou função.
2. Agravo Regimental não provido.(AgRg no RMS 36831/MA, Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, Data do Julgamento 22/05/2012 Data da Publicação/Fonte DJe 15/06/2012)
A utilização de mão de obra de forma precária, em especial quando decorrente de terceirização, não pode servir de óbice à contratação daqueles que, por esforço próprio, e depois de abdicação de tempo à família e muito estudo, foram preteridos por puro capricho do gestor público em adotar uma política de alocação de recursos humanos, segundo alegam, “mais econômica”, quando devem observar que esta prática acaba por ofender disposições constitucionais, há muito instituídas e ratificadas pelo Poder Judiciário como parte do rol de garantias do indivíduo.
Conclui-se que o concurso público é instrumento de consolidação da democracia, na medida que permite a um grande número de pessoas, regra geral, sem qualquer distinção, disputar o ingresso nos quadros de servidores da administração pública.
Infere-se ainda, que, uma vez realizado e homologado o concurso, não se pode deixar de nomear os aprovados dentro do número de vagas, salvo se comprovada uma conjugação de fatores que impliquem na configuração de situação absolutamente excepcional a justificar a não contratação.
E, finalmente, os aprovados em concurso público, ainda que para o chamado “cadastro de reserva”, não podem ser preteridos em sua nomeação, se, no prazo de validade do certame, ocorrer contratação de forma precária (terceirização), sob pena de ofender-se aos princípios constitucionais da administração pública, em especial ao da moralidade e impessoalidade, além da boa-fé daqueles que se sujeitam ao concurso público.