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A mudança de destinação de radiofrequência e o instituto do direito adquirido

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Agenda 30/10/2012 às 11:15

4. O instituto do direito adquirido.

Para que as pessoas vivam em paz, mister se conferir estabilidade às relações jurídicas. Daí surge o princípio da segurança jurídica, valor tido como fundamental na sociedade democrática moderna.

Ingo Sarlet acertadamente destaca que “a segurança jurídica coincide com uma das mais profundas aspirações do ser humano, viabilizando, mediante a garantia de uma certa estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica como tal, tanto a elaboração de projetos de vida, bem como a sua realização”[16]. Dessa forma, para a concretização dos demais valores constitucionais, imperioso que se garanta a segurança jurídica.

É nesse sentido que a Constituição Federal assegura, em seu art. 5º, inciso XXXVI, que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Como se vê, o texto constitucional não dá os contornos do que se deva entender, de maneira clara e objetivo, por direito adquirido.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, consubstanciada pelo Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, antes denominada Lei de Introdução ao Código Civil[17], que traz alguns conceitos sobre o conflito de leis no tempo, dispõe, em seu art. 6º, §2º, que se consideram adquiridos os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem[18].

A definição trazida pela LINDB para o direito adquirido, contudo, serve apenas de norte ao intérprete, sobretudo em razão de datar de 1957, bem anterior à atual Constituição Federal, de 1988. Além disso, sabe-se que, pela hierarquia normativa, as leis devem ser interpretadas, primeiramente, sob a ótica da Constituição Federal, e não o contrário. É o que se chama de princípio hermenêutico da interpretação conforme a Constituição (ou a partir da Constituição).

Sobre a definição legal trazida pela LINDB sobre o direito adquirido, de bom alvitre colacionar as ponderações feitas por Marcelo Novelino[19]:

Duas orientações podem ser adotadas em face desta definição legal. A primeira é no sentido de que não existindo definição constitucional, caberia à lei formular o seu conceito e definir os seus limites. Desse modo, ficaria a cargo do legislador ordinário a prerrogativa de definir, em termos normativos, o conteúdo da ideia de situação jurídica definitivamente consolidada.

A segunda orientação, que nos parece a mais correta, parte da premissa de que a lei deve ser interpretada conforme a Constituição e não o contrário. Assim, apesar da possibilidade de uma definição legal auxiliar na interpretação de normas constitucionais, não pode vincular esta atividade de forma a aprisionar o intérprete aos limites por ela estabelecidos.

De fato, a definição trazida pela LINDB serve de auxílio ao intérprete constitucional, mas sem fechar suas possibilidades. Portanto, diante da falta de parâmetros constitucionais, resta aos intérpretes (doutrinadores, legisladores e/ou aplicadores da lei) traçar os parâmetros. Nesse viés, destacam-se os critérios apontados por Celso Ribeiro Bastos[20] para a determinação da ocorrência do direito adquirido:

I – expressa referência que a lei possa fazer a essa circunstância, como ocorre quando ela deixa claro o seu caráter perpétuo ou utiliza o termo incorporação;

II – análise de sua finalidade ou racionalidade. Deve-se perguntar: teria sentido esta norma sem o caráter de perdurabilidade do benefício criado por ela? Se a resposta for negativa, estaremos diante de um direito adquirido.

O Supremo Tribunal Federal – STF, em julgamento de 1999, também trata do assunto, deixando assente, contudo, sua posição de que caberia ao legislador ordinário trazer os contornos do direito adquirido[21].

Celso Ribeiro Bastos afirma ainda que “o direito adquirido no campo publicístico surge toda vez que o legislador isola um fato (gesto de bravura, tempo de serviço...) e o considera, de per si, apto para ser fonte geradora de um direito. Nestas hipóteses o direito não pode ser senão da natureza dos adquiridos”[22].

Em outra ocasião, Celso de Bastos ensina que o direito adquirido:

(...) constitui-se num dos recursos de que se vale a Constituição para limitar a retroatividade da lei. Com efeito, esta está em constante mutação; o Estado cumpre o seu papel exatamente na medida em que atualiza as suas leis. No entretanto, a utilização da lei em caráter retroativo, em muitos casos, repugna porque fere situações jurídicas que já tinham por consolidadas no tempo, e esta é uma das fontes principais da segurança do homem na terra[23].

Deve-se lembrar, nesse ponto, que o direito adquirido é garantia do administrado em face do Estado. Pode a lei eventualmente retroagir se for para beneficiá-lo[24].

José Afonso da Silva, também registrando que não há contornos claros sobre o conceito de direito adquirido, ensina que a noção desse instituto ainda é balizada pela opinião de Francesco Gabba, senão vejamos:

A doutrina ainda não fixou com precisão o conceito de direito adquirido. É ainda a opinião de Gabba que orienta sua noção, destacando como seus elementos caracterizadores: (1) ter sido produzido por um fato idôneo para a sua produção[25]; (2) ter se incorporado definitivamente ao patrimônio do titular.[26]

Tecidas essas considerações, vale dizer que, embora a Constituição Federal tenha resguardado o direito adquirido do advento de uma lei nova, ou, mais precisamente, da retroatividade de uma lei nova, o seu mandamento se aplica a todos os Poderes da União, quais sejam, Legislativo, Executivo e Judiciário.

Admitir-se o contrário seria o mesmo que proteger o direito adquirido da retroatividade de uma lei nova, mas deixá-lo à mercê de um ato administrativo ou de uma decisão judicial. Na verdade, todos os Poderes da União devem respeito ao direito adquirido, de modo que o dispositivo constitucional em referência (art. 5º, inciso XXXVI), deve ser lido da seguinte forma: a lei, a decisão judicial ou o ato administrativo não prejudicarão o direito adquirido[27].

Nesse mesmo contexto, outra discussão surgiu na doutrina no que pertine às espécies objeto de alcance do inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal. Doutrinadores há que, fazendo distinção entre leis de cunho privado e de cunho público, defendem que só haveria direito adquirido frente às primeiras, porquanto as últimas, por consubstanciarem leis de interesse público e/ou coletivo, não poderiam se curvar aos interesses privados de um indivíduo que possuísse direito adquirido. Prevalece, contudo, em linhas gerais, que, por não ter feito qualquer distinção, o dispositivo constitucional consagra o direito adquirido tanto frente às leis de cunho privado quanto frente às leis de cunho público. É essa, inclusive, a posição do STF[28].

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Há quem ainda defenda que, mesmo com a existência de direito adquirido, este poderia ser relativizado, numa ponderação axiológica, caso sobreviessem razões de interesse público que justificasse. Essa é a posição de Daniel Sarmento, ao advogar a tese que o direito adquirido, assim como os outros direitos consagrados no ordenamento jurídico, não é absoluto[29].

Tem-se, portanto, pelo exposto, que o direito adquirido guarda relação primordialmente com a consolidação de situações no tempo e com a incorporação definitiva do direito ao patrimônio do titular. É o que se observa dos julgados do STF sobre o assunto, mormente quando menciona que “a lei nova não pode revogar vantagem pessoal já incorporada ao patrimônio do servidor, sob pena de ofensa ao direito adquirido”[30], quando aduz ter havido “incorporação segundo a lei do tempo”[31] ou, ainda, quando pacifica seu entendimento no sentido de que inexiste direito adquirido a regime jurídico[32], justamente por não haver incorporação.

A discussão surge, às vezes, sobre o momento em que se dá a incorporação ao patrimônio jurídico do titular do direito. No caso da aposentadoria, por exemplo, o STF também possui posição pacífica no sentido que a incorporação ao patrimônio do titular já ocorre com o preenchimento dos requisitos para tanto, e não só com a formalização do pedido de aposentadoria. Basta, então, o preenchimento dos requisitos[33].

Tecidas essas considerações sobre o direito adquirido, vê-se que ele realmente guarda relação com a consolidação de situações no tempo e com a incorporação definitiva do direito ao patrimônio do titular, impedindo que o Estado possa suprimir tal direito do administrado.


5. Direito Adquirido e os autorizados ao uso de radiofrequência.

Tecidas as considerações acima sobre a autorização de uso de radiofrequência e sobre o direito adquirido, passa-se a estudá-las em conjunto. Deve-se analisar, precisamente, os contornos abstratos do direito adquirido em cotejo a autorização de uso do espectro.

Na verdade, o tema necessita ser desmembrado em duas vertentes, quais sejam: (i) eventual direito adquirido ao término do prazo estabelecido para o uso do espectro; e (ii) eventual direito adquirido à manutenção da destinação da faixa de radiofrequência durante o prazo da autorização de uso da radiofrequência.

5.1.Inexistência de direito adquirido ao término do prazo da autorização de uso de radiofrequência.

Como já dito alhures, a autorização de uso de radiofrequência é concedida por prazo determinado. Não que a Administração assim escolha. A existência de prazo determinado para o uso do espectro é imposição legal (art. 163, § 1º, da LGT). Além disso, comporta altos investimentos, tendo feição de contrato e formalizado por meio da celebração, entre particular e Administração, de Termo de Autorização de Uso de Radiofrequência.

A questão que se põe, então, é saber se há direito adquirido do particular de usar o espectro durante todo esse prazo. É saber se, mesmo diante do advento de novas razões de interesse público devidamente comprovadas, ficaria a Administração Pública impedida de reaver o bem para lhe dar nova destinação.

É preciso, primeiramente, fazer uma distinção entre situações consolidadas no tempo e direitos advindos da celebração de contratos. Na primeira hipótese, o direito já está consumado, devidamente integrado no patrimônio do titular, não havendo como desfazê-lo. Não depende mais de faciere da Administração. Esta já produziu todos os atos necessários à incorporação do direito ao patrimônio do titular. A relação entre o particular e o Estado decorre da relação usual existente entre administrado e Administração, ou seja, entre o administrado e o Estado enquanto ente simultaneamente representante e organizador da sociedade.

Na segunda hipótese, os direitos são decorrentes unicamente de um contrato celebrado entre o particular e a Administração. Ainda há prestações a serem cumpridas por ambas as partes. No caso em comento, cabe à Administração permitir o uso do bem, não opondo obstáculos e, até mesmo, impedindo que os obstáculos surjam[34]. A relação, portanto, é contratual ou específica. Não decorre, pois, da genérica relação entre administrado e Administração.

Na verdade, situações consolidadas também podem surgir de relações específicas, como ocorre no caso de servidores públicos e Administração. O fato é que nesses casos – e a distinção que se quer enfatizar reside aqui – todos os requisitos já foram preenchidos. A Administração já praticou todos os atos para consolidar a situação do administrado e incorporar determinado direito ao seu patrimônio.

No caso dos contratos celebrados com a Administração, outra observação merece ser feita: inexistem contratos por prazo indeterminado no âmbito da Administração Pública. O que existem são atos precários conferindo alguns direitos por prazo indeterminado (como ocorre, por exemplo, com a autorização para porte de arma ou com a tradicional autorização para uso de bem público).

Assim, ou a precariedade dos atos/contratos por prazo indeterminado impede a formação do direito adquirido ou a estabilidade do prazo determinado dos atos/contratos assim firmados deve ser respeitada apenas durante esse tempo.

Ocorre que o Direito não está inserido no mundo do ser. Neste mundo, “A é B”. O Direito, como ciência das normas, faz parte do mundo do dever-ser, segundo o qual “A deve ser B”. Assim, há possibilidade de A não ser B, apesar de dever sê-lo. Para o caso de não sê-lo, por sua vez, deve haver sanção pelo descumprimento da norma.

Quando se estudam os contratos, compactua-se a premissa de que ele deve ser cumprido em todos os seus termos. Ocorre que, havendo descumprimento, impõe-se a aplicação de alguma sanção e/ou consequência. Não há direito adquirido da parte em ver o contrato cumprido pela outra parte. O que existe é o direito de se ver ressarcido em caso de prejuízo provocado pelo ato da outra parte. Como já dito alhures, o direito ao cumprimento do contrato converte-se em perdas e danos, se estes existirem.

Sobre esse ponto, vale registrar que, por óbvio, não se tolera que a Administração descumpra seus contratos, devendo, portanto, apresentar motivos justos para tanto. Em outras palavras, só se admite o descumprimento do pactuado se existirem razões de interesse público que justifiquem tal medida.

Dessa forma, caso existam razões de interesse publico que assim exijam, é possível que a Administração Pública retome o uso do bem público – in casu, da faixa de radiofrequência – antes do prazo estipulado no Termo de Autorização.

Ora, a destinação de um bem público deve sempre atender ao interesse público, cabendo ao Administrador garantir, por meio de constante acompanhamento, que assim o seja. Até os bens privados têm que cumprir a sua função social.

O princípio da supremacia do interesse público impõe ao administrado, dentro dos limites legais, sua sujeição aos interesses da coletividade. É com base nessa premissa, por exemplo, que o Estado desapropria, suplantando o antes absoluto direito de propriedade, e impõe restrições às atividades individuais no exercício do seu poder de polícia. Veja-se, a respeito a lição de José dos Santos Carvalho Filho:

Se é evidente que o sistema jurídico assegura aos particulares garantias contra o Estado em certos tipos de relação jurídica, é mais evidente ainda que, como regra, deva respeitar-se o interesse coletivo quando em confronto com o interesse particular. A existência de direitos fundamentais não exclui a densidade do princípio. Este é, na verdade, o corolário natural do regime democrático, calcado, como por todos sabido, na preponderância das maiorias[35].

Merece atenção, nessa esteira, a questão da desapropriação. Embora o tema remeta mentalmente aos bens imóveis, é preciso deixar claro que são passíveis de desapropriação quaisquer bens, móveis ou imóveis, e até mesmo direitos, desde que justificadamente úteis ao interesse público, entendendo-se utilidade em sentido amplo, ou seja, abarcando todas as formas de desapropriação (por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social)[36].

Perceba-se que a desapropriação não decorre necessariamente de descumprimentos de obrigações por parte do particular. A desapropriação como espécie de sanção é a exceção, como ocorre, por exemplo, quando a propriedade deixa de cumprir sua função social (desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária)[37].

Assim, mesmo que o particular esteja regularmente fazendo uso da propriedade de seu bem, ainda assim, em prol do interesse público, o ordenamento jurídico permite que haja a desapropriação. Esta, aliás, consubstancia intervenção supressiva (e não meramente restritiva) da propriedade. Por meio dela, o particular perde a propriedade em favor do Estado.

Ora, se um bem privado pode ser desapropriado em favor do Estado para atender ao interesse público, quanto mais o direito de uso de um bem público. Explica-se: quando se permite o uso de um bem público exclusivamente por um particular, a titularidade do bem não lhe é transferida. Ao contrário, a titularidade do bem público, embora em uso por particular, permanece com o Estado, seu proprietário. O que o particular detém é apenas o direito de uso do bem público, e não sua propriedade.

Infere-se, portanto, que o particular não tem direito adquirido a usar o bem público até o término de sua autorização. O que ele tem é direito de usá-lo até o final do prazo. Possui, enfim, direito não adquirido. É direito, mas não direito adquirido. É o mesmo direito que qualquer particular tem de manter consigo a propriedade de seu determinado bem ou de ver cumprido, pela outra parte, determinado contrato. Tem direito, mas não frente a razões de interesse público comprovadas.

Essa distinção é fundamental, pois ter direito não se confunde com ter direito adquirido. Neste último caso, o direito do particular impede ações do Estado. Já no caso de se ter direito não adquirido o Estado pode agir em prol do interesse público, promovendo o ressarcimento dos prejuízos comprovadamente sofridos decorrentes de sua ação.

Ademais, na linha do exposto, sobrevindo razões de interesse público, o próprio Regulamento de Uso do Espectro de Radiofrequências consagra essa hipótese de extinção da autorização de uso da radiofrequência:

Art. 61. A autorização de uso de radiofreqüências extinguir-se-á:

(...)

IV. por interesse público, a juízo da Agência;

E o art. 62 afasta, inclusive, o direito de indenização em razão da extinção da autorização antes do término do prazo:

Art. 62. A extinção da outorga de autorização de uso de radiofreqüências, antes do prazo estipulado, não ensejará, em qualquer hipótese, direito à indenização ao interessado

Vale mencionar, por fim, que mesmo que exista eventual indenização decorrente de eventuais prejuízos comprovados, o fato é que inexiste direito adquirido, que impossibilitaria a ação do Estado. Aliás, o pagamento de indenização afasta a violação de eventual direito adquirido. Esse foi o entendimento do STF, ao julgar caso que envolvia o Estatuto do Desarmamento[38].

Breves considerações sobre a questão da indenização, embora não seja o tema do trabalho, serão tecidas ao final do tópico seguinte.

5.2.Inexistência de direito adquirido à manutenção da destinação da faixa de radiofrequência.

Um segundo desafio diz respeito a saber se há direito adquirido dos autorizados frente a eventuais mudanças de destinação da faixa de radiofrequência.

Para iniciar o tema, interessante lembrar que a Anatel, por força do art. 158 da LGT, deve manter plano com a atribuição, distribuição e destinação de radiofrequências, e detalhamento necessário ao uso das radiofrequências associadas aos diversos serviços e atividades de telecomunicações, atendidas suas necessidades específicas e as de suas expansões.

O Regulamento de Uso do Espectro de Radiofrequência define a destinação de radiofrequência como a inscrição de um ou mais sistemas ou serviços de telecomunicações – segundo classificação da Agência – no plano de destinação de faixas de radiofreqüências editado pela Agência, que vincula a exploração desses serviços à utilização de determinadas faixas de radiofreqüências, sem contrariar a atribuição estabelecida.[39]

Em suma, a Agência, por meio de atos normativos (resoluções), destina determinadas faixas de radiofrequência a determinado(s) serviço(s)[40]. Assim, as faixas ou subfaixas só podem ser usadas para a prestação daquele(s) serviço(s) específico(s) para as quais foram destinadas. De fato, o § 2º do art. 18 do Regulamento de Uso do Espectro de Radiofrequências aduz que, havendo destinação de faixas de radiofrequências a determinados serviços de telecomunicações, o direito de uso de radiofreqüências, faixa ou canal de radiofrequências só poderá ser outorgado às exploradoras destes mesmos serviços.

A definição dessa destinação é consubstanciada por uma decisão discricionária da Anatel, considerando as diversas razões de interesse público envolvidas. O Regulamento de Uso do Espectro de Radiofrequências arrola, inclusive, em seu art. 9º, objetivos a serem levados em conta quando da elaboração do plano de atribuição, destinação e distribuição das faixas de radiofrequências, tais como: (i) emprego racional, econômico e eficiente de radiofrequências, (ii) evitar interferências prejudiciais; (iii) viabilizar o surgimento de novos serviços e aplicações; e (iv) promover a justa competição no setor de telecomunicações.

Vê-se que, pelos critérios a serem empregados para a definição da destinação, podem surgir razões de interesse público que imponham à Anatel a mudança de destinações previamente definidas. Na verdade, a avaliação de tais critérios certamente muda ao longo do tempo, o que é da essência das ações regulatórias. Num dia determinada ação faz-se necessária e, no dia seguinte, pode não mais fazer sentido, a depender do novo contexto em que se insere, sobretudo no mundo das telecomunicações, de constantes e rápidas mutações, influenciadas na maioria das vezes pelo avanço da tecnologia.

A necessidade de viabilizar o surgimento de novos serviços e aplicações bem ilustra essa constante transformação do setor, pois a destinação certamente deve se adequar ao novo, às novas tecnologias, o que fatalmente implica a necessidade de modificar as destinações definidas no passado.

Destarte, é de inferir que não pode a Administração engessar suas ações regulatórias em virtude de suposto direito adquirido do autorizado de ver aquela destinação eternamente (ou pelo menos durante o prazo de sua autorização) estática, sem quaisquer alterações. É óbvio que a Administração pode modificar a destinação das faixas de radiofrequência, sobretudo porque o uso do espectro deve ser racional e adequado em cada contexto da história, ou seja, pode-se dizer que a própria definição da destinação de uma faixa é uma decisão de momento, no sentido de que precisa ser constantemente revista com o fito de estar sempre atendendo ao interesse púbico. A possibilidade de modificação da destinação das faixas de radiofrequência faz parte, enfim, da essência da regulação e da administração do espectro.

O art. 5º do Regulamento de Uso do Espectro de Radiofrequências permite expressamente essa modificação, como se observa:

Art. 5º A Agência, no exercício da função de administração do uso de radiofreqüências, pode modificar motivadamente a atribuição, destinação e distribuição de radiofreqüências ou faixas de radiofreqüências; bem como suas consignações e autorizações; e as respectivas condições de funcionamento da estação.

Parágrafo único. A Agência deve fixar prazo adequado e razoável para a efetivação da mudança prevista no caput, observado o disposto no art. 15 deste Regulamento.

Duas exigências são feitas pela regulamentação: (i) a modificação deve ser devidamente motivada, ou seja, não se admite que se dê por mera arbitrariedade, sendo necessário que o Poder Público apresente as razões técnicas de interesse público que motivaram tal medida; e (ii) deve-se estabelecer um prazo razoável para a efetivação da modificação.

A própria regulamentação da Anatel já exclui a possibilidade de se falar em direito adquirido do autorizado à não modificação da destinação das faixas de radiofrequências. De fato, a destinação é decisão regulatória discricionária da Administração, que obrigatoriamente deve se adequar aos novos contextos que se apresentem.

Indo mais além, a destinação de uma faixa é definida, como já dito, por meio de ato normativo da Agência, submetendo-se, inclusive, ao procedimento da consulta pública. Representa, pois, o regime jurídico daquela faixa.

Dessa forma, admitir a existência de direito adquirido por parte do autorizado seria o mesmo que admitir a existência de direito adquirido frente a regime jurídico, o que já foi rechaçado pelo próprio STF[41]. Não é possível que um suposto direito do administrado impeça o Poder Público de modificar, motivadamente e por razões de interesse público, regras abstratas que dizem respeito a determinada faixa.

Não há de prevalecer, ainda, o argumento de que as regras têm efeitos concretos para os autorizados. Ora, as regras de destinação em si são, sem sombra de dúvidas, abstratas, aplicáveis a todos que um dia vão fazer uso da faixa de radiofrequência. É óbvio, contudo, que elas têm efeitos concretos para os autorizados. Ocorre que toda regra abstrata é feita justamente para incidir sobre os fatos e atos concretos do mundo empírico. Assim, as regras de destinação realmente consubstanciam regime jurídico da faixa, ao qual os autorizados não possuem direito adquirido.

Por fim, vale dizer que eventual indenização ao administrado, se houver, guarda relação umbilical com a comprovação de prejuízo diretamente decorrente da medida adotada pela Administração Pública. Assim, observadas as exigências da regulamentação, só há que se falar em indenização se o administrado comprovar prejuízo efetivo diretamente causado pelo Poder Público.

Sabe-se, ainda, que o prazo da autorização de uso de radiofrequência pode ser prorrogado uma única vez por igual período. Nesse contexto, de bom alvitre registrar que eventual indenização não deve considerar o período da prorrogação, uma vez que esta representa mera expectativa de direito do autorizado.

Sobre o autor
Paulo Firmeza Soares

Procurador Federal em Brasília (DF). Pós-graduado em Regulação de Telecomunicações. Pós-graduando em Direito Administrativo e em Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Paulo Firmeza. A mudança de destinação de radiofrequência e o instituto do direito adquirido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3408, 30 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22916. Acesso em: 2 nov. 2024.

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