3. O PROBLEMA SEXUAL NAS PRISÕES
3.1 Breve panorama do Sistema Prisional Brasileiro na atualidade
A questão da privação de liberdade deve ser abordada em função da pena tal e como se cumpre e se executa, com os estabelecimentos penitenciários que temos, com a infra-estrutura e dotação orçamentária que dispomos, nas circunstâncias e na sociedade atuais e, principalmente, em função dos resultados obtidos com a aplicação de tal sanção. (MIR PUIG apud GUIMARÃES, 2002, p. 80)
Para onde quer que se olhe, examine ou escave através dos estudos jurídicos, visível a situação de profunda crise por que passa o sistema prisional no Brasil.
De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional, em censo realizado em junho de 2008, o total populacional no Sistema Penitenciário (Federal, Estadual e Polícia) é de 440.013 para um número de vagas que não ultrapassa os 277.847, ensejando um déficit de 162.166.
Um fato torna ainda mais impressionante uma realidade já assustadora e degradante de superlotação nos presídios: 58.901 condenados, que deveriam estar regular e obrigatoriamente recolhidos em penitenciárias, cumprem, indevidamente, suas penas em cadeias públicas e delegacias de polícia espalhadas pelos quatro cantos do país.
As condições de vida dos detentos nestes locais são terríveis. A falta de espaço transforma piso úmido, banheiros, redes e até mesmo grades em camas improvisadas. A luta por um espaço e pela sobrevivência é diária, sendo de importância fundamental os apoios financeiro e afetivo de suas famílias, quando existentes, e, quando possível.
A população carcerária no Brasil, segundo dados do Human Rights Watch, como no resto do mundo, é em sua maioria formada por homens jovens, de baixa renda e nível de escolaridade:
Mais da metade dos presos tem menos de trinta anos; 95 % são pobres, 95% são do sexo masculino e dois terços não completaram o primeiro grau (cerca de 12% são analfabetos). Devido à pobreza e antecedentes à margem da sociedade, eles e seus familiares possuem pouca influência política, o que se traduz em poucas chances de obter apoio para colocar um fim nos abusos cometidos contra eles. O crime mais comum entre os detentos é o roubo, com cerca de 35% dos detentos presos ou condenados por roubos; outros crimes comuns são furtos, homicídios e o tráfico de drogas. Dos estados nos quais informação sobre a cor da pele dos detentos está disponível, parece que a distribuição por raça não difere significativamente da distribuição do país como um todo, exceto pelo fato de estarem os pretos super-representados: aproximadamente metade dos presos é de brancos enquanto 17% são pretos e 30% são pardos ou mulatos. Apenas cerca de mil estrangeiros são mantidos presos, incluindo presos da Bolívia, Nigéria, Uruguai, África do Sul e Argentina. (Censo Penitenciário de 1995 apud HUMAN RIGHT WATCH, 1998)
Dados mais recentes, tendo como período de referência o mês de junho de 2008, divulgados pelo Depen, apontam índices percentuais próximos a 40,25 para quantificação dos apenados da cor branca. Pardos e negros alcançam 38,9% e 16,72% da população carcerária, respectivamente.
Assim, erguem-se os argumentos que instauram a falência tanto da política prisional quanto do sistema em si, atrelando a crise na gerência e condições do cárcere e o modelo político-econômico neoliberal. De ver-se que a criminalidade e vitimização nascem dos estratos sociais menos favorecidos, onde direitos e garantias fundamentais são tolhidos.
A deficiência das penas privativas de liberdade evidenciam as condições sub-humanas dos estabelecimentos, levando a motins, fugas e rebeliões que introjetam os novos valores padronizados no confinamento:
É devido à ociosidade, à ausência da atividade laboral, e à inércia dos estabelecimentos de prisão que brotam no condenado a consciência do estado de ócio, o enfraquecimento e a posterior perda de seus valores essenciais, implicando assim o fenômeno da reincidência. O ambiente carcerário acaba por despertar condutas nocivas à sociedade, quando a finalidade maior da pena é a ressocialização do condenado. (MADEIRO, 2001, p. 76)
Este mal necessário, representado pela prisão na atualidade, tem em Bitencourt (1993, p. 143) seu maior crítico em termos de eficácia das finalidades retributiva e preventiva. Citando García-Pablos, coaduna com a impossibilidade de reabilitar o recluso por sê-la a prisão a antítese da comunidade livre, e, assim, artificial e anti-natural:
A pena não ressocializa, mas estigmatiza, que não limpa, mas macula, como tantas vezes tem-se lembrado aos “expiacionistas”; que é mais difícil ressocializar uma pessoa que sofreu uma pena do que outra que não teve esse amarga experiência; que a sociedade não pergunta porque uma pessoa esteve em um estabelecimento penitenciário, mas tão somente se esteve lá ou não.
Outro argumento sustentado pelo autor é a da crise da pena privativa de liberdade pelas já citadas condições materiais e humanas em que se desenvolve a execução, incompatível com a reabilitação. (BITENCOURT, 1993, p. 144)
A justificativa para tantas posições permeando o fim das penas privativas de liberdade pelo reconhecimento de sua situação caótica nos dias atuais merece respaldo, contudo deve-se procurar a essência para toda essa problemática, tendo em vista que, assim, como é impossível fazer vista grossa para a degradação estrutural das prisões como se apresentam em nossa sociedade, também o é incompatível a previsão imediata de se relegá-las ao passado, já que fundamental para a manutenção da ordem social e do bem comum.
Cipriani (2005, P. 23) indaga se a pena privativa de liberdade teve alguma oportunidade de sucumbir, implicando este questionamento no reconhecimento de que o problema da prisão pode estar nela mesmo, e então não se teria fundamento o seu fracasso nas finalidades de repersonalização do apenado e, sim, na ausência do próprio Estado.
Tendo consciência da imprescindibilidade, na atualidade, da co-existência da pena privativa de liberdade com outras alternativas menos gravosas e estigmatizantes, deve-se reservar a ela um leque menor de possibilidades para se fazer concreta, redefinindo tipos penais a ela correspondentes como adequada sanção, bem como tornar ainda mais viáveis e reais os seus programas de prevenção e ressocialização.
O otimismo e a grande esperança ficam por conta da história da própria humanidade contada por García-Pablos (1993, p. 397): “de qualquer modo, sabe-se que o progresso é constituído dia-a-dia em razão do trabalho de reformadores que se comprometem com a realidade e a transformam”.
3.2 O cárcere e a privação da sexualidade
Não se pode desconhecer a grave problemática que os estabelecimentos prisionais penais enfrentam no tocante à abstinência sexual dos presos, geradora não só de danos fisiológicos pessoais, como de homossexualismo e, sobretudo, numa decorrência lógica dessas duas contestações, de conturbações, às vezes inafastáveis, insuperáveis, na vida prisional. (TUCCI apud NOGUEIRA, 1996, p. 66-67)
Parece fácil e normal falar sobre sexo após a revolução sexual. Ele está a nossa volta, à disposição de todos, “naturalmente” mercadorizado. Mas essa aparente liberação sexual, contudo, esconde o que realmente está à venda.
Michel Foucault, em seu livro História da Sexualidade, revela que falar sobre o sexo, cientificá-lo, como é feito na atualidade, é uma forma de evitá-lo, tanto o ato em si, como o pensar sobre ele fora dos limites de intimidade inerente ao ser humano, reduzindo-o a uma visão biologizante. Para ele, ao mesmo tempo em que é mostrado como algo natural, e para que o seja, é necessário polarizar, definindo patologias e aprisionando o indivíduo à autoridade competente (especialista), o sexo é vigiado e regulado. (FOUCAULT apud ARANHA; MARTINS, p. 328-329)
Ainda mais marginalizados socialmente, o controle sobre a sexualidade dos presos se faz ainda mais notoriamente. E os tabus que a sociedade impõe ao cidadão livre são ainda mais visíveis ao indivíduo preso. É esse controle social que acaba por diminuir a importância das questões sexuais e da resolução das problemáticas surgidas durante o confinamento.
Como visto anteriormente, não há vedação legal a sua realização no interior dos presídios, por ser um direito não subtraído como efeito da condenação penal. Do mesmo modo, não é a suspensão do direito de ir e vir do detento que irá por fim as suas atividades sexuais, por serem a ele inerentes e instintivas, incapaz de controle absoluto mediante a reclusão, o que se reflete num outro controle, de natureza psíquica e biológica, que não o leve a afastar-se da heterossexualidade.
Castillon (apud BITENCOURT, 1993, p. 184), analisando o rompimento do instinto sexual no cárcere e o seu reflexo no objetivo ressocializador da pena privativa de liberdade, aduz:
Incorre-se em grave contradição quando se busca a correção e a ressocialização do delinqüente e, ao mesmo tempo, ignora-se o problema sexual ou pensa-se que o mesmo não requer uma atenção especial. A repressão ao instinto sexual propicia a perversão da esfera sexual e da personalidade do indivíduo. Enfim, é impossível falar de ressocialização em um meio carcerário que deforma e desnatura um dos instintos fundamentais do homem.
Para os que acreditam ser o exercício da sexualidade uma condição irrelevante para o corpo e para a alma, tendo em vista que muitas práticas e concepções ético-religiosas têm em sua abstinência a razão de ser, a justificativa não pode ser transpassada para dentro das prisões, mesmo porque o seria uma agressão a sua liberdade de escolha, uma imposição que não existe para o homem livre que com plena consciência de seus atos opta pela repressão sexual.
No plano anímico talvez se encontre o principal valor e satisfação obtido subjetivamente com o exercício da sexualidade. Por assim dizer é que a filosofia invoca para a sexualidade os mesmos pesos e medidas que atribui ao trabalho para a sociedade burguesa. O homem, através do desenvolvimento e da valorização da sexualidade, encontra o caminho para a purificação e a integralização de seu ser. A sexualidade humaniza-o, por ser parte do ser integral em contraposição a uma simples expressão do corpo biológico ou resultado de uma função glandular. É uma forma de expressão do ser que deseja, que escolhe, que ama. Enfim, é uma forma de comunicação com o outro e com o mundo (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 316)
Para Moll (apud SPRICIGO, p. 4), dois são os fatores a serem considerados na sexualidade:
Um de ordem física, que é a impulsão de detumescência, constituída pelo alívio espasmódico dos órgãos sexuais e outro de ordem psíquica, que se revela na impulsão de contato e que se manifesta pela necessidade de tocar, de beijar uma pessoa geralmente do sexo oposto.
No plano do direito, o comportamento sexual considerado normal é o que não esteja tipificado em lei (ilícito). Não podemos negar que também o direito, como reflexo de um momento histórico e revelando as crenças e os modelos socioculturais vigentes à época de sua consagração, possui em suas normas valores éticos e religiosos (cristianismo) que ainda “julgam” inaceitável moral e / ou legalmente as praticas homossexuais nas prisões, sendo considerada em alguns sistemas infração disciplinar.
O que se deve levar em consideração nos cárceres, informando costumes e normas, é a orientação sexual anterior ao cumprimento da pena, assegurando-se sua liberdade de escolha sexual como finalidade superior à coibição de práticas homossexuais, evitando-se a ocorrência nas celas de verdadeiros assaltos sexuais.
Bitencourt (1993, p. 185-189) aponta os resultados desvantajosos, para o detento e para seu processo de ressocialização, trazidos pela privação de relações sexuais nas prisões. Primeiramente, ressalta a problemática da abstinência sexual sob o ponto de vista físico e psíquico, não gerando qualquer fato positivo, apenas operando transtornos de personalidade e fortalecendo-se o temperamento, e as energias psíquica, ética e estética que podem ser descarregadas em condutas inadequadas. Além disso, influencia na deformação da auto-imagem, gerando um questionamento sobre si mesmo e sua sexualidade pela ruptura da figura feminina; provocando desajustes que impeçam ou dificultem o retorno à vida sexual anterior, provocadas pelo sentimento de culpa por relacionamentos homossexuais no cárcere, como ejaculação precoce, impotência, etc.; reiterando práticas de homossexualismo forçado ou consensual e onanismo (auto-erotismo), que podem gerar frustrações, graves desequilíbrios psicológicos e transtornos de comportamento sexual;
Além disso, a abstinência sexual pode levar ao agravante social de destruição de relações conjugais. O índice de divórcios após a condenação de um dos parceiros é muito superior ao que ocorre entre casais que desfrutam da liberdade. Para o que permanece entre os muros da prisão, a expectativa de reinserção social após o desfazimento da união conjugal é afastada:
Para muitos internos a ruptura do seu lar pode significar uma profunda amargura e um grave impedimento para a ressocialização. A única coisa que poderia ter significado um fator importante de reabilitação, a manutenção dos laços familiares, está desfeita. É extremamente difícil que uma pessoa possa readaptar-se às portas de um lar destruído. (BURSTEIN apud BITENCOURT, 1993, p. 187)
Importante ressaltar aqui, os entraves para a pessoa do parceiro que se encontra em liberdade. De modo indireto, a depressão e alguns sentimentos como culpa, solidão, ansiedade e o isolamento transpassam as fronteiras da prisão, agravando a situação psicossexual de quem tem nos anos de espera o signo da eternidade. A realidade mostra, assim, uma verdadeira “re-personalização da pena”.
Para o grave problema sexual nas prisões, soluções de várias naturezas são apontadas. Algumas mais conservadoras, indicam a realização de práticas de labor, desportivas e físicas como forma de reutilização da energia libidinosa para outros fins, mostrando claramente a desvalorização do direito à sexualidade. Outras, de conteúdo moral e jurídico duvidosos, como a utilização de drogas para “anestesiar” os impulsos sexuais. As mais condizentes, por sua vez, possibilitam o encontro íntimo com o cônjuge ou companheiro (a), como é o caso das saídas temporárias e visitas íntimas.
Da aceitação exclusiva daquelas, cercear-se-ia o direito à sexualidade nos estabelecimentos penais, por ser incompatível com sua prática no interior dos mesmos, de forma que se reconhecendo a fundamental relevância da sexualidade para o ser humano e para a sociedade que cogita reinseri-lo, bem como visando à segurança jurídico-social com a concretização de direitos não mitigados pela sentença condenatória, erige, por sua vez, a visita íntima como avanço e legitimação de um poder humanizador e ressocializador.