7. Conclusão:
A despeito de o sistema jurídico brasileiro prezar pela proteção da criança diante dos possíveis abusos provenientes da publicidade comercial, a ausência de normas reguladoras específicas retiram a eficácia de tais dispositivos. Na realidade prática, portanto, as crianças seguem expostas às influências lesivas advindas dos anúncios publicitários, situação diante da qual os órgãos estatais pouco podem intervir. Apesar de juristas, legisladores e setores da sociedade civil proporem meios normativos de regulamentação publicitária mais precisos, existe uma forte resistência dos setores que prezam pelo sucesso financeiro das indústrias de alimentos. Representantes desses interesses chegam a distorcer interpretações normativas, criando conceitos desprovidos de juridicidade, e que, infelizmente, costumam estar presentes nas linhas dos pareceres de alguns parlamentares.
Ao longo do processo de análise do material estudado, percebeu-se que uma colocação foi recorrente nos que são contrários à regulação estatutária da publicidade: dizer que são os pais os principais responsáveis por “dar limites” aos filhos. Muitos políticos e empresários do ramo publicitário costumam, em audiências, citar experiências exemplares de educação que realizam com os seus próprios filhos. Esses sujeitos, porém, desconsideram que a maioria das famílias brasileiras sofre com problemas econômicos e sociais que dificultam a promoção do desenvolvimento de suas crianças, onde é comum a ausência paterna e/ou materna na maior parte da sua rotina. Tal particularidade impede que os adultos participem devidamente do controle do conteúdo assimilado pelos filhos, o que torna a família vulnerável à influência prejudicial dos meios publicitários.
Mesmo diante famílias que possuem uma estrutura mais adequada para a criação dos filhos, Luiz Carlos Hauly fez sensata consideração:“Os pais não conseguem, sozinhos, vencer a TV, que é o maior meio de comunicação da história da humanidade”8.
Outra particularidade presente nos discursos de quem é contrário a prática de regulação estatal: são incontáveis as tentativas de considerar a publicidade comercial como um alicerce da imprensa livre, já que ela se consiste no principal sustentáculo financeiro das empresas de comunicação. Através de justificativas como esta, os setores interessados criaram o termo “liberdade de expressão comercial”, uma ficção jurídica que visa classificar a regulação publicitária como uma espécie de censura. Para Mariana Ferraz9 esse discurso é improcedente, pois a regulação da atividade publicitária não está voltada para nenhum tipo de restrição a idéias ou opiniões morais e religiosas. Visa apenas a eliminação de técnicas abusivas utilizadas para que indivíduos em desenvolvimento adquiriram produtos prejudiciais à sua saúde.
Defender um Estado menos participativo na tutela pelo desenvolvimento das crianças é discurso incompatível com um país democrático de Direito que ostenta a supremacia da CF. A proteção das crianças não pode ficar adstrita à esfera privada, pois, como mencionado em tópicos anteriores, a própria Constituição define que a sociedade e o Estado são corresponsáveis pelo cuidado delas. A família brasileira não tem condições de arcar sozinha com tal responsabilidade, por isso tem o direito a essa proteção jurídica.
É verificável, com base em análise sistematizada, que os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, as resoluções da ANVISA que determinam restrições à prática da publicidade infantil de alimentos, além do Marco Regulatório das Comunicações, estão em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro. Tais medidas restritivas da publicidade são meios de efetivação jurídica da CF, do CDC e do ECA, documentos legais que carecem de maiores precisões quanto ao balizamento da atividade publicitária comercial. Ademais, podem se constituir importante instrumento de combate às altas taxas de obesidade que atualmente afetam as crianças.
A obesidade infantil é um grave problema de saúde que se propaga velozmente, dia após dia, o que requer meios de intervenção capazes de evitar um prejuízo incalculável para o futuro do país, tendo em vista suas devastadoras conseqüências sociais e econômicas. Compreender que uma solução sustentável para os problemas de saúde não depende única e exclusivamente de políticas sanitárias, mas também de intervenções sociais sistêmicas é ponto central de fundamentação para a adoção de efetiva regulação publicitária.
Isabella Henriques, jurista que é referência nacional em proteção da criança frente à publicidade comercial, defende que o objetivo de limitar a publicidade infantil não é abolir a anúncio de produtos de criança. Na ocasião de uma audiência pública realizada em 200910, a jurista alegou que é necessária apenas uma mudança de paradigmas: o que não deve existir mais é a publicidade que “fala” com a criança. Produtos podem ser anunciados, mas em uma linguagem que não se direcione a persuasão infantil. A mensagem deve ter como destino os pais, avós ou qualquer pessoa apta a realizar as escolhas mais seguras para a criança. Alguns opositores mencionaram que essa seria uma forma de “criar nossos filhos em uma redoma de vidro”, forma esta extremamente superficial de enxergar o universo infantil, pois se opõe ao óbvio saber popular: que o adulto deve escolher pelos filhos, para que estes aprendam, a partir da observação, a realizar suas próprias escolhas no futuro. Entregar à criança um poder de escolha maior do que ela está pronta não fará dela mais preparada para se determinar no futuro, pois ninguém aprende fazendo errado.
8. Notas:
[1]: A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 24 da ANVISA, publicada em 29 de Junho de 2010, dispõe sobre a oferta, propaganda, publicidade, informação e outras práticas correlatas cujo objetivo seja a divulgação e a promoção comercial de alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio, e de bebidas com baixo teor nutricional. Atendendo à consulta formulada pelo Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (CONAR), a Advocacia Geral da União suspendeu a RDC nº 24 no dia 13 de Julho do mesmo ano (cerca de duas semanas após a publicação da resolução). Os aspectos jurídicos que envolvem a questão serão abordados no decorrer do presente estudo.
[2]: Se comerciais agressivos forem veiculados na Bandeirantes ou Rede TV, por exemplo, o CONAR, que comumente já não tem possibilidades de aplicar punições efetiva, nada poderão fazer, pois as empresas em questão não são vinculadas ao órgão.
[3]: Neste ponto, vale um adendo sobre o tradicional método de diagnóstico da obesidade: o Índice de Massa Corpórea (IMC). Para muitos nutricionistas, este método é impreciso quanto à quantidade absoluta de tecido adiposo nos seres humanos. Muitos indivíduos, mesmo fora da faixa de obesidade, podem ter taxa de gordura que levem ao desenvolvimento de doenças. O simples fato de possuir gordura localizada em algumas regiões, como o abdômen, pode ser considerado um fator de risco importante para uma série de doenças, das quais se destacam as cardiovasculares. (NONINO-BORGES).
[4]: Hoje se sabe que muitos problemas de saúde antes tidos como “doenças de velho” começam a ser instaladas nos primeiros anos de vida, devido exposição precoce a fatores de risco diversos. Apenas sua manifestação clínica é que ocorrerá mais tarde. Dentre os problemas, destaca-se a doença cardiovascular conhecida como aterosclerose, que pode surgir a partir dos dois anos de vida, vindo a acarretar graves sintomas na vida adulta (dentre eles: infarto cardíaco, acidente vascular cerebral e gangrena).
[5]: OMS – Organización Mundial de La Salud. Conjunto de recomendaciones sobre la promoción de alimentos y bebidas no alcohólicas dirigida a los niños, 2010.
[6]: Para citar um estudo que chegou a essa conclusão: em estudo canadense, crianças teriam que optar entre o produto anunciado por anúncio publicitário e o que a mãe recomendou. Quando a mãe estava ausente, boa parte deles contrariava sua vontade, escolhendo o produto “proibido” (GALINDO, 2011, p. 8).
[7]: Entrevista dada por Octávio Florisbaldo ao CENP em Revista (nº 11, abr. de 2007), uma publicação do Conselho Executivo das Normas-Padrão. A entrevista foi intitulada como: “A sociedade não precisa da tutela do Estado”.
[8, 9, 10]: Conteúdo extraído na ocasião da Audiência Pública realizada na CDEIC em 18/06/2009, que tratou do PL 5.921/2001.
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