5 A concessão de tutela de urgência POR JUIZ ABSOLUTAMENTE INCOMPETENTE – POSSIBILIDADE?
Percorridos os princípios constitucionais processuais e os institutos da competência e da tutela antecipada, passa-se ao debate sobre o tema dessa monografia, qual seja, a possibilidade (ou não) de concessão de tutela de urgência por juiz absolutamente incompetente e a necessidade de se conferir um novo enfoque sobre as regras de competência.
5.1 Posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais
Renomada doutrina[4] processualista brasileira entende que os atos decisórios praticados por juiz absolutamente incompetente são nulos.
Nesse sentido, ensina Fux
(...) o desvio na incompetência absoluta é tão grave que o próprio juiz de ofício e, portanto, independentemente de provocação da parte, pode denunciar a sua incompetência absoluta, devendo a parte alegá-la na primeira oportunidade em que se manifesta nos autos, mercê de o vício poder ser suscitado em qualquer tempo e grau de jurisdição antes de transitar em julgado a decisão. Transitada esta, o vício ainda pode figurar como causa petendi de ação rescisória; por isso, os atos decisórios do juízo absolutamente incompetente são nulos (art. 113, § 2º c.c art. 485, inciso II, do CPC), como, v.g., o que defere a liminar antecipatória. (BRASIL, 2009). Grifamos.
Em sentido contrário, Alvim (1994) esclarece que as medidas urgentes podem ser ordenadas por qualquer juiz, podendo-se passar por cima, aliás, de regras de competência absoluta.
Na mesma linha Lacerda (2006) pontifica que a liminar dada por juiz incompetente deve prevalecer até que o juiz competente se pronuncie a respeito, de acordo com o princípio quando est periculum in mora incompetência non aftenditur. E acrescenta que o que vale para a exceção de incompetência relativa também se aplica à arguição de incompetência absoluta por igual a imediata suspensão do feito.
Embora a incompetência absoluta cause a nulidade do ato decisório, e não a mera anulabilidade como ocorre na relativa, certo é que o vício deve ser judicialmente declarado, nos termos o art. 113, § 2º, do CPC, pois nosso direito repele a desconstituição espontânea e automática do ato nulo. Por isso, os efeitos já produzidos permanecem até que o juiz competente se pronuncie para manter ou revogar a cautelar inicial. Não seria justo que a tutela do direito ou do interesse da parte ficasse sufocada pelo tecnicismo legal ou jurisprudencial, na busca do acerto sobre competência, muitas vezes sugerido só após laborioso conflito.
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o tema:
PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA JULGADO ORIGINARIAMENTE POR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DECISÃO DENEGATÓRIA. RECURSO ESPECIAL. ERRO GROSSEIRO. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF.
1. Em obséquio ao art. 105, II, "b", da Carta Magna, a interposição de recurso especial pelo impetrante contra acórdão denegatório de mandado de segurança julgado originariamente por Tribunal de Justiça constitui erro grosseiro, não sendo aplicável o princípio da fungibilidade. Precedentes.
2. O art. 113, § 2º, do CPC, não tem carga normativa suficiente para infirmar as razões alinhavadas pelo aresto recorrido, que reconheceu a incompetência absoluta do juízo, mas manteve o deferimento de liminar em face da urgência até manifestação do juiz competente. Incidência da Súmula 284/STF.
3. O dispositivo não trata, e também não impossibilita o juiz, ainda que absolutamente incompetente, de deferir medidas de urgência. A norma em destaque, por força dos princípios da economia processual, da instrumentalidade das formas e do aproveitamento dos atos processuais, somente determina que, reconhecendo-se a incompetência do juízo, os atos decisórios serão nulos, devendo ser aproveitado todo e qualquer ato de conteúdo não decisório, evitando-se com isso a necessidade de repetição. Precedente: AgREsp 1.022.375/PR, de minha relatoria, DJe 01º.07.11.
4. Recurso especial do particular não conhecido. Recurso especial do Estado do Espírito Santo conhecido em parte e, nesta parte, provido tão somente para afastar a multa aplicada com base no art. 538, parágrafo único, do CPC. (BRASIL, 2011). Grifamos.
O relator do citado julgado, Ministro Castro Meira, esclareceu em seu voto que o dispositivo não trata e também não impede, a possibilidade de o juiz, ainda que absolutamente incompetente, deferir medidas de urgência. A norma em destaque, por força dos princípios da economia processual, da instrumentalidade das formas e do aproveitamento dos atos processuais, apenas determina que, reconhecendo-se a incompetência do juízo, os atos decisórios serão nulos, devendo ser aproveitado todo e qualquer ato de conteúdo não decisório, evitando-se com isso a necessidade de repetição.
Aduz, ainda, que o art. 113, § 2º, do CPC é uma manifestação legislativa do princípio da economia processual, pois impõe que apenas os atos decisórios sejam anulados quando reconhecida a incompetência do juízo. Mas não impede o juízo, ainda que incompetente, de deferir medidas de urgência, com o objetivo de evitar o perecimento do direito controvertido.
É esse também o entendimento do Tribunal de Justiça do Espírito Santo:
Em se tratando de tutela de urgência, a doutrina admite a possibilidade de o juiz incompetente (mesmo ciente desse vício) conceder medida liminar e, em seguida, remeter os autos ao órgão judiciário competente (art. 113, § 2º, CPC), a fim de salvaguardar o direito material subjacente, em nome da efetividade da tutela jurisdicional. Cabe ao Estado assegurar, através dos recursos que se fizerem necessários ao tratamento da moléstia de que padece a parte, o direito à vida, permitindo aliviar o sofrimento e a dor de enfermidade reversível ou irreversível, garantindo ao cidadão o direito à sobrevivência (ESPÍRITO SANTO, 2009). Grifamos.
Ainda, relembra Medina (2011), que o processo fica vinculado às garantias mínimas decorrentes do princípio do devido processo legal, mesmo que se desenvolva perante um juízo incompetente. Assim, se é certo que a lei não pode excluir da apreciação do poder judiciário a ameaça a direito (art. 5º, inciso XXXV, da CR/88), deve ser considerada contrária a este princípio orientação tendente a impedir que juízo incompetente conceda liminar para coibir o ocorrência de lesão a direito.
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região decidiu que
(...) embora caiba a concessão de liminar por juízo absolutamente incompetente, tal ocorre somente em caráter excepcional, apenas quando material e juridicamente irremediável e irreversível o dano, cujas proporções sejam relevantes, de modo a justificar a proteção como forma de impedir o perecimento do direito. (SÃO PAULO, 2005). Grifamos.
Medina (2011) prossegue aduzindo que o juiz, ao se deparar com tal situação, deve, presentes os requisitos necessários à concessão da liminar, outorgar a medida, remetendo em seguida, os autos ao juízo competente.
O jurista avança dizendo que considerando que as hipóteses de incompetência absoluta devem ser reconhecidas de ofício pelo juiz, não podem as partes ser punidas nos casos em que o vício não é corrigido antes de proferida a decisão. De qualquer forma, terá havido prestação jurisdicional, ainda que prestada por órgão incompetente. Note-se que as regras relativas à atribuição de competência aos órgãos jurisdicionais existem para se aperfeiçoar a prestação do serviço jurisdicional, e os requisitos processuais existem para propiciar a obtenção, do melhor modo possível, da solução da lide.
De acordo com o art. 113, § 2º, do CPC, reconhecida a incompetência absoluta, os atos decisórios serão nulos. Para Medina (2011) não parece correto entender, com fundamento nessa regra processual, que, reconhecida a nulidade, devem ser automaticamente cassados os efeitos da decisão judicial. Nos casos em que o vício resume-se à incompetência do juízo do qual emanou a decisão judicial, devem os efeitos (substanciais e processuais) ser conservados, até que outra decisão seja proferida pelo juízo competente.
Dinamarco (2005) destaca que a declaração de incompetência não determina a extinção do processo, mas sua transferência ao órgão concretamente competente, que pertença à mesma justiça ou a outra, quer se situe no mesmo ou diferente grau de jurisdição, quer se trata de incompetência absoluta ou relativa (art. 113, § 2º e art. 311, do CPC). Como o juiz exerce a jurisdição mesmo nos casos em que seja incompetente, a declaração de sua incompetência por ele mesmo (de ofício ou por provocação) ou pelo órgão superior (recurso, conflito de competência) não invalida os atos não decisórios que haja realizado (provas etc.) nem o procedimento como um todo (art. 113, § 2º, do CPC).
5.2 O instituto da translatio iudicii e o novo projeto de CPC
Como visto, a incompetência absoluta, posto fundada em causas de interesse público, textualmente, quando acolhida, nulifica os atos decisórios (art. 113, § 2º, do CPC). No entanto, o sistema de nulidades do Código de Processo Civil, informado pelos princípios da legalidade, instrumentalidade e prejuízo, impede a decretação da nulificação do processo sem que haja cominação expressa.
Com efeito, à luz do princípio da efetividade, a doutrina moderna preconiza a aplicação do princípio da translatio iudicii com o aproveitamento dos atos de definição e satisfação de direitos, quer provenham de órgãos judiciais incompetentes, quer provenham do contencioso administrativo nos países que o adotam. (BRASIL. STJ. EDcl no REsp. 355.099/PR, Rel. Ministra Denise Arruda, 2008).
Sobre a translatio iudicii, destaca Greco (2008), que o instituto poderia ser definido como a continuidade do processo iniciado no juízo incompetente (ou sem jurisdição, para os italianos) perante o juízo próprio, com a conservação de todos os efeitos produzidos pelos atos processuais praticados na primeira fase.
O citado jurista preleciona que a doutrina italiana concluiu que a incompetência da justiça comum em face da justiça administrativa ou desta em relação àquela não deve mais determinar a extinção dos processos devidamente instaurados perante uma delas, mas a sua remessa e continuação perante a outra, numa mesma relação processual, preservados os efeitos substanciais e processuais produzidos perante o juízo originário, que veio a ser declarado incompetente.
O avanço dado pelos tribunais italianos somente tornou-se possível devido à compreensão que conferiram ao direito de acesso à justiça, universalmente reconhecido. E, por isso, integrando ele também o rol dos direitos fundamentais proclamados solenemente pela Constituição da República de 1988 (art. 5º, inciso XXXV), as razões desenvolvidas podem auxiliar o processualista brasileiro no estudo e no aperfeiçoamento de situações em que, à falta de um pressuposto processual – incompetência ou outro – o nosso sistema prevê a continuidade do processo no novo juízo, sem definir, entretanto, com clareza o que se preserva e o que se despreza do processo original, ora simplesmente determina a extinção do processo, sujeitando o autor aos riscos de uma nova demanda originária que pode estar definitivamente impossibilitada, ou na qual todos os atos anteriores deverão ser renovados, com perda de tempo, repetição de despesas e resultados nem sempre equivalentes aos já alcançados no processo primitivo. (GRECO, 2008)
A continuação do processo, após a declaração de incompetência, perante o novo juiz, foi adotada no código italiano através do instituto da “reassunção da causa” (artigo 50 do Código de Processo Civil), havendo norma expressa que impedia a sua utilização na concorrência entre a jurisdição comum e a administrativa. No direito brasileiro, nessa hipótese, também há norma expressa de preservação dos atos do processo, exceto os de caráter decisório (CPC, art. 113, § 2º). Essas regras são consequências da unidade da jurisdição. (GRECO, 2008)
Greco (2008) relembra que um dos efeitos mais nefastos da extinção do processo por inadequação do procedimento, e não a sua continuidade através do novo procedimento, é a caducidade das liminares ou cautelares (art. 808, inciso III, do CPC).
Dessa forma, adotando-se a reassunção do processo, esse problema ficará resolvido. Para Greco, no caso de alteração do procedimento perante o mesmo juízo, a eficácia da tutela da urgência estará preservada até que sobrevenha decisão final da causa ou até que ela seja revista no curso do novo procedimento. (GRECO, 2008)
Já no caso da translatio iudicii, cumpre distinguir, de um lado, se se trata de medida de urgência que tutele apenas o processo ou diretamente o próprio direito material e se a competência absoluta violada diz respeito apenas à apreciação da relação jurídica de direito material. Na cautelar puramente processual, não satisfativa, se a incompetência do juízo de origem era restrita ao direito material controvertido, a continuidade será automática, em decorrência da preservação dos efeitos processuais da primeira fase do processo, sem prejuízo da possibilidade de seu reexame pelo novo juízo. Igualmente, se a cautelar meramente processual foi concedida em procedimento posteriormente considerado inadequado ou em juízo incompetente para esse procedimento, preservará os seus efeitos na reassunção do processo, salvo se com esta for manifestamente incompatível e se comprovada a má-fé do uso abusivo do procedimento inadequado ou da postulação perante juízo incompetente. (GRECO, 2008)
Na hipótese de tutela de urgência satisfativa, cautelar ou antecipatória, concedida por juiz incompetente apenas quanto ao direito material, a nulidade atingirá também essa decisão e, ainda que ratificada no novo juízo, os seus efeitos válidos somente poderão produzir-se a partir desse momento. (GRECO, 2008)
Portanto, a nulidade dos atos decisórios, a que se alude o § 2º do art. 113 do CPC, se refere apenas aos atos decisórios para os quais o juízo de origem era incompetente. Se a incompetência se restringia apenas à apreciação da matéria objeto da relação jurídica substancial, somente os atos decisórios provisórios ou definitivos que versaram sobre essa matéria é que serão nulos e deverão ser renovados no juízo competente. Em princípio, todas as decisões sobre questões processuais e sobre matéria probatória serão preservadas, salvo se a incompetência atingir o próprio procedimento e os atos já praticados não puderem ser aproveitados no procedimento adequado, por serem com ele incompatíveis. No despacho em que determinar a continuidade do processo, em obediência ao art. 249, do CPC, o juiz declarará os atos atingidos pela inicial incompetência ou inadequação do procedimento. (GRECO, 2008)
A continuidade do processo, no caso de incompetência, deverá ser determinada de ofício pelo juízo competente, por força do princípio do impulso processual oficial, declarando nesse momento os atos que devam ser renovados em razão dessa nulidade. (GRECO, 2008)
A preservação dos efeitos processuais e substanciais do processo primitivo implica em projeção ao processo subsequente dos efeitos das preclusões já consumadas e dos direitos subjetivos processuais anteriormente adquiridos, bem como resguarda na fase sucessiva as faculdades decorrentes de atos ou fases do processo primitivo, ainda que não previstas no procedimento adequado, que deverá respeitá-las. Mas essa proteção do direito adquirido ou da confiança legítima é decorrente da presunção de boa-fé de que o erro da competência ou de procedimento seja escusável. (GRECO, 2008)
Portanto, com a reassunção do processo, em qualquer caso, não mais ocorrerá a caducidade de liminares e cautelares preconizada no art. 808, inciso III, do CPC, salvo se diretamente contaminadas pelo vício do processo primitivo e obtidas através do recurso abusivo ao juízo incompetente ou ao procedimento inadequado. (GRECO, 2008)
Nesse sentido já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. ART. 535 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. EFEITOS PROCESSUAIS. APROVEITAMENTO DOS ATOS. TRANSLATIO IUDICII.
1. A incompetência territorial do juízo não implica a anulação dos atos decisórios, porquanto ditada por interesse particular, evidenciado quando há pacto de foro de eleição.
2. A incompetência absoluta, posto fundada em causas de interesse público, textualmente, quando acolhida, nulifica os atos decisórios (artigo 113, § 2.º do Código de Processo Civil).
3. Deveras, o sistema de nulidades do Código de Processo Civil, informado pelos princípios da legalidade, instrumentalidade e prejuízo, impede a decretação da nulificação do processo sem que haja cominação expressa.
4. Deveras, à luz do princípio da efetividade, a doutrina hodierna preconiza a aplicação do princípio da translatio iudicii com o aproveitamento dos atos de definição e satisfação de direitos, quer provenham de órgão judiciais incompetentes, quer provenham do contencioso administrativo nos países que o adotam.
5. À luz dos princípios da efetividade, e da duração razoável dos processos dever ser interpretada a cláusula de remessa ao juízo competente, quando acolhida a exceção, somente nas hipóteses em que ainda não se exauriu a tutela jurisdicional.
6. In casu, há julgamento de única instância, reconhecendo a manutenção dos autos onde se encontram, em prestígio à análise pós-positivista e principiológica da regra do artigo 114 do CPC.
7. Embargos de declaração acolhidos, acompanhando a divergência.
(BRASIL, 2008). Grifamos.
Ademais, nos casos em que o vício se resume à incompetência do juízo do qual emanou a decisão judicial, devem os efeitos (substanciais e processuais) ser conservados, até que outra decisão seja proferida pelo juiz competente. Nesse sentido, o Projeto de Lei nº. 166/2010 (novo CPC) dispõe que, reconhecida a incompetência absoluta, “conservar-se-ão os efeitos das decisões proferidas pelo juízo incompetente até que outra seja proferida, se for o caso, pelo juiz competente”. (art. 64, § 3º, do Projeto de Lei nº. 166/2010). (MEDINA, 2011).
Greco (2008) conclui aduzindo que a inexistência das regras específicas disciplinadoras dessas situações não é óbice à busca desses novos caminhos, que encontra suporte em princípios e valores fundamentais do estado de direito contemporâneo e do ordenamento jurídico brasileiro que se respaldam em regras de direito positivo, que impede sejam interpretadas à luz desses princípios.