Resumo: O presente artigo tem por finalidade analisar a relação existente entre os princípios constitucionais do processo e a proteção dos direitos fundamentais, enxergando a atividade processual sob uma ótica constitucional. A investigação se conduzirá, primeiramente, através de uma exposição dos princípios constitucionais do processo geralmente identificados pela doutrina especializada, elencando-os e tecendo sobre cada um deles breves considerações. Em momento posterior, far-se-á a análise de como se dá a relação entre os referidos princípios e a proteção dos direitos fundamentais, sempre tendo em mente o caráter instrumental do processo e o seu objetivo primordial de conceder, efetivamente, tutela ao direito material. A argumentação se baseará nas seguintes assertivas, que serão defendidas ao longo do trabalho: i) a desconsideração dos princípios constitucionais abre espaço para graves desvios do Estado-juiz no exercício da atividade jurisdicional, levando a julgamentos cujos resultados afrontarão, diretamente, os direitos fundamentais dos envolvidos; ii) existem princípios constitucionais que são direitos fundamentais, de modo que a violação daqueles importa, logicamente, na violação destes; iii) como os direitos fundamentais se irradiam por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas infraconstitucionais, o desrespeito aos princípios constitucionais do processo cria a possibilidade de produção de interpretações lesivas aos referidos direitos.
Palavras-chave: Princípios constitucionais. Direitos fundamentais. Teoria geral do processo.
Sumário: 1. Introdução. 2. Princípios constitucionais do processo. 2.1. Devido processo legal. 2.2. Isonomia no tratamento das partes. 2.3. Contraditório e ampla defesa. 2.4. Vedação da prova ilícita ou obtida por meios ilícitos. 2.5. Publicidade e motivação. 2.6. Juiz natural. 2.7. Duplo grau de jurisdição. 2.8. Efetividade. 3. Princípios constitucionais do processo enquanto direitos fundamentais. 4. Princípios constitucionais do processo enquanto instrumentos de tutela dos direitos fundamentais. 5. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
“Por seis julgamentos passou Cristo, três às mãos dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz.”1
Com essas palavras inicia Rui Barbosa uma interessante exposição, sob a ótica jurídica, daquela que é uma das persecuções penais mais famosas – e, sem dúvida, mais injustas – da história: o julgamento de Jesus e sua condenação ao suplício da crucificação. De fato, todos os ritos processuais a que Cristo foi submetido realizaram-se ao arrepio de qualquer noção de respeito aos direitos da pessoa humana, bem como das normas procedimentais previstas na lei mosaica. O processo que lhe sentenciou à morte deve sempre ser lembrado, como bem salienta Paulo Brossard (2012)2, como ilustrativo dos perigos existentes na não observância dos princípios que regem a atividade processual.
Ciente da extrema relevância dos mesmos, elevou-os o constitucionalismo ocidental à categoria de normas constitucionais.
A Magna Carta de 1215, em sua cláusula de número 39 (dispositivo que ainda se encontra em vigor no sistema britânico da common law), criou o instituto do due process of law (ou devido processo legal), para o qual convergem, de certa forma, os outros princípios constitucionais do processo. É bem verdade que a compreensão desse importantíssimo preceito modificou-se bastante ao longo dos séculos, extrapolando o enfoque meramente formal que lhe foi dado quando de sua idealização; mesmo assim, a cristalização da ideia de que apenas por meio de um rito preestabelecido poderá um indivíduo ser privado de qualquer bem jurídico já é de notável importância para o Direito.
A quinta e a sexta emendas à Constituição norte-americana de 1787, por sua vez, preveem uma série de preceitos que se encontram, atualmente, positivados na maior parte das cartas constitucionais – ou, pelo menos, implícitos em seus dispositivos. A celeridade e a publicidade processuais, bem como o devido processo legal, possuem expressa previsão em seu texto.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, publicada na França revolucionária de 1789 (posteriormente adotada como preâmbulo da Constituição de 1791) e fortemente influenciada pelo mesmo pensamento iluminista que norteou a produção constitucional americana, também continha princípios da atividade processual. A presunção de não culpabilidade, a isonomia das partes e uma forma embrionária do devido processo legal são mencionadas nos seus artigos sexto, sétimo e nono, bem como uma série de garantias específicas do processo penal.
Essa notável atenção dada aos princípios constitucionais do processo nos primórdios do constitucionalismo não é injustificada; os regimes políticos anteriores não conheciam freios à sua ânsia punitiva e não hesitavam em privilegiar determinadas pessoas na esfera processual – bem como em utilizar o instituto do processo, de forma totalmente arbitrária, para subtrair dos indivíduos menos favorecidos seus bens, sua liberdade e até mesmo sua vida. A necessidade de proteger determinados valores relativos aos procedimentos judiciais com o véu da Constituição era premente.
Pode-se facilmente perceber, portanto, que o desrespeito aos princípios mais importantes do processo – aqueles positivados no texto constitucional – coloca em xeque a proteção dos direitos fundamentais. Isso se dá em diversos planos, que serão expostos ao longo do presente trabalho, mas desde já cumpre adiantar que o processo, como bem salienta o professor Luiz Marinoni (2012, p. 460), é um instrumento de atuação dos fins do Estado; portanto, a deferência aos princípios constitucionais que o regem é condição primária para a consecução de tais fins – a proteção aos direitos fundamentais entre eles.
Passemos, pois, ao estudo mais aprofundado do assunto.
2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO
Como bem destaca Cassio Bueno (2012, p. 132), os princípios constitucionais do processo são os elementos jurídicos que definem e norteiam o modo como a atividade processual deverá ser compreendida e aplicada. Não são, portanto, meros limites negativos à atuação do Estado-juiz, proibindo-o de assumir comportamentos que violem os mencionados princípios; também o são, sem dúvida, mas há neles algo mais. Tais preceitos vinculam positivamente a prestação jurisdicional, impondo que ela se paute por seus comandos, que tenha por base os seus valores quando chamada a agir; os princípios impõem, portanto, uma determinada maneira de ser, um standard processual que se identifique com o quadro de valores da Constituição.
É a esse standard que corresponde o mais geral – e por muitos considerado o mais importante – princípio constitucional do processo: o devido processo legal.
2.1. DEVIDO PROCESSO LEGAL
É praticamente impossível fornecer um conceito fechado de devido processo legal; tal princípio representa uma cláusula aberta, de conteúdo notadamente indeterminado. A simples leitura do dispositivo legal que o prevê, o inciso LIV do art. 5° da Constituição Federal (que, aliás, é praticamente igual à cláusula 39 da Magna Carta de 1215), não é bastante e pode levar a uma compreensão restrita em demasia. Podemos, entretanto, entendê-lo como a garantia de que o Estado, no exercício de sua função jurisdicional, atuará nos limites de uma determinada forma, estabelecida pelo ordenamento jurídico; mais ainda, que a maneira como se desenvolverá o processo será condizente com a tábua axiológica adotada pela Constituição, em plena atenção aos preceitos nela positivados e às legitimas expectativas alimentadas pelos jurisdicionados.
Impende destacar que o devido processo legal abrange não somente o direito do interessado de ver o seu pleito tramitando nas instâncias competentes e de acordo com o rito processual legalmente previsto, mas também a aplicação do meio processual adequado à tutela do direito material judicialmente debatido (SILVA, 2012, p. 432). No mesmo sentido posiciona-se o professor Luiz Marinoni (2012, p. 112 e ss.); de fato, com a superação das teorias positivistas de Chiovenda3 e Carnelutti4 – que concebiam a atividade jurisdicional sob um prisma extremamente limitado – e a evolução do conceito de jurisdição, impõe-se que a exigência da utilização da técnica processual adequada seja, igualmente, incluída na área de abrangência do devido processo legal.
É importante ter em mente que o princípio em questão representa uma síntese (BUENO, 2012, p. 144) de todos os outros; os demais princípios constitucionais do processo podem bem ser entendidos como uma dissecação do devido processo legal, dando maior densidade normativa ao standard processual exigido pela Constituição. Isso não quer dizer, porém, que a enumeração dos outros princípios esgote completamente o seu significado; assume ele caráter geral e subsidiário, conferindo unidade a todo o sistema processual e, mais importante ainda, possuindo uma esfera conceitual própria, autônoma, que não se confunde com as dos demais.
Podemos entender, portanto, que a exigência de que as relações processuais sejam permeadas pela boa-fé e pela busca da verdade (como preceitua o art. 14 do Código de Processo Civil) é integrante da referida esfera conceitual autônoma do devido processo legal (BRANCO; MENDES, 2011, p. 593); na verdade, a própria natureza de cláusula aberta do princípio em questão possibilita que seu significado seja progressivamente construído e que seus reflexos sejam percebidos ao longo de toda a legislação. Serve ele, por conseguinte, como norteador da interpretação das normas e integrador do sistema processual.
É importante salientar que a doutrina norte-americana mais recente reconhece uma vertente material no devido processo legal (BARROSO, 2011); sob esse aspecto, seria ele, igualmente, um standard da atuação estatal, mas funcionando como garantia de que o Estado somente intervirá nos direitos fundamentais do indivíduo quando estritamente necessário e por motivos relevantes (em geral, para proteger bens jurídicos de ordem constitucional). É dessa faceta material do princípio objeto de nossa análise que se construiu o conceito de razoabilidade na produção doutrinária e jurisprudencial anglo-saxã, fundamental para a resolução de conflitos envolvendo direitos fundamentais e controle de constitucionalidade de ações estatais. A razoabilidade norte-americana, em verdade, assemelha-se bastante ao critério da proporcionalidade elaborado no direito administrativo alemão e depois transportado para o âmbito constitucional, hoje largamente utilizado pelos tribunais e difundido no meio doutrinário.
2.2. ISONOMIA NO TRATAMENTO DAS PARTES
É lição comezinha que, perante a lei, todos são iguais; a máxima da igualdade formal, repetida desde as revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX, representa um importante princípio constitucional do processo. A noção de que a lei deve ser aplicada a todos, independentemente de status ou condição econômica, foi uma grande conquista do constitucionalismo moderno e pôs fim ao sistema de privilégios infindáveis da nobreza e do alto clero dos regimes absolutistas, continuando, em linhas gerais, em vigência no ordenamento jurídico pátrio (art. 5°, caput e inciso I, da Constituição Federal, e art. 125, I, do Código de Processo Civil).
O tratamento isonômico às partes, porém, comporta exceções; não pode o Direito, sob o pretexto de satisfazer a igualdade formal, fechar os olhos às gritantes desigualdades materiais existentes na sociedade. Por esse motivo – qual seja, a promoção da igualdade material, representada pelo brocardo aristotélico de “tratar os desiguais desigualmente, na medida de sua desigualdade” –, o sistema processual contém normas destinadas a equilibrar uma eventual situação de desigualdade existente entre as partes de um processo; isso explica, por exemplo, a concessão do benefício da justiça gratuita aos economicamente desfavorecidos, a inversão do ônus da prova (satisfeitos alguns requisitos) em ações consumeristas e o estabelecimento de prazos processuais mais longos para a União.
O operador do Direito deve permanecer sempre atento à constitucionalidade das normas que estabelecem regras processuais diferenciadas, sabendo que o tratamento desigual não implica a imediata inconstitucionalidade da norma – desde que o mesmo encontre suficiente justificação em uma situação de hipossuficiência ou desigualdade material.
2.3. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA
Abordaremos esses dois princípios no mesmo tópico por entendermos, assim como a maior parte da doutrina nacional, que eles se encontram profundamente ligados. O primeiro deles, o contraditório, diz respeito à possibilidade de uma das partes se contrapor àquilo que foi alegado pela outra; quer dizer, tomando conhecimento do que disse ou provou o outro litigante, terá a parte afetada o direito de expor a sua versão dos fatos e suas provas. A professora Renata Vilas-Boas5, em interessante exposição sobre o tema, argumenta que o contraditório fundamenta-se no binômio informação-reação; consequentemente, não havendo a informação (como, por exemplo, com a instauração de um processo sem a citação do réu) ou a concessão do direito de reação a qualquer dos litigantes estar-se-á violando o princípio em análise.
Cássio Bueno (2012, p. 146) atesta que, ainda considerando o binômio acima exposto, a informação é sempre obrigatória – enquanto a reação não o é. Parece-nos correto o entendimento; sendo notificado um dos litigantes sobre as alegações que contra ele (ou quem ele represente) estão sendo feitas e tendo sido oferecida a oportunidade de expor sua versão, cabe a ele optar por defender-se ou não delas. A consequência de sua inércia, mesmo ciente das afirmações feitas pela outra parte, é aquela prevista no art. 319 do Código de Processo Civil: reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados.
O ministro Gilmar Mendes (2011, p. 494) entende que o princípio do contraditório abrange mais que o simples binômio supramencionado. Apoiando-se na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão e na produção doutrinária daquele país, argumenta que o contraditório compreende também o direito de influir na formação do convencimento do juiz – vale dizer, o direito de ter seus argumentos considerados pela autoridade julgadora. O mesmo doutrinador conclui, ainda, que a obrigação do juiz de levar em conta os argumentos levantados pela parte pode ser extraída do art. 93, IX, da Constituição Federal, que estabelece a obrigatoriedade de fundamentação das sentenças.
Tal entendimento mostra-se o mais adequado – especialmente tendo em consideração o modelo constitucional do processo – por viabilizar maior participação dos litigantes na formação da sentença. E, como acertadamente argumenta Marinoni (2012, p. 463), a efetiva participação nos procedimentos judiciais é um elemento indispensável para conferir legitimação democrática à decisão final do processo.
A real possibilidade de as partes influenciarem a formação do convencimento do juiz, por sua vez, está vinculada ao outro princípio constitucional objeto deste tópico: a ampla defesa. É no momento da reação, da contestação, que a ampla defesa tem aplicação, viabilizando o exercício do contraditório; este, para que tenha alguma eficácia prática, pressupõe aquela.
Podemos entender a ampla defesa como o direito de utilizar-se de todos os meios de prova previstos em lei (e ainda os que, embora não expressamente positivados, não atentem contra a moral ou contra o ordenamento jurídico, como bem esclarece o art. 332 do Código de Processo Civil) para corroborar suas alegações; ou seja, é o suporte material para o exercício do contraditório, aquilo que lhe dá fundamentação e reais chances de direcionar o convencimento do julgador.
Pode-se entender o referido princípio, também, em sua dimensão objetiva. Vale dizer: além do enfoque subjetivo (a existência de uma facultas agendi concedida a determinado indivíduo), a ampla defesa, enquanto direito fundamental, demanda que o Estado guie sua atuação de forma a viabilizá-la (SOCIETY, 2012). Não se trata, portanto, de uma mera ordem, ao Estado, de abstenção de condutas nocivas ao direito em questão, mas sim da exigência de que o mesmo aja no sentido de criar condições fáticas para o seu exercício. A instituição de Defensorias Públicas é um bom exemplo do atendimento às exigências da dimensão objetiva do direito fundamental à ampla defesa.
Concluindo o presente tópico, é importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já sedimentou jurisprudência no sentido de que o contraditório e a ampla defesa também devem ser observados nos processos na esfera administrativa.
2.4. VEDAÇÃO DA PROVA ILÍCITA OU OBTiDA POR MEIOS ILÍCITOS
Segundo a expressa dicção do inciso LVI do art. 5° da Constituição Federal, “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”; objetivando proteger, em especial, a intimidade dos indivíduos (consagrada nos incisos X e XII do art. 5° da Constituição, por exemplo), o constituinte restringiu a possibilidade de ampla produção de provas para a instrução processual. De fato, não seria admissível que o ordenamento jurídico permitisse que as partes de um processo violassem suas previsões com o objetivo de provar suas alegações no decorrer de um processo; tal permissão seria um verdadeiro contrassenso, constituindo praticamente uma autorização extraordinária para o cometimento de ataques ao Direito.
Segundo classificação proposta por Bueno (2012, p. 175), a prova ilícita é aquela que, por si só, causa repulsa ao Direito; já a obtida por meios ilícitos é aquela que, mesmo sendo a princípio permitida, foi conseguida através de um procedimento que infringiu disposição legal, seja ela material ou processual (BRAND, 2008)6. A doutrina tradicional diferenciava estas duas hipóteses de violação; tendo contrariado norma material a prova seria ilícita, enquanto que a afronta a norma processual a tornaria ilegítima (BARBOSA, 2004)7; carece de relevância prática a classificação, uma vez que as duas formas de obtenção se encontram igualmente vedadas.
Problema que chamava a atenção da doutrina e da jurisprudência era o relativo à prova licitamente obtida, mas cuja obtenção derivou de uma prova conseguida por meios ilícitos. A Suprema Corte norte-americana trouxe uma resposta a essa indagação, no que foi seguida pelo Supremo Tribunal Federal: com a doutrina dos “frutos da árvore venenosa”, entenderam os magistrados que a prova derivada deveria, também, ser inutilizada – a menos que algum outro elemento fático tornasse possível a obtenção da prova derivada de forma independente da prova manchada de ilicitude.
2.5. PUBLICIDADE E MOTIVAÇÃO
Segundo a clara definição de Cléber Demétrio da Silva (2006)8, o princípio da publicidade do processo tem espeque na ideia de que todos os atos do Estado-juiz devem ser feitos da forma mais transparente possível, de modo que possam ser conhecidos e fiscalizados pela população; tem o objetivo de evitar, para voltar ao emblemático exemplo mencionado na introdução deste trabalho, que outras pessoas, assim como Cristo, sejam processadas e condenadas no escuro da noite, sem que as enormes violações a seus direitos sejam conhecidas.
Com acerto, Bueno (2012, p. 169) reconhece na publicidade “uma garantia política do exercício da função jurisdicional”; Luigi Ferrajoli (2002, p. 492), no mesmo sentido, compreende que o referido princípio representa uma “garantia de garantias”, isto é, uma certeza de que todos os preceitos inerentes ao devido processo legal estão sendo efetivamente cumpridos. O foco da previsão constitucional da publicidade é, sabidamente, a legitimação não só das sentenças, mas de todos os atos do processo como um todo. A possibilidade de controlar o conteúdo das atividades processuais atua de forma inibitória em relação ao cometimento de abusos e arbitrariedades por parte do Estado-juiz, que sabe que está sendo vigiado pela sociedade.
Impende ressalvar que o princípio em questão não foi adotado de forma absoluta pelo ordenamento pátrio. Em alguns casos especiais, a ampla divulgação dos atos de um processo traria prejuízos notáveis aos nele envolvidos ou à sociedade. Dessa forma, o inciso LX do art. 5° da Constituição define que, quando a defesa da intimidade ou o interesse público o exigirem, a publicidade processual poderá ser restringida. O art. 155 do Código de Processo Civil enumera casos em que tal restrição poderá ocorrer, entendendo a doutrina que o rol nele contido é apenas exemplificativo – podem, portanto, surgir outras hipóteses além das legalmente previstas.
Totalmente atrelado à publicidade é o princípio da necessidade de motivação das decisões judiciais, porque é principalmente sobre estas que aquela recai; sem a publicidade, a exigência de fundamentação das decisões teria a finalidade, apenas, de viabilizar a interposição de recursos, eliminando a possibilidade de controle popular sobre a atividade jurisdicional e esvaziando consideravelmente seu conteúdo normativo.
O art. 458 do Código de Processo Civil, ao tratar dos requisitos da sentença, prevê, em seu inciso II, que no momento da fundamentação o juiz deverá analisar as questões de fato e de direito. Essa é a essência da motivação da decisão; o magistrado demonstra, através da exposição dos fatos que reputa verdadeiros e das questões jurídicas a eles inerentes, o porquê de ter decidido de determinada maneira. Estando bem construída a argumentação, afastam-se as suspeitas de que a sentença tenha sido prolatada de maneira arbitrária, bem como eventual desconfiança quanto à imparcialidade do julgador.
A soma desses dois princípios, portanto, garante à sociedade que o Estado-juiz está agindo de forma imparcial e responsável no exercício da atividade jurisdicional, levando em conta os argumentos levantados pelas partes e analisando-os criticamente antes de se pronunciar definitivamente sobre o assunto.
2.6. JUIZ NATURAL
Insculpido nos incisos XXXVII e LIII do art. 5° da Constituição Federal, o princípio do juiz natural é tão caro ao direito processual que já se afirmou, em sede doutrinária, que sem ele não há jurisdição (GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, 2001). Representando, tradicionalmente, a vedação à criação de um órgão judicial após o acontecimento de determinado fato especificamente para julgá-lo (o chamado tribunal de exceção ou ad hoc), o princípio evoluiu para expressar que apenas a autoridade com competência preestabelecida na Constituição Federal para tanto pode exercer a atividade jurisdicional. Disso não discorda Bueno (2012, p. 154), ao afirmar que “será juiz natural aquele que a Constituição indicar como competente”.
Certamente, é difícil pensar que exerce jurisdição um órgão ou autoridade judicial que possui direto interesse na resolução do caso que lhe é trazido para análise. A história nos mostra essa amarga verdade com diversos exemplos; as condenações praticamente sumárias da Inquisição contra o povo cátaro, no século XIII, bem como o julgamento de líderes nazistas pelo Tribunal de Nuremberg, após a Segunda Guerra Mundial, expressam os perigos existentes para a correta aplicação do Direito quando se desprezam os princípios do juiz natural e da imparcialidade. Não se pode falar que se exerceu jurisdição nesses casos; a atividade aí praticada foi de cunho notadamente inquisitorial.
Vale lembrar, porém, que reduzir o princípio em questão à simples proibição de criação de tribunais ad hoc é retirar-lhe, de certo modo, parte da esfera conceitual; como bem preceitua Alexandre de Moraes (2003)9, a ideia de juiz natural impõe também a plena observância de todas as regras definidoras de competência, de modo que não haja invasão da área de atuação de um órgão jurisdicional por outro – o que, sem dúvidas, poderia dar oportunidade ao cometimento de arbitrariedades por parte do Estado-juiz e manchar a crença na imparcialidade da jurisdição. As competências jurisdicionais de determinado órgão, portanto, não devem estar à livre disposição de ninguém, encontrando-se previamente estabelecidas pela Carta Constitucional, sob o risco de se subverter completamente a lógica do exercício da jurisdição.
Assim afirmamos porque uma de suas características essenciais é a imparcialidade do juiz; ora, havendo desrespeito às regras demarcadoras de competência, não é apenas a norma processual que sofre violação – mas sim o próprio cerne da atividade jurisdicional, uma vez que um de seus elementos constituidores foi colocado sob forte ameaça. Corre-se o risco do retorno à Nuremberg ou à Inquisição.
Lembremo-nos do caso de Cristo; Pôncio Pilatos, o procurador romano que o sentenciou à morte, não tinha competência para julgá-lo – ele próprio admitiu essa verdade. Não tendo Jesus atentado contra nenhuma lei da República, mas sim, supostamente, contra a dogmática religiosa judaica, não competia à justiça romana processá-lo e condená-lo. Temeroso diante do clamor social pela execução do judeu, porém, decidiu Pilatos violar o princípio do juiz natural e assumir uma competência que lhe era vedada. O resultado desse absurdo jurídico é mundialmente conhecido.
Veja-se, portanto, que não apenas a imparcialidade do juiz guarda estreita relação com o bom exercício da função jurisdicional; o respeito à competência preestabelecida10 também é de suma importância. Pilatos não possuía nenhum interesse particular quanto ao destino de Jesus, sendo indiferente à sua sorte – era, pelo menos em tese, imparcial; invadindo competência que não lhe pertencia, porém, violou flagrantemente o princípio do juiz natural e condenou à morte um inocente.
2.7. DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
O princípio do duplo grau de jurisdição é um dos que mais causa polêmicas na doutrina especializada. Isso se dá porque há quem entenda que o mesmo não vem expresso no texto constitucional, podendo ser dele deduzido, enquanto outros compreendem que o termo “recursos”, no inciso LV do art. 5° da Constituição (dispositivo que trata do contraditório e da ampla defesa, com todos os “meios e recursos a ela inerentes”), foi empregado pelo constituinte em sentido técnico estrito – estando o referido princípio, portanto, explícito no texto constitucional.
Apesar da controvérsia, há relativo consenso quanto à existência de um duplo grau de jurisdição no sistema constitucional-processual brasileiro; emana desse princípio a ideia de que toda decisão judicial pode ser amplamente revisada por um tribunal hierarquicamente superior àquele que proferiu a decisão inicial. Na lição de Cassio Bueno (2012, p. 157), o preceito em questão abrange a possibilidade de exigir que todas as razões que levaram a autoridade que exerce a jurisdição de primeiro grau a decidir de determinada forma sejam reexaminadas pela que exerce a de segundo; ou seja, que os itens expostos na fundamentação da sentença possam ser revistos pelo tribunal hierarquicamente superior.
Vale salientar que o ordenamento pátrio não adotou o referido princípio de forma absoluta (BRAGA, 2008)11; há casos, como aqueles em que a Constituição prevê a competência originária para o Supremo Tribunal Federal (art. 102, I), em que não há possibilidade de submeter a matéria para reexame em um órgão jurisdicional superior – por razões lógicas, inerentes à própria organização do Judiciário. Não se visualiza nessa hipótese, portanto, a existência de duplo grau de jurisdição.
2.8. EFETIVIDADE
Atento às evoluções no conceito de jurisdição, o constituinte de 1988 estabeleceu como princípio constitucional do processo a efetividade, expresso no inciso XXXV da Constituição.
Como afirmamos no tópico 2.1, supra, para onde remetemos o leitor, a superação das teorias clássicas de jurisdição impôs que se adicionasse à ideia de processo um novo conceito: o de efetividade, ou seja, de produção de resultados jurídicos perceptíveis e idôneos a promover a tutela do direito no plano material. Portanto, uma vez provocada a jurisdição e rompida a barreira da inércia, nenhuma lesão ou ameaça a direito pode deixar de ser por ela corretamente tratada; não pode o Estado-juiz, ao contrário do que pregava Chiovenda, alegar a inexistência de previsão legal de um meio adequado a tutelar o direito material.
Essa afirmação pode ser reforçada, ainda, pelo dever imposto ao juiz de exercer o controle de constitucionalidade quando da aplicação da lei – incluindo-se nessa obrigação o controle da omissão inconstitucional. Dessa forma, silenciando a lei processual quanto à forma adequada de fornecer proteção a determinado direito, deverá o juiz considerar atentatória à Constituição tal omissão – por ferir diretamente o princípio da tutela jurisdicional efetiva. Caberá a ele, consequentemente, saná-la e definir o meio processual adequado à situação que lhe foi apresentada.
O Código de Processo Civil brasileiro, felizmente, concede ao julgador uma ampla gama de instrumentos para atingir os fins almejados pelo processo, abrindo também a possibilidade de que outros, além dos enumerados, sejam utilizados; ainda que não contemplasse tal previsão, pelas razões explicitadas no parágrafo anterior, poderia o juiz valer-se de outros meios não previstos na lei processual, sob pena de violar o princípio que estamos analisando. A doutrina cita, como exemplos clássicos de concretização do comando constitucional, os artigos 461 e 461-A do Código.
Entendemos que a efetividade abrange, também, o direito à duração razoável dos trâmites processuais – que é reconhecido por muitos doutrinadores como um dos princípios constitucionais do processo; é claro que tal celeridade (que, aliás, é um dos temas mais debatidos pelos processualistas) não pode ser realizada através da não observação de outros preceitos fundamentais do processo. Não é cabível que se passe por cima dos ritos inerentes ao contraditório e à ampla defesa, por exemplo, para conferir maior rapidez aos procedimentos judicias; a correta harmonização entre esses princípios, notadamente em choque, deve ser feita pelo legislador e pelo aplicador do Direito, em atenção às demandas de cada um deles.
Finalizando as considerações sobre a tutela jurisdicional efetiva, é importante salientar que, quando da escolha do meio processual adequado à tutela do direito material, o juiz deverá estar atento ao critério da proporcionalidade. O instrumento escolhido, consequentemente, deverá ser adequado à proteção do direito, sem dúvida, mas também não poderá restringir de forma desnecessária os direitos daquele a quem se dirige. Utilizando os conceitos da doutrina alemã, o meio processual está vinculado, paralelamente, tanto à proibição de insuficiência na tutela do direito como à proibição de excesso quando da intervenção na esfera jurídica de quem sofrerá suas consequências. Dessa forma, apenas será constitucionalmente legitimado o procedimento que, apto a proteger de forma suficiente o direito em questão, causar a menor restrição possível na liberdade ou patrimônio da parte que suportará seus efeitos.