3. A OPOSIÇÃO E O PROJETO DE LEI DO SENADO N. 166, DE 2010
Dinamarco conceitua a oposição como “a demanda mediante a qual terceiro deduz em juízo pretensão incompatível com os interesses conflitantes do autor e réu de um processo pendente” (2009, p. 40). Desta forma, se a relevância está na incompatibilidade das pretensões do terceiro e as das partes originárias, não vemos problemas em processar uma demanda não intitulada como “oposição”, proposta contra as partes da outra ação, com o objeto restrito ao disputado e antes da sentença, como se oposição fosse.
Efetivamente, as duas demandas seriam conexas (por prejudicialidade)[19] e ensejariam, além da distribuição por dependência (art. 253), a reunião dos Processos para que as decisões (decisão) ocorressem simultaneamente, com a finalidade de evitar o pronunciamento de decisões contraditórias, providência que o magistrado pode, inclusive, adotar de ofício, conforme autoriza expressamente o art. 105. Tal atitude não prejudicaria as partes, já que não há invalidade processual sem prejuízo (pas de nullité sans grief), concretizaria diversos princípios constitucionais do processo, e, em última instância, estaria em sintonia com o combate à morosidade processual promovido pelo Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010, que dispõe sobre a reforma do Código de Processo Civil e proposições anexadas.[20]
Entretanto, tal Projeto de Lei, na ânsia por conferir celeridade à marcha processual, pretendeu eliminar incidentes variados, como a oposição. Para Fredie Didier Jr., não há maiores problemas técnicos ou teóricos em se retirar incidentes puramente processuais do Novo CPC, tais como a impugnação ao valor da causa e incompetência relativa, mas “os incidentes que existem em função do direito material, entretanto, não devem ser eliminados; podem e devem ser aprimorados” (2010). Este é o caso da oposição. Não há como não lamentar a sua supressão e a rejeição, pelo Senado Federal, da Emenda n. 129, de autoria do Senador Marconi Perillo – que propunha a inserção de tal modalidade no Projeto –, ainda mais com a frágil justificativa de que o “instituto é utilizado raramente, o que, portanto, não justifica a manutenção de um capítulo especifico no Código para tratar do tema”, nos termos do relatório da Comissão Temporária da Reforma do Código de Processo Civil (BRASIL, 2010). Ora, as intervenções de terceiros em geral eram pouco frequentes na Roma antiga e nem por isso o Direito romano, base do Direito português e brasileiro, excluiu a possibilidade de o terceiro defender seu interesse ou direito de forma específica, embora com escassez de regras (BUZAID, 1972, p. 273-285).[21] E mais: se na Alemanha e Itália, países de notória evolução no campo processual, Portugal, diversos países latino-americanos e tantos outros possuem normas específicas tratando da matéria,[22] por que não tratar no nosso Direito pátrio? Não há justificativa para tal medida.
Com efeito, é uma evidente contradição já que a oposição, tanto na modalidade interventiva quanto na autônoma, está em perfeita harmonia com os valores que orientam o Projeto de Lei do Senado n. 166/2010 e igualmente ao Projeto de Lei n. 8.046/2010, da Câmara. A oposição é um instrumento a serviço da economia processual e, pois, à duração razoável do processo, na medida em que concentra atos processuais (unificação da instrução e do julgamento), aproveita os já praticados, diminui a quantidade de processos e os valores despendidos pelas partes e pelo Estado com a manutenção da máquina judiciária.[23] Não é por outro motivo que a Associação dos Magistrados do Brasil (2010), convocada pela Comissão de Juristas do Senado Federal,[24] propôs a sua manutenção, afirmando que se trata de “ferramenta de aproveitamento e de concentração de atos processuais, alinhando-se, portanto, com os ideais do Novo CPC”. Propõe ainda, superando o disposto no regramento atual, que a “sua autuação deve se dar sempre em apenso aos autos da ação originária, independentemente da fase processual em que se encontre. A disparidade dos atuais artigos 59 e 60 deve ser uniformizada”.
3.1. A continuidade da oposição à revelia do legislador
Há uma manifesta distinção entre a situação que envolve o opoente e a que envolve um autor qualquer. O processo não é um fim em si mesmo, mas uma técnica a serviço do direito material, e o procedimento deve ser adequado à tutela de tal direito do opoente: a proteção imediata do alegado direito pessoal ou real do terceiro e aferição deste e das outras partes em conjunto, prevenindo as “projeções ultra partes” da sentença proferida,[25] tornar a coisa ou o direito litigioso desde logo, além de facilitar as defesas com a sentença única. Destarte, o opoente ou a parte originária vencedora se veria livre de outra batalha judicial e também do resíduo litigioso que poderia se derivar dele, de uma maneira mais célere e efetiva, e o Estado cumpriria a sua missão de eliminar o conflito do seio da sociedade de uma vez.
A vontade do legislador senatorial é no sentido de que “para veicular em juízo pretensão hoje contemplada na oposição, a parte poderá se valer de ação própria, que tramitará pelo procedimento comum, a ser dirigida contra os litigantes no outro processo, que hoje são denominados de opostos” (BRASIL, 2010). Mas esta não é a tutela adequada, nos termos aduzidos por Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart:
Seria possível, na situação em que seria cabível o oferecimento da oposição, ao “terceiro” opoente propor sua ação independentemente contra ambos os contendores da primeira relação processual. Ou, também, seria possível a ele aguardar a solução da primeira causa, propondo posteriormente ação contra o sujeito vitorioso na primeira demanda. Todavia, por razões de conveniência, e em prestígio à economia processual, a oposição é o meio mais adequado para a solução do conflito, permitindo que também essa pretensão do terceiro seja decidida no processo já instaurado. (2006, p. 187 grifo nosso).
Para arrematar, também o princípio ou postulado normativo da proporcionalidade recomenda a adoção e manutenção do processamento da oposição, que é adequado, necessário e proporcional em sentido estrito. Em apertada síntese, (a) adequado, porque promove o fim (dizer qual o direito que deve ser aplicado ao caso e executá-lo), (b) necessário, pois é o “mais adequado”, conforme anotaram Marinoni e Arenhart, ou seja, entre os meios adequados disponíveis é o que menos restringe e, por sua vez, o que mais promove os direitos das partes envolvidas, e é (c) proporcional em sentido estrito, porque o processamento especial da oposição sequer tem desvantagens em relação aos outros meios adequados e disponíveis.
Fredie Didier Jr. aduz que a oposição é um incidente fundado no direito material, que a sua retirada não acabará com a referida situação, não haverá regramento específico e alerta:
Sem o regulamento processual da oposição (aliás, produto de longa sedimentação histórica), as oposições que surgirem (como ações conexas, terão de ser reunidas à ação principal) serão processadas livremente,[26] sem as boas regras de economia que já existem (prazo comum de defesa, citação na pessoa dos advogados, vedação da oposição após sentença). O Judiciário será chamado a preencher essa lacuna (e não duvide de que as regras anteriores possivelmente sejam repristinadas pela jurisprudência). (2010, grifo nosso).
No curso do devido processo legislativo constitucional, já na Casa Revisora, a Câmara dos Deputados, o próprio Fredie Didier Jr. contribuiu para o relatório final, a cargo do Deputado Federal Sérgio Barradas Carneiro, do agora Projeto de Lei n. 8.046, de 2010. Com as Emendas propostas, a Oposição regressou ao texto do Novo CPC, e se permanecer, ganhará uma nova natureza jurídica, a de procedimento especial, e passará a ser tratada ao lado dos “embargos de terceiro”. O trâmite processual legislativo não está finalizado e a garantia de sua presença não está assegurada, porém se a saída se confirmar, certamente alguma lei posterior vai promover o seu retorno para nossa ordem jurídica.
Todavia, ainda que a oposição seja suprimida do rol das intervenções de terceiros no Novo CPC, ainda subsistirá expressamente no ordenamento jurídico pátrio por haver previsão constitucional da situação jurídica em que o ente federal será opoente[27] e a determinação da competência da Justiça Federal para julgar tal lide (art. 109, I, da CF). Assim, se o ente federal propuser uma ação nos moldes atuais da oposição, estará na posição de opoente e o processo deverá continuar sendo processado da forma que sempre foi pelo Judiciário, como veremos adiante.
A nossa Constituição, frise-se, trata da situação de "opoente" e não estabelece a necessidade da propositura de “oposição" pela pessoa jurídica de direito público federal. Desta forma, o magistrado estadual verificaria a presença dos, na expressão cunhada por Dinamarco (2009, p. 70-90), “pressupostos específicos da oposição”:[28] a qualidade de terceiro do opoente, a pretensão incompatível com a dos outros, a litispendência entre outros, litispendência em primeiro grau[29] e processo de conhecimento. Ou seja, certificaria que uma demanda foi instaurada pelo ente federal, que é um terceiro, que a sua pretensão deduzida é incompatível com a dos litigantes do outro processo, que ambas as ações têm natureza cognitiva e estão sendo processadas no juízo monocrático e, ao final, constatará que tal ente será um “opoente”, devendo promover o processamento aludido. Se não cumprir a interpretação e aplicação dada à norma constitucional, o procurador do ente certamente suscitará o conflito de competência. Por este motivo e por já estar consagrado na jurisprudência, além da previsão do emérito Didier Jr., pensamos que o tratamento específico dado à oposição vai subsistir ao menos neste caso.
A oposição, não podemos perder de vista, é a mesma ação que pode ser proposta após a sentença: são as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido.[30] A partir dessa observação, chegamos à conclusão que tais “pressupostos específicos” são necessários não para que a demanda exista, mas para que seja processada na forma dos arts. 59 e 60 e que este procedimento especial é o traço distintivo entre as duas. Os “pressupostos específicos” são, em verdade, condições que devem estar presentes para que se produza o efeito do processamento específico destinado ao caso concreto, que é mais intenso na oposição interventiva.
4. A OPOSIÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO FEDERAL EM PROCESSO PENDENTE NA JUSTIÇA ESTADUAL[31]
Dispõe o art. 106 da CF que são órgãos da Justiça Federal os Tribunais Regionais Federais e os Juízes Federais. A competência destes é a que será estudada. “Por estarem previstas na Constituição Federal, e não havendo em tal diploma legal norma modificadora de competência, nenhuma delas se aplicará às regras determinadoras da competência da Justiça Federal, o que revela a sua natureza absoluta” (NEVES, 2011, p. 137). Faremos um recorte e abordaremos especificamente o art. 109, I, da Constituição Federal de 1988, por ser o dispositivo no qual encontra-se justamente a regra de competência que abarca a oposição de pessoas jurídicas de direito público federal. A Constituição estabelece que os juízes federais têm competência para processar e julgar as causas em que a União, entidade autárquica (e equiparadas) ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes, ressalvadas as exceções das causas de falência, de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e Justiça do Trabalho.
Precisamente, não apenas as pessoas jurídicas de direito público federal se enquadram na situação trazida à baila. Essa é a regra constitucional. O art. 109, I, trata também das empresas públicas federais, que são pessoas jurídicas dotadas de natureza jurídica privada. O presente estudo engloba a oposição promovida pela Administração Pública direta, entes públicos da indireta e, embora não façamos referência a todo instante, as empresas públicas federais, mesmo que prevaleçam seus imediatos interesses privados no processo.[32]
Na outra extremidade, a competência da Justiça Estadual está também disposta na Constituição no art. 125, mas não expressamente. Ela delega aos Estados (e ao Distrito Federal) e seus respectivos Tribunais de Justiça a competência legislativa para a organização de suas Justiças. Desta forma, são as Constituições e as Leis de Organização Judiciária estaduais que tratam da competência da Justiça Estadual com minudência. As normas estaduais devem observar os princípios estabelecidos na Constituição Federal e não podem tratar de causas expressamente conferidas às outras Justiças ou Tribunais Superiores, além, por óbvio, das causas de competência internacional exclusiva, daí a afirmação de que a competência da Justiça Estadual é residual.
Como sempre que houver interesse jurídico ou econômico, nos termos do art. 5º, p.u., da Lei n. 9.469, de 1997, de pessoa de direito público federal ou se esta for parte da demanda, a causa será de competência da Justiça Federal, podemos afirmar que as causas que envolverem apenas pessoas, físicas ou jurídicas, particulares e seus interesses privados serão de competência da Justiça Estadual, ressalvados os casos de competência da Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral. No que toca à Justiça Militar, sempre terá um ente ou agente público em um dos pólos da relação jurídica processual.
Tendo em vista que as competências das Justiças arroladas na Constituição são absolutas e, por isso, não podem ser prorrogadas, abarcando causas que não estejam expressas ordinariamente, ou derrogadas, podemos, portanto, afirmar sem titubear que a competência da Justiça Estadual é igualmente absoluta, embora residual: sempre terá competência pra julgar processos que não são das outras Justiças, competência esta que não pode ser prorrogada ou derrogada.
Se, por acaso, a Constituição inovar no regramento de uma causa da Justiça Estadual e a transferir para outra Justiça, não haverá derrogação de competência, porque só há derrogação de competência de quem competência possui, pois ela consiste “na diminuição da competência do órgão que seria competente para a causa concretamente atraída àquele” (DINAMARCO, 2002a, p. 211). No caso, simplesmente a Justiça Estadual deixaria de ter competência para a causa, ou seja, não seria mais a competente para a causa concretamente atraída a ele. Como “a rigor, a derrogação incide diretamente sobre normas determinadoras e não sobre a competência em si mesma”, ensina Dinamarco (2002a, p. 573, grifo do autor), e a norma determinadora de competência estaria na Constituição, é nela que deveria atuar. Logo, se houver, por ex., uma causa tramitando na Justiça Estadual e ocorrer o aludido fenômeno constitucional, não teríamos derrogação, mas apenas a remessa dos autos para a Justiça competente em razão da atual incompetência absoluta do juízo estadual. Foi o que aconteceu com a EC n. 45/2004, quando, por ex., alargou a competência da Justiça do Trabalho, e é o que ocorre quando alteram a competência absoluta na forma do art. 87, segunda parte.
A Justiça Estadual tem, pois, em primeiro lugar competência originária para julgar as causas que envolverem apenas pessoas, físicas ou jurídicas, particulares e seus interesses igualmente particulares ou pessoas de direito público estadual. Ela não pode ser prorrogada para abranger causas de outras Justiças e estas não podem ser prorrogadas para incluir causas que não são de sua competência.
Entretanto, há casos em que juízes estaduais têm competência para julgar causas de competência da Justiça Federal e os recursos contra a decisão são interpostos perante o TRF, conforme art. 109, §3º, da CF, ou seja, se envolver causas previdenciárias e não houver sede de vara do juízo federal na comarca ou se houver autorização legal (legislação infraconstitucional) para outras causas diversas das previdenciárias. O magistrado estadual estaria investido de “jurisdição federal”.
Depreende-se, então, que as pessoas jurídicas de direito público federal devem demandar perante a Justiça Federal. E se demandarem na Justiça Estadual? A incompetência absoluta deve ser reconhecida pelo juiz, ex offício ou após provocação, e o processo deve ser remetido para a Justiça Federal. Entretanto, em relação à oposição há uma prática anômala, consagrada na prática forense, em que este preceito compulsório não se aplica: a propositura de oposição por pessoas de direito público federal em face de particulares (ou de particulares e pessoa jurídica de direito público estadual) em processo que tramita na Justiça Estadual. Neste caso, a demanda entre o ente federal e os particulares é remetida para a Justiça Federal, mas é também acompanhada da demanda que envolve apenas os particulares, de competência da Justiça Estadual, para serem ambas processadas e julgadas pela Justiça Federal.
Com as noções básicas e imprescindíveis das duas competências, podemos seguir em frente.
Merece registro o fato de o presente caso a ser analisado ser comumente negligenciado pela doutrina e, quando mencionado, não ser tratado com a necessária profundidade. Em geral, as intervenções de terceiros promovidas por entes federais em causas pendentes na Justiça Estadual são tratadas de maneiras indistintas ou focando no interesse jurídico ou, por vezes, econômico do ente federal, sem perquirir que essas situações são diversas de quando se defende um direito pessoal ou real próprio de tais pessoas de direito público federal. A guisa de exemplo, observamos que Daniel Neves, em obra específica, comete um deslize ao não mencionar a oposição na lição seguinte:
Voltando à questão do interesse jurídico como permissivo da participação da União e dos outros entes federais ora analisados, a doutrina concorda que houve injustificável limitação constitucional, não restando qualquer dúvida de que a participação dos sujeitos federais previstos no dispositivo legal também poderá se verificar por meio da denunciação à lide e chamamento ao processo, hipóteses em que inegável a competência da Justiça Federal. Quanto à nomeação a autoria, poderia também ser lembrada, mas verificando-se a extromissão de parte (saída do réu originário para o ingresso do nomeado em seu lugar) a União nomeada se torna ré, sendo desnecessária a indicação de tal espécie de intervenção de terceiro. (2005. p. 144, grifo do autor).
Neste ponto é oportuno inquirir, ainda que em linhas gerais,[33] um detalhe inexplorado a respeito da natureza da oposição. A doutrina processual a enquadra nas modalidades voluntárias de intervenção de terceiros, mas afirmamos acima que o caráter voluntário é a regra. Excepcionalmente, em razão do regime jurídico dos bens públicos, o ajuizamento da oposição não é voluntário quando o bem ou direito lesado é de pessoa jurídica de direito público ou empresa pública. O mesmo deve ocorrer em relação aos bens afetados de entes privados da Administração indireta. Os advogados e representantes judiciais da Administração direta e indireta são considerados agentes públicos, detentores de cargo ou empregos públicos, e possuem a nobre função de promover a defesa do patrimônio público. Estes sujeitos devem observar os princípios da eficiência e da indisponibilidade do interesse público na prestação de seu mister. Não há discricionariedade no desempenho de suas funções, ou seja, não possuem a conveniência e oportunidade de atuar judicialmente, pois assim que tiverem ciência do ilícito perpetrado, devem agir com diligência e presteza. Desta forma, havendo uma disputa de bem ou direito pertencente à Fazenda Pública, o órgão competente deve obrigatoriamente promover a oposição de forma imediata. Este caso, no âmbito federal, é justamente o objeto de nosso estudo.
4.1. O julgamento da oposição e ação pela Justiça Federal e a Teoria Geral do Processo
Em razão de ser uma intervenção principal, que resguarda um direito e não um interesse, tratando do art. 125, §2º, da CF de 1969,[34] oriundo da EC 01/69 à CF de 1967, Ari Pargendler entende que “o Juiz da oposição deve ser o da causa principal. Por isso que, formulada a oposição pela União, também à causa principal deve ser remetida ao conhecimento da jurisdição federal” (1979, p. 70).[35] As Constituições anteriores traziam norma expressa no sentido de o juízo competente para a causa envolvendo a Fazenda Pública ser o competente: as de 1937 e 1946 estabeleciam que, se houvesse intervenção da União como assistente ou opoente, as causas propostas perante outros juízos passariam a ser da competência de um dos juízos da Capital. Não havia neste momento histórico a Justiça Federal, reestruturada em 1966 (e criada com o Decreto n. 848, de 1890). As Constituições de 1967 e 1969, respectivamente nos arts. 119, §2º, e 125, §2º, dispunham que as causas propostas perante outros juízes, se a União nelas intervier, como assistente ou opoente, passarão a ser da competência do juiz federal respectivo.
Já sob a vigência da Carta Magna de 1988, que não contém tais disposições, Cândido Rangel Dinamarco leciona que se desfaz a prevenção da competência, prevista no art. 109, e “desloca-se a competência, tanto para a ação quanto para a oposição, quando a causa pende perante a Justiça Estadual a oposição é formulada por uma das entidades para as quais é competente a Federal” (2002, p. 385, grifo do autor). Neste sentido, também leciona Athos Gusmão Carneiro (2004, p. 172).
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de a Justiça Federal julgar tal(is) processo(s) envolvendo as duas demandas. Julgando o conflito negativo de competência instalado entre a 3ª Vara Cível de Boa Vista/RR e a 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Roraima, o STJ se manifestou neste sentido:
PROCESSO CIVIL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO CÍVEL E JUÍZO FEDERAL. AÇÃO DE INTERDITO PROIBITÓRIO. PEDIDO DE INTERVENÇÃO DO INCRA. DECLARAÇÃO, PELO JUÍZO FEDERAL, DE AUSÊNCIA DE INTERESSE DA AUTARQUIA. PROPOSITURA DE AÇÃO DE OPOSIÇÃO, QUE NÃO FORA CONSIDERADA NA DECISÃO PROFERIDA PELO JUÍZO FEDERAL. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA JUSTIÇA ESTADUAL. CONFLITO CONHECIDO. A existência, conexa à ação possessória, de ação de oposição ajuizada por Autarquia Federal, torna o Juízo Estadual absolutamente incompetente para decidir toda questão. A decisão do Juízo Federal que não tomou em consideração a existência da referida oposição, é passível de revisão, não se aplicando, à hipótese, as orientações contidas nas Súmulas 150 e 254/STJ. Conflito conhecido e provido, para o fim de declarar a competência do Juízo Federal, ora suscitado. (STJ. Conflito de Competência 85.115/RR. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Órgão Julgador: Segunda Seção. Julgamento: 25/06/2008. Publicação: 01/08/2008). (grifo nosso).
Para o STJ, o juízo estadual não será competente para julgar tais casos sequer se a comarca não for sede de vara da Justiça Federal, pois além do art. 109, §3°, da CF não determinar nada neste sentido, também não há lei que estabeleça tal delegação.[36]
A prática adotada é atraente, mas se submetida a uma investigação percuciente, podemos constatar que viola a lógica ou valores informativos do processamento da oposição. Em decorrência disso, data maxima venia, ousamos discordar dos Mestres e da prática judiciária consagrada, e apresentamos modestas soluções que reputamos mais adequadas ao caso por conciliar lições básicas de Teoria Geral do Processo e de Direito Constitucional. Com primor, já ensinou Carlos Maximiliano que:
O direito é ciência de raciocínio; curvando-se ante a razão, não perante o prestígio profissional de quem quer que seja. O dever do jurisconsulto é submeter a exame os conceitos de qualquer autoridade, tanto a dos grandes nomes que ilustram a ciência, como a das altas corporações judiciárias. Estas e aqueles mudam freqüentemente de parecer, e alguns têm a nobre coragem de o confessar; logo seria insânia acompanhá-los sem inquirir dos fundamentos dos seus assertos, como se eles foram infalíveis. Nullius addictus jurare in verba magistri: “ninguém está obrigado a jurar nas palavras de mestre algum”. (2010, p. 223).
Inicialmente, o processamento do caso nos moldes atuais traz algumas desvantagens e incongruências que podem dificultar a prestação jurisdicional. Com a oposição, o ente não manifesta aquele interesse jurídico (quando o patrimônio jurídico do terceiro pode sofrer efeitos invasivos, ainda que reflexos, advindos de uma decisão judicial) ou econômico (Lei n. 9.469/97, art. 5º) dando azo à assistência, mas deduz uma pretensão em juízo, e ela, a oposição, tem regramento diverso das demais intervenções de terceiros. Desta forma, na possibilidade de a Justiça Federal entender que o ente federal não é o titular do bem ou direito controvertido, ainda assim julgaria a demanda que envolveria apenas particulares e seus interesses privados? O regramento da oposição não permite negar, mas a resposta negativa já foi dada pelo Supremo Tribunal Federal:
AÇÃO POSSESSÓRIA ENTRE PARTICULARES. OPOSIÇÃO DA UNIÃO JULGADA IMPROCEDENTE. REMESSA DOS AUTOS AO JUIZ ESTADUAL PARA JULGAR AÇÃO. Reconhecido que as terras em litígio não estão na faixa de fronteira, nem são terras devolutas, de modo que enseje o interesse da União, as oposições manifestadas por ela e pelo INCRA não procedem. Em conseqüência, a competência para o julgamento de ação possessória entre partes privadas é da Justiça Estadual. Recurso extraordinário de que se não conhece. (STF. Recurso Extraordinário 99598-6/MT. Relator: Min. Soares Muñoz. Órgão Julgador: Primeira Turma. Julgamento: 24/03/1983. Publicação: 22/04/1983). (grifo nosso).
Essa resposta, além de não aplicar o regramento específico da oposição, traz consigo o inconveniente de a instrução da demanda entre os particulares talvez se iniciar do ponto de partida na Justiça Estadual depois de anos tramitando na Federal, ou da dificuldade de o juiz estadual não acompanhar o seu desenvolvimento e conseqüentemente não valorar as provas produzidas até então com mais proximidade para melhor motivar a sua decisão final, sobretudo se se tratar de prova oral,[37] dando vazão à conversão do julgamento em diligência, ao atraso em geral e à morosidade na composição do conflito por parte do Poder Judiciário (após anos tramitando sem solução na Justiça Federal ou Tribunais Superiores). Já disse Rui Barbosa que justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta (2005, p. 34).[38]
Já vimos que há uma relação de prejudicialidade entre a oposição e a ação principal: se o pedido da oposição for julgado procedente, a ação será necessariamente improcedente, bem como não importará mais as alegações da defesa do réu. A utilização do regime jurídico da oposição conduz a esse resultado lógico-jurídico. Contudo, se a oposição for rejeitada, a influência do julgamento anterior será menor e a ação será julgada com relativa liberdade pelo mesmo magistrado, realizando o cotejo e valoração das informações trazidas ao processo pelo autor e réu.
O problema desse entendimento do STF está no fato de introduzir uma questão prévia de natureza preliminar no caso de improcedência da oposição: a Justiça Federal estaria impedida de julgar a ação por lhe faltar competência.[39] Isso pode redundar na prática de os magistrados federais somente apreciarem as questões relativas ao ente federal, deixando de lado a instrução relativa às questões postas entre os particulares. Seria a oposição ao mesmo tempo uma questão prévia prejudicial (se procedente) e preliminar (se improcedente). Mas a oposição não foi criada com este propósito e não deve existir relação de preliminaridade entre as questões. A intenção do legislador é que o julgamento da oposição e da ação seja realizado pelo mesmo juízo e – é o desejável – na mesma sentença. A relação de preliminaridade impede que o escopo da oposição se concretize, e o CPC determina que seu processamento e julgamento não podem se tornar perniciosos à causa principal.
Além disso, há na solução um menoscabo ao comezinho regramento conferido à oposição pelo CPC/73: é de clareza solar que o propósito do legislador é valorizar a economia processual com a “unificação” da instrução e julgamento simultâneo da ação e oposição, evitando, pois, que o processo se torne dispendioso e demorado. Nesta perspectiva, não tem sentido permitir a oscilação da demanda com as remessas ou, após o processamento nos moldes dos arts. 59 e 60, segunda parte, a separação das duas demandas, oposição e ação.[40]
O primeiro questionamento leva ao segundo: e se a Justiça Federal decidir que o ente federal é titular do bem ou direito apenas em parte, julgaria a outra contenda deduzida em juízo? O Tribunal Regional Federal da 1ª Região já se deparou com tal situação: o juízo da 12ª Vara Federal da Seção Judiciária da Bahia julgou procedente a oposição formulada pela União, reconhecendo parte do imóvel disputado como terreno de marinha, declarou a sua incompetência em relação à área sobejante e determinou a remessa dos autos ao Juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Camaçari/Ba. Na Apelação, restou decidido pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região o que segue:
PROCESSO CIVIL. REIVINDICATÓRIA E OPOSIÇÃO. JULGAMENTO UNIFICADO EM UMA SENTENÇA. 1. A oposição é possível sempre que alguém entende ser o verdadeiro titular, no todo ou em parte, de um direito que está em litígio entre terceiros (art. 56 do CPC). Assim é cabível o uso da oposição pela União, para que veja reconhecida sua titulariedade sobre parte do imóvel que é objeto de ação reivindicatória entre particulares. 2. A oposição e a ação principal, no caso uma reivindicatória, precisam ser julgadas no mérito em um só ato de conhecimento (art. 59 do CPC), sendo descabido dar procedência à oposição, ajuizada pela União, e declinar da competência em relação à reivindicatória entre particulares. 3. Nos termos do art. 109 do CPC o juiz da causa principal é competente para as ações que dizem respeito ao terceiro interveniente. Como não teria cabimento interpretar este dispositivo no sentido de a Justiça Estadual ser competente para julgar a causa unificada, dada a presença da União, é óbvio que esse julgamento competirá em seu todo à Justiça Federal. 4. Sentença anulada para se retomar o curso normal do processo, dentro do qual deve ser observada também a conexão necessária com a ação de usucapião sobre o mesmo imóvel que a União diz lhe pertencer em parte, dada a evidente possibilidade de decisões diametralmente opostas (reconhecendo a propriedade plena em uma para o particular e aqui reconhecendo parte da propriedade para União). (TRF-1. Apelação Cível nº 2003.33.00.006208-1/BA. Relator: Juiz Federal convocado César Augusto Bearsi. Órgão Julgador: Quinta Turma. Julgamento: 30/05/2007. Publicação: 24/08/2007). (grifo nosso).
Não podemos concordar com esta decisão. A nosso ver, se o direito da União já foi resguardado no caso sub judice e não há mais qualquer interesse dela no que excede, nada justifica, na vigência da CF/88, a Justiça Federal julgar essa lide envolvendo tão-somente interesses privados de partes não elencadas no art. 109 da CF.[41] É caso típico de oposição parcial, quando o opoente, nas palavras de Pontes de Miranda, “é estranho a tudo mais que se discuta: o processo ignora-o, e ele ignora o processo” (1973, p. 93). Aprofunda Dinamarco: “na parte excedente à oposição inexiste qualquer nexo de prejudicialidade e, quanto a ela, o julgamento da causa principal será como se oposição não existisse” (2009, p. 64, grifo do autor). Além, apreciando um conflito negativo de competência, já decidiu o STJ:
COMPETÊNCIA. LEGITIMIDADE DE PARTE (UNIÃO FEDERAL E BANCO CENTRAL DO BRASIL). Excluídos da relação processual os entes federais, desapareceu o motivo que justificava a tramitação do feito perante o foro federal. Restrito o litígio a dois particulares, a competência para processá-lo e julgá-lo é da Justiça Estadual. Conflito conhecido, declarado competente o suscitante. (STJ. Conflito de Competência nº 10608-7 – São Paulo. Relator: Min. Barros Monteiro. Órgão Julgador: Segunda Seção. Julgamento: 28/08/1994. Publicação: 31/10/1994). (grifo nosso).
Apenas para argumentar, não sendo suficiente o explanado, tal decisão choca-se frontalmente com a interpretação restritiva dada pelo STF no julgado supracitado, produzido na vigência da Constituição de 1969, segundo o qual haveria derrogação da competência originária[42] da Justiça Estadual e o art. 125, §2º, da Constituição pretérita introduziu uma exceção à regra de que a conexão entre as demandas só produz o efeito da reunião dos feitos para julgamento simultâneo se o juiz for competente para ambas, fundamentando no voto acórdão (ratio decidendi) que:
Como exceção aos casos de modificação da competência originária, deve ser interpretada restritivamente, de forma que, julgada improcedente a oposição da União, não remanesce competência do Juiz Federal para apreciar o litígio entre particulares. (grifo nosso).
Ainda a respeito das desvantagens e incongruências que podem dificultar a prestação jurisdicional, a orientação é a de que proposta a oposição pelo ente federal, o magistrado estadual remeta os autos para a Justiça Federal sem qualquer exame. Neste sentido, Ari Pargendler entende que “formulada essa oposição, segundo os ditames do estatuto processual, o processo principal deve ser remetido, sem qualquer exame, à Justiça Federal” (1979, p. 71) e Dinamarco, que “a intervenção desloca para a Justiça Federal todo o processo, com todas suas questões a solucionar, com todas as partes originárias” (2002a, p. 482, grifo do autor). Vamos imaginar uma situação extrema: o processo está concluso no juízo estadual e ocorre a referida propositura (será uma oposição autônoma). Pelo processamento instituído, o processo, após cognição exauriente, estaria pronto para uma solução e ela seria atrasada até que a instrução e o julgamento da oposição (art. 61) se desse no juízo federal. Não vemos razão para que isto ocorra. O direito italiano impede este tipo de situação porque tem, informa Dinamarco (2009, p. 85), na apresentação das alegações finais pelas partes o termo final para a propositura da oposição. Se a prejudicialidade externa entre uma causa penal, que possui um compromisso muito maior com a denominada verdade real, conforme ensina Eugênio Pacelli de Oliveira,[43] e outra cível pode ser desconsiderada para efeitos de julgamento por este juízo, no caso de estar a instrução muito avançada, não vemos nenhuma justificativa relevante para que esta orientação não seja adaptada e aplicada ao caso com vista a evitar a mora na prestação jurisdicional, tão depreciativa para a Justiça. Acrescenta Pacelli de Oliveira:
E mais: o vocábulo poderá, constante do citado art. 64, parágrafo único, do CPP, confere verdadeiro poder discricionário ao juiz do cível, acerca da conveniência da suspensão do processo naquela instância. Embora alguns autores entendam que o termo (poderá) contemplaria verdadeiro dever, entendemos que a hipótese é mesmo de discricionariedade. Isso porque, somente a partir do exame do estágio de desenvolvimento procedimental de um e outro processo (a ação cível e a penal) é que se poderá avaliar a conveniência de se suspender o processo no cível. Assim, quando já estiver encerrada a instrução na ação civil, não haverá, segundo nos parece, qualquer razão para a suspensão do processo se, por exemplo, estiver ainda no início o procedimento criminal. A questão da suspensão, até porque a própria lei prevê prazo limitado (art. 265, CPC), deve, pois, situar-se no âmbito da discricionariedade, e não da obrigatoriedade. (2008, p. 167-168, grifo nosso).
Além da possibilidade de dificultar a prestação jurisdicional, no caso em que é obrigatória a sua remessa para outro juízo em razão de competência absoluta, a oposição, independente do momento em que for proposta, não deveria ser processada de acordo com os arts. 59 e 60 também pelos motivos que seguem.
De plano, não podemos admitir que a demanda que envolve o ente federal seja considerada a “principal”. Já tivemos a oportunidade de afirmar que não há nenhuma relação de acessoriedade ou importância entre tais demandas e que o termo “principal” contido no regramento especial da oposição é utilizado como sinônimo de “originária”. Ademais, a regra da competência ratione personae, insculpida na nossa Carta Magna vigente, confere aos entes federais o “foro privilegiado” da Justiça Federal e a competência para processar a oposição é funcional do juízo da causa originária:[44] a segunda demanda proposta, a oposição, que é autuada à primeira, a ação, e o juízo competente para esta é o que deve julgar ambas, e não o contrário. Ora, se assim é, não se justifica a demanda entre os particulares seguir com a oposição para a Justiça Federal ou a aplicação do art. 108, que trata de causas que mantém relação de acessoriedade, ou art. 109, que distingue a causa principal das manifestações processuais elencadas, tendo o juiz daquela causa competência para ambas, e não o inverso. Não devemos deturpar e achar que a competência para julgar a ação é do juízo competente para a oposição, se não há norma neste sentido.
A oposição, já sabemos, é a providência processual adotada por um terceiro (no caso, um ente federal) contra outras partes (no caso, opostos particulares) que disputam em juízo (no caso, estadual) um bem ou direito que aquele entende ser titular. Ela tem natureza de demanda e deve ser proposta mediante a apresentação de petição inicial, atendendo a todos os requisitos necessários para a sua admissibilidade. O direcionamento para o juízo competente é um deles, mormente se se tratar de competência absoluta, e a Constituição Federal de 1988 estabelece, nos arts. 106, 108 e 109, que são os órgãos da Justiça Federal os competentes para causas que envolvam entes federais. Se um ente federal quer demandar, tem que fazer isso no juízo competente para tanto, ou seja, na Justiça Federal,[45] e não deveria ser diferente com a oposição,[46] sobretudo quando não se tratar de oposição interventiva, quando será um processo autônomo e, portanto, não haverá ingresso do ente federal no outro processo, devendo seguir o procedimento ordinário, sendo julgada sem prejuízo da ação principal.
Há diferenças relevantes entre a oposição interventiva, aquela proposta antes da audiência, e a autônoma, proposta após o início da audiência e até a prolação da sentença. Esta modalidade gera um processo novo, autônomo e incidente, não tendo natureza interventiva e estabelecendo uma ligação com o outro processo mediante relação de prejudicialidade externa. No nosso ver, a dificuldade de conceber a remessa dos processos é muito maior neste caso, pois o ente federal não ingressaria no processo pendente, ou seja, não seria parte dele e seria estranha a aplicação do enunciado n. 224 da jurisprudência dominante do STJ ao caso: “excluído do feito o ente federal, cuja presença levara o Juiz Estadual a declinar da competência, deve o Juiz Federal restituir os autos e não suscitar conflito”. Já a oposição parcial possui, como já vimos acima com apoio em Pontes de Miranda e Dinamarco, uma particularidade em relação à parte do bem ou direito disputado: o opoente “é estranho a tudo mais que se discuta: o processo ignora-o, e ele ignora o processo” e não há a característica relação de prejudicialidade entre a oposição e a ação. As modalidades diversas não devem ser tratadas da mesma forma.
Por fim, é cediço que o ordenamento jurídico pátrio impede a ingerência em processo de competência absoluta alheia, então seria defeso à Justiça Federal julgar a primeira demanda, envolvendo tão-somente particulares, bem como não poderia a Justiça Estadual julgar a segunda demanda, que traz um ente federal no pólo ativo. Ora, tanto deve ser assim que, de um lado, a conexão entre causas pendentes não implica em reunião para julgamento simultâneo quando o juízo é absolutamente incompetente e, de outro, somente é possível a cumulação de pedidos[47] se “competente para conhecer deles o mesmo juízo” (art. 292, §1º, II). Quanto à exigência da competência absoluta, ensinam Marinoni e Arenhart:
A reunião de ações conexas ou continentes pressupõe uma condição: a de que o juízo que receber as demandas tenha condições de analisar a todas (satisfaça, portanto, a todos os pressupostos processuais subjetivos referentes ao juiz, a saber, a jurisdição, a competência absoluta e a imparcialidade). Assim, se o juiz não tem competência absoluta para certa demanda, inaplicável o instituto da conexão ou da continência para atribuir-lhe o julgamento daquela, ainda que outra causa assemelhada (com idêntica causa de pedir ou igual pedido) tramite perante ele. (2006, p. 51, grifo dos autores).[48]
E mais: em casos que afrontam a partilha constitucional das competências, tais julgamentos trazem como conseqüência, em tese, a inexistência do processo ou a sua invalidade, a depender da corrente doutrinária adotada.[49]
De passagem, antes de avançarmos ao tópico seguinte, teceremos algumas considerações a respeito da denunciação da lide. Assim como a oposição, a denunciação da lide também tem natureza de ação, porém é uma intervenção de terceiro coacta e a relação entre as demandas é marcada pela preliminaridade. Se houver litisdenunciação para o ente federal na Justiça Estadual, ele ingressará obrigatória e automaticamente no processo e as duas demandas também serão remetidas para a Justiça Federal.[50] Aparentemente é estranha a situação de a Justiça Federal julgar a ação, dando ganho de causa ao denunciante particular, e não julgar a demanda que envolve o ente federal. Contudo, o caso se subsume ao disposto no art. 109, I, da CF, porque o ente federal “denunciado será sempre assistente do denunciante” (DINAMARCO, 2002b, p. 408, grifo do autor),[51] pois teria interesse jurídico na solução da lide.
4.2. A nova ordem constitucional e o art. 125, §2º, da CF/1969
Se já defendíamos que o caso não deveria ser processado da maneira que sempre foi pelos motivos supramencionados, a nossa posição é reforçada com a vigência e égide da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Já adiantamos que as Constituições pretéritas traziam normas expressas que determinavam a competência da Justiça Federal para processar e julgar as demandas entre os particulares. A Constituição de 1969 estabelecia, no art. 125, §2º, que as causas propostas perante outros juízes, se a União nelas intervier, como assistente ou opoente, passarão a ser da competência do juiz federal respectivo. Enquanto vigorou esta norma, a competência absoluta do juízo estadual era derrogada, mas não havia a prorrogação da competência da Justiça Federal por expressa determinação constitucional.
Sucede que não há nenhuma norma na Constituição de 1988 que confira expressamente competência para a Justiça Federal julgar causas de competência da Estadual. Ainda que pese a construção doutrinária e jurisprudencial em sentido contrário, “competência não se presume” (MAXIMILIANO, 2010, p. 216, grifo do autor).[52] A competência ratione personae é matéria de ordem pública e Processo civil (ou penal, trabalhista, etc.) não é ramo do Direito Privado onde se aplica a máxima de que tudo que não está legalmente proibido está permitido. O Estado-juiz somente pode atuar nos limites estritos da lei.
E não é só.
O Anteprojeto Constitucional de 1985 (BRASIL, 1986),[53] a cargo da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, mais conhecida como Comissão Afonso Arinos em razão de seu eminente presidente, previa o art. 289, §2º, cuja redação repetia a constante no art. 125, §2º, da CF de 1969. Ainda que anterior à Assembléia Constituinte, instalada em 01/02/1987, este anteprojeto era fonte de consulta recorrente pelos constituintes. Entretanto, esta previsão não vingou no texto final da Constituição.
“A ordem constitucional nova, por ser tal, é incompatível com a ordem constitucional antiga. Aquela revoga esta”, já ensinou Michel Temer (1994, p. 38). A vigência de uma nova Constituição revoga in totum a antiga Carta Magna. Noutras palavras, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 revogou inteiramente as normas da Constituição de 1969. Houve ab-rogação. Além disso, a nova ordem constitucional não adere à teoria da desconstitucionalização, não prevendo de maneira inequívoca e expressa acerca de as normas da antiga Constituição, ainda que compatíveis com a nova ordem constitucional, serem recepcionadas como se normas infraconstitucionais fossem. Desta forma, não vemos como negar: não apenas o texto, mas a própria norma disposta no art. 125, §2º, da CF de 1969 foi retirada do direito positivo pátrio.[54]
Se o parágrafo “sempre foi, numa lei, disposição secundária de um artigo em que se explica ou modifica a disposição principal”, conforme anota Arthur Marinho, citado por Gilmar Mendes (2007), e ele foi retirado do nosso direito pátrio, não há mais aquela explicação ou modificação da disposição principal (caput c/c incisos) ou a exceção aludida como fundamento do voto no RE 99598-6/MT supracitado. Além disso, estender a interpretação do art. 109, I, da CF vigente, equiparando-a aos arts. 125, I, seu equivalente, e 125, §2º, da revogada ordem magna, é como afirmar que as Constituições de 1967 e 1969 continham preceito e palavras inúteis. No nosso ver, se o Poder constituinte originário quisesse manter a disposição anterior, teria regulado a matéria novamente, como ocorreu nas Constituições anteriores. No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso aprofunda:
A não-reprodução, na nova Carta, de uma regra constante do ordenamento constitucional anterior, sem a ressalva de sua continuidade, é um ato de vontade do constituinte, que manifestamente desejou abster-se do tratamento da matéria. Ao legislador infraconstitucional, se assim desejar, caberá reeditar o preceito. (1998, p. 58, grifo nosso).
E poderia o costume judiciário alterar o estado das coisas no que toca à competência? Embora haja quem pense que “se um costume jurídico contrário à lei permanece como vida real do direito e chega a ser reconhecido e aplicado pelos Tribunais, a lei se transforma em letra morta e foi de fato revogada pelo costume ou pelo desuso”, como aponta André Franco Montoro (2005, p. 454),[55] o fato é que o costume contra legem ou o simples desuso não revogam leis,[56] quanto mais normas constitucionais. O nosso direito está ancorado no civil law e a nossa Carta Magna é material, escrita, dogmática, analítica e rígida, só podendo ser alterada mediante o rigoroso e devido processo legislativo constitucional.
É lição antiga de direito intertemporal que tempus regit actum, ou seja, são as normas processuais constitucionais e infraconstitucionais vigentes que devem ser aplicadas aos casos atuais, e não regras revogadas.
Tendo em vista que as competências dispostas na Constituição são absolutas e, por isso, não podem ser derrogadas ou prorrogadas, abarcando causas que não estejam expressas, podemos afirmar que a competência da Justiça Estadual também é absoluta, embora residual: sempre terá competência pra julgar processos que não são das outras Justiças, competência esta que igualmente não pode ser prorrogada ou derrogada. Se, por acaso, a Constituição inovar no regramento de uma causa e a transferir para outra Justiça, não haverá derrogação de competência, porque só há derrogação de quem competência possui. No caso, simplesmente a Justiça Estadual deixaria de ter competência e remeteria as causas.
Se o costume não pode alterar regras atinentes à competência, não há ultratividade da norma constitucional de 1969, e se “toda norma determinadora de competência só poderá ser flexibilizada por uma outra norma modificadora do mesmo grau hierárquico ou de grau hierárquico superior, nunca inferior”, ensina Daniel Neves (2005, p. 42),[57] e não há mais o referido dispositivo constitucional, podemos, portanto, afirmar que a Justiça Federal não tem mais competência para processar e julgar as demandas entre particulares no caso analisado e que ela vem sendo equivocadamente prorrogada atualmente, o que implica, por via de conseqüência, na derrogação da competência absoluta da Justiça Estadual.
Sucede, todavia, que é evidente que a Justiça Estadual tem competência para processar e julgar a primeira demanda proposta (autor particular vs réu particular) e a Justiça Federal tem competência para a segunda demanda (opoente federal vs autor e réu particulares).