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O princípio da publicidade numa perspectiva constitucional

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Agenda 09/03/2013 às 09:15

O espaço público é entendido a partir da criação de procedimentos pelos quais todos aqueles afetados pelos atos do poder possam não só discuti-lo, mas também interagir na sua construção.

Introdução

O princípio da publicidade vem expresso na Constituição, em seu art. 37, caput, como sendo um dos tantos direcionamentos a serem seguidos pela Administração Pública. Este princípio é tratado com frequência em livros e artigos por doutrinadores, contudo, raramente o relacionam com o próprio Estado Democrático de Direito, como sugeriu o constituinte original ao colocá-lo como sendo um dos princípios fundamentais da administração.

Dentro de um tema tão amplo quanto a publicidade, pode-se optar por diversos subitens a serem trabalhados. Poderia ser pesquisada simplesmente a publicidade no seu sentido formal, como requisito fundamental para a validade e a eficácia dos atos administrativos. É neste sentido, inclusive, que a maior parte dos doutrinadores tanto de direito administrativo quanto constitucionalistas tentam definir o princípio da publicidade.

Entretanto, este artigo a tratará, especialmente, acerca da publicização de tais atos e não uma mera publicidade formal. Desta forma, o presente trabalho defende a publicização dos atos públicos, ou seja, não bastaria, em um Estado Democrático de Direito, a mera e vaga possibilidade de acesso da população aos atos, mas sim o efetivo conhecimento por parte de todos não só dos atos já concluídos, mas também a possibilidade de influenciar no processo de tomada de decisão.

Desta forma, será defendida no trabalho não a simples publicidade em seu sentido formal, mas sim uma publicização material dos atos da administração. Essa publicidade material não se restringe somente a publicação dos motivos que ensejaram o ato, como defende alguns autores, mas também o aumento da efetividade da publicidade, a fim de que, de fato, todos tenham real acesso às decisões.

Assim, a delimitação do tema será o estudo da publicização, em seu sentido material, das decisões e dos atos administrativos, demonstrando como esse princípio está diretamente ligado ao Estado Democrático de Direito, cidadania participativa e a maior legitimidade destes atos. Para tal, deverá ser discutida a maior participação popular bem como um procedimento mais democrático e sua forma de implementação. Não será, contudo, apesar de também ser pertinente ao tema, tratado o tema da linguagem empregada na publicidade destes atos administrativos, uma vez que também ela deveria atender aos princípios do Estado Democrático de Direito.

Peter Häberlepropõe uma nova questão acerca dos participantes no processo de interpretação constitucional. O autor afirma que atualmentea hermenêutica jurídica estaria apenas associada a uma sociedade fechada de intérpretes, formada por juízes e procedimentos formais. Todavia, para o constitucionalista, esse tipo de interpretação estaria equivoca, defendendo então que neste processo de interpretação também devessem participar todos os atores políticos, e não apenas os órgãos oficiais. Não haveria, assim, um número restrito de intérpretes da Constituição, visto que quem vive a norma acabaria por interpretá-la. [1]

O destinatário da norma, assim, deveria ser um participante ativo no processo hermenêutico. [2]A formação e o desenvolvimento posterior da norma também deveriam ser pluralistas, fazendo uma mediação entre Estado e sociedade para o desenvolvimento de uma teoria democrática. [3]Neste sentido, é imprescindível a publicação efetiva e eficaz dos atos administrativos, a fim de que possa ocorrer a participação dos demais atores na hermenêutica jurídica.

Ademais, também permeará este trabalho a idéia de que o olhar nunca é objetivo. Os fatos sempre são vistos através dos olhos do direito, que foram se modificando ao longo da história. Então, haveria dois níveis, no mínimo, pelos quais passa a análise dos fatos: inicialmente o nível jurídico, a fim de adaptar os fatos ao olhar do direito. [4]Posteriormente, o nível pessoal, que intersubjetivamente relaciona o objeto de estudo ao cientista. Assim, como afirma o antropólogo Clifford Geertz: “A compreensão de que os fatos não nascem espontaneamente e de que são feitos, ou, como diria um antropólogo, são construídos socialmente por todos os elementos jurídicos.” [5]

Não há como estudar o direito, e no caso específico, o direito constitucional, sem levar em consideração os aspectos culturais e históricos do momento da realização do estudo. Desta maneira, não se pode dissociar o estudo do princípio da publicidade sem se compreender que esta tese está datada historicamente e que não há como ser separada da realidade social brasileira atual. Desprezando-se estes pressupostos, não há como se realizar um estudo científico acerca do tema a ser apresentado. [6]

Assim, com a consciência que todo saber é limitado, o presente artigo, assim como todo o conhecimento, também está inserido dentro de um dado contexto histórico e social. [7]Como afirma Geertz: O direito, como tenho afirmado um pouco em oposição às pretensões encobertas pela retórica acadêmica – é saber local; local não só com respeito ao lugar, à época, à categoria e variedade de seus temas, mas também com relação a sua nota característica – caracterizações vernáculas do que acontece ligada às suposições vernáculas sobre o que é possível.” [8]

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Deste modo, todo saber é local, assim como este que será apresentado. Não há como se pretender a universalidade de um conhecimento que necessariamente só pode ser atingido com a influência do saber já adquirido e pelas experiências sociais vivenciadas pelo pesquisador. Desta forma, também o presente trabalho tem esta limitação, enquadramento este que só pode ser suplantado através do estudo de outras visões de mundo. Contudo, ainda estas serão filtradas a partir do conhecimento já adquirido, e neste compreendido todas as suas premissas e preconceitos.

Deste modo, afirma Luís Roberto Barroso: “A crença na Constituição e no constitucionalismo não deixa de ser uma espécie de fé: exige que se acredite em coisas que não são direta e imediatamente apreendidas pelos sentidos.” [9]É com essa fé que o presente artigo foi construído. Não com uma fé cega e acrítica, como a descrita por Nietzsche[10], porém com uma crença que, ainda que na pós-modernidade, o constitucionalismo e publicização podem ser defendidos.


A publicidade no Estado Democrático de Direito: transparência da Administração Pública

A concepção constitucional do princípio da publicidade

O Estado de Direito visa garantir certas liberdades fundamentais. Estas liberdades devem estar contidas em uma Carta de Direitos ou qualquer outra lei classificadas como constitucional. A forma institucional para agrupá-las, segundo o filósofo político John Rawls é por meio da justiça. [11]Esta, segundo o autor, é uma das virtudes das instituições políticas e sociais. Quando aplicada a uma instituição, necessariamente há a eliminação de distinções arbitrárias, com o estabelecimento de estruturas para balancear direitos conflitantes ao assinalar poder e deveres, privilégios e penalidades. [12]

Desta forma, os princípios são também uma forma de conformar a autoridade do Estado à medida que estabelecem as diretrizes básicas para as atitudes a serem tomadas, sem as quais as ações não podem ser consideradas legítimas, além de garantir a justiça. Afirma Luís Roberto Barroso que:

“O constitucionalismo chega vitorioso ao início do milênio, consagrado pelas revoluções liberais e após haver disputado com inúmeras outras propostas alternativas de construção de uma sociedade justa e de um Estado democrático. A razão de seu sucesso está em ter conseguido oferecer ou, ao menos, incluir no imaginário das pessoas: (i) legitimidade – soberania popular na formação da vontade nacional, por meio do poder constituinte; (ii) limitação do poder – repetição de competências, processos adequados de tomada de decisão, respeito aos direitos individuais, inclusive das minorias; (iii) valores – incorporação à Constituição material das conquistas sociais, políticas e éticas acumuladas no patrimônio da humanidade.” [13]

O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre Ética e Direito. Os valores historicamente construídos em uma dada sociedade passaram a ter conteúdo também jurídico, sendo abrigados na Constituição na forma de princípios explícitos ou implícitos. [14]

Dentre esses princípios se encontra o da transparência dos atos administrativos, cristalizado no art. 37, caput, da Constituição Federal, que assim preceitua: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:” [15]

Não há, assim, inovação na criação em si de princípios jurídicos, o que é realizado desde a antiguidade clássica. Todavia, a autenticidade se encontra no atributo de normatividade conferido a eles. [16]

A democracia na pós-modernidade pressupõe a participação popular na esfera pública de decisão, não se esgotando apenas na eleição de seus representantes. [17]Ela deve ser considerada mais como um direito do que como uma forma de governo. Assim, os cidadãos devem fiscalizar os atos praticados e também participar do próprio processo de tomada de decisão, na medida em que coloca a discussão do tema ao alcance de todos. Essa inclusão é fundamental para uma maior legitimidade da decisão que será tomada ao final, uma vez que é possível a apresentação das mais diversas posições e oferece a criação de um espaço ao debate público de ideias. Neste sentido, vem o conceito de consultas públicas, audiências abertas, processos de decisões mais democráticos, entre outros.

Todos estes instrumentos de abertura democrática visam, especialmente, a legitimação dos atos administrativos pelo povo, que é o titular de todo o poder, segundo a própria Constituição. [18]O Estado constitucional é tão somente uma condição necessária, mas de nenhuma maneira suficiente para a concretização da democracia. [19]Neste sentido, afirma Canotilho que:

“O Estado Constitucional não é e nem deve ser apenas um Estado de direito. (…) Ele tem que estruturar-se como Estado de direito democrático, isto é, uma ordem de domínio legitimada pelo povo. A articulação do ‘direito’ e do ‘poder’ no Estado constitucional significa, assim, que o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em termos democráticos. O princípio da soberania popular é, pois, uma das traves mestras do Estado constitucional.” [20]

Apenas a soberania popular, garantida por meio de procedimentos e direitos que assegurem a participação de todos no espaço público de decisão, garante a formação democrática da vontade popular. Esta esfera pública, independente do Estado, deve permitir a todos a interferência no poder público e nas instituições que de qualquer modo interfiram em suas vidas. [21]Nestesentido, defende Rawls:

“Aristotle thought that it was a peculiarity of man that he had sense of the just and the unjust and that the participation in a common understanding of justice makes a polis. Analogously, one might show that the participation in the understanding of justice as fairness makes a constitutional democracy.” [22]

Neste sentido, a justiça, segundo o conceito de John Rawls, se fundamenta em dois princípios básicos. [23]O primeiro afirma que todos aqueles afetados por determinada instituição, como é o caso do Estado e seus atos, têm igual direito de participar de suas decisões. O segundo afirma que toda desigualdade deve ser motivada. Desta forma, o primeiro pilar determina a necessidade de uma justificativa para que se quebre a situação de igualdade inicialmente trazida pela lei e o segundo especifica quais tipos de desigualdades são aceitas como legítimas.[24]

Apesar das várias críticas possíveis a esta teoria, justamente por fundamentar o conceito de democracia em uma lei moral elevado, tal como o ideal de justiça, [25]ainda assim a teoria de Rawls demonstra que o acesso de alguns poucos às decisões gera uma desigualdade na população que apenas pode ser aceita em alguns casos muito específicos dentro do Estado Democrático de Direito. A massificação da desinformação quanto aos atos de poder não pode de forma alguma ser o padrão dentro dos limites modernos de Estado.

Nesta nova concepção estatal, também a Constituição assume um papel diferenciado. Ela deixa de ser mero depositário de valores sem qualquer conteúdo normativo, sendo apenas programáticas, para se tornar a norma jurídica fundamental do Estado. Neste constitucionalismo moderno, o papel do intérprete e a hermenêutica constitucional também não podem seguir o padrão tradicional.

Peter Häberle, como já inicialmente introduzido, defende que a interpretação constitucional até agora praticada tem como atores um número extremamente restrito, formado basicamente por juízes e órgãos oficiais. Defende este constitucionalista que o processo de interpretação da Constituição deve ser realizado também por aqueles vivenciam diretamente a norma, que acabam por interpretá-la de qualquer forma em sua vivência diária[26]. Deveria existir, assim, uma sociedade aberta de participantes no processo hermenêutico formada por todos os integrantes políticos do Estado.  [27]

A teoria democrática passaria necessariamente, pois, por uma constante troca entre o Estado e a sociedade, sendo desta maneira que se daria o desenvolvimento e a formação das normas bem como da própria hermenêutica da Constituição. [28]Deste modo, os cidadãos se tornam também participantes ativos na interpretação constitucional. [29]

No que se refere à legitimação dos intérpretes, afirma Häberle que a competência formal pertence apenas aos órgãos estatais e parlamentares. Contudo, os demais atores aqui propostos também estão vinculados à Constituição, só que de modo distinto. [30]Se a interpretação for tida como processo aberto, então não há mais sentido na ligação entre Constituição e legitimados. Um grande número de intérpretes só reforça a teoria da vinculação entre realidade social e processo de interpretação. Eles são, pois, a realidade pluralista. [31]

Nesta concepção, a democracia não seria apenas delegação formal de poder do povo aos órgãos estatais. Numa sociedade aberta, ela também se desenvolve através de formas de mediação entre o processo público da política e da práxis. Deste modo, deve se desenvolver o diálogo entre a necessidade (realidade) e a Constituição. Assim, a participação popular não fornece apenas legitimação ao processo político, ela também é elemento pluralista para a interpretação constitucional. [32]

Para que houvesse uma real publicização dos atos públicos, de modo a permitir que todos pudessem ser efetivamente participantes do processo hermenêutico constitucional, seria necessário re-pensar o verdadeiro sentido do princípio da publicidade. Os modos atuais de divulgação necessitam ser revistos em face de sua patente ineficácia de tornar a decisão de fato pública. [33]Em um Estado Democrático de Direito é preciso que a população efetivamente tome conhecimento dos atos tomados para que possa, então, ocorrer a discussão e a participação, além de concorrer para o controle externo da administração pela população.

Um sistema jurídico viável, então, une o ‘se-então’ da existência com os eventos do ‘como-portanto’ da experiência, ambos sob a perspectiva local, dando a impressão que são versões com maior ou menor grau de superficialidade sobre a mesma coisa. [34]Alia-se, deste modo, a realidade social, mutável por excelência, com o direito e suas instituições tradicionalmente pouco flexíveis.

O direito não apenas reflete a realidade que o cerca, mas mais do que isso, ele a influi e a determina. [35]As ciências naturais a pouco descobriram ser impossível a separação entre sujeito e objeto. Assim, também não há essa separação tão nítida no direito. Ao tentar relacionar o ser com o dever ser, o direito não é apenas responsável por criar regras que supostamente refletem uma realidade social já existente. Simultaneamente ao refleti-la, influencia também o comportamento social, de modo que ele não será o mais o mesmo daquele que tentou inicialmente refletir.

Justamente por influenciar e em certa medida determinar a sociedade em que se insere, o direito deve acompanhar as mudanças sociais. As modificações da sociedade devem implicar em transformações em suas instituições. Os sociólogos Peter Berger e Brigitte Berger alertam para essa ideia de imutabilidade afirmando que as instituições “na verdade, mudam constantemente – e precisam mudar, pois não passam de resultados necessariamente difusos da ação de inúmeros indivíduos (…) ela muda constantemente, mantém-se num fluxo dinâmico e, às vezes, sofre convulsões violentas.” [36]

Assim, quaisquer tentativas de encontrar elementos imutáveis no direito vão de encontro ao próprio conceito moderno de direito e de hermenêutica constitucional, que defendem a constante e permanente transformação do direito, como texto que é. Neste sentido, a concepção acerca do conteúdo do princípio da publicidade também não pode mais ser puramente formalista e tecnicista. [37]Deve abranger ainda os novos conceitos introduzidos, como democracia participativa, espaço público de discussão, entre outros.

Há de se tomar cuidado, todavia, com a ideia de evolução. Não se pode acreditar que tudo na atualidade é melhor do que foi no passado. Nem tão pouco, como adverte o jurista José Reinaldo de Lima Lopes, “imaginarmos que nosso presente é um puro desenvolvimento evolutivo e natural do passado que nos precedeu.”[38]Defende-se, aqui, simplesmente uma adaptação do direito à realidade social, política e histórica contemporânea.

Nesta linha também escreve Cármen Rocha, afirmando que:

“Dois elementos caracterizadores do Direito Constitucional Contemporâneo encarecem, pois, os princípios como pontos cardeais desta disciplina na atualidade: a sua legitimidade, sem a qual o Direito se perde como referência e possibilidade concreta de realização da norma justa; e a atualização permanente do Direito Constitucional para que o sentido de justiça que a sociedade oferece e que se altera em cada tempo e local não se perca na poeira dos textos normativos.” [39]

Como afirma o antropólogo Geertz, “Necessitamos, no final, algo mais que saber local. Precisamos descobrir uma maneira de fazer com que as várias manifestações desse saber se transformem em comentários umas das outras, uma iluminando o que a outra obscurece.” [40]Neste sentido, a publicização pode ser um importante ponto de partida, na medida em que fornece aos vários campos do conhecimento ao menos as informações mínimas necessárias sobre as discussões que estão ocorrendo dentro de cada área do saber, conhecimento sem o qual se torna impossível a produção de qualquer comentário ou manifestação acerca do tema.

Sobre a autora
Cinthya de Campos Mangia

Procuradora Federal em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MANGIA, Cinthya Campos. O princípio da publicidade numa perspectiva constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3538, 9 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23915. Acesso em: 22 nov. 2024.

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