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O abolicionismo penal e a realidade brasileira

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Agenda 15/05/2013 às 19:25

4. Da Inviabilidade de Aplicação do Abolicionismo no Brasil

Por mais que a proposta abolicionista apresente interessante argumentos em seu favor, ainda não há notícias sobre o sucesso da mesma em qualquer Estado, cabendo ressaltar as fortes críticas que essa teoria vem sofrendo, não só pela magia utópica que a ronda, mas também por possíveis conseqüências que a seguiriam, o que pioraria o atual sistema adotado por nossa sociedade.

Ao analisar uma das maneiras pela qual a teoria seria posta na prática, nos deparamos com um provável controle interno materializado pela auto-censura e pelo policiamento moral coletivo e/ou um controle social rígido imposto pelo Estado em que haveria uma completa vigilância da população, seja pela polícia, seja pelo controle tecnológico com o objetivo de “disciplinar” a sociedade. Um doutrinador que argumenta nesse sentido é Luigi Ferrajoli (1998), para quem o controle social excessivo de modo a prevenir a ocorrência de qualquer crime limitaria a liberdade dos cidadãos, assim como afetaria a privacidade de todos. O maior receio quando se toca nesse assunto é de que com a supressão do Direito Penal esse controle se torne demasiadamente repressivo e seja regido por técnicas um tanto quanto irracionais, fazendo com que a humanidade regredisse alguns passos na sua evolução histórica caso o sistema falhasse. Isso significa, paradoxalmente, que o abolicionismo, ao defender o fim do direito penal, prega uma alternativa em que exalta outra forma de controle social, como em que uma exaltação ao “direito penal” em que supera em rigor muitos ardorosos proponentes da legitimidade da pena.

O forte caráter jusnaturalista do abolicionismo penal é algo que suscita críticas a essa teoria, por parte da corrente positivista. Para que seja válida, é necessário que a sociedade seja, naturalmente, solidária e capaz de resolver seus conflitos de forma adequada por si mesma. O Estado seria um ente opressor, que frustra essa solidariedade natural. Assim, os abolicionistas seriam perigosamente ingênuos, considerando que o único opressor é o Estado e ignorando que outro homem pode também ele tornar-se opressor dos outros. A abolição do direito penal levaria a outras formas de controle social, informais, mas não necessariamente melhores.

Dado o exposto ao longo do artigo, como podemos enxergar a possibilidade de aplicação do abolicionismo penal em nosso país? O abolicionismo penal acredita que a melhor política criminal ainda é uma boa política social. O que faz sentido, mas não surge como solução completa para os conflitos sociais existentes, até mesmo nos países com maior grau de desenvolvimento, melhor distribuição de renda e maior igualdade social. Sendo assim, é de se supor que sua aplicação seria muito mais utópica quando consideradas as características da atual sociedade brasileira.

A criminalidade tem raízes muito mais profundas do que uma análise rápida pode expor: a problemática social, a perspectiva de ascensão célere no meio marginal, impensável com o dispêndio de trabalho honesto, a excessiva procura por drogas, o descaso para com as gerações futuras, tudo isso fomenta o crescimento desordenado da marginalidade.

Os próprios abolicionistas afirmam que o que leva o indivíduo a não praticar condutas descritas como crimes são os valores apreendidos durante toda a sua vida, tanto no âmbito familiar, na sociedade, bem como na religião. Fosse completamente verdadeiro o argumento, deveriam ser raros os crimes nas classes mais abastadas de todas as sociedades. O que não se verifica na prática, especialmente em nosso país, onde, talvez por certeza da impunidade, é comum a prática de crimes de sonegação, corrupção e outros mais, característicos de indivíduos de melhor educação, formação e melhor acesso à informação. Não há, pois, de se diferenciar tais crimes dos que atingem diretamente as ruas, como assaltos, tráfico de drogas, homicídios, latrocínio, dentre outros.

As estatísticas brasileiras revelam o aumento quantitativo da população, o baixo aproveitamento em todos os graus de ensino, a ausência de capacitação profissional da maioria da população, além de altos índices de desemprego. A educação é falha e os estímulos para uma boa formação moral são quase inexistentes, restando pequenos oásis. A má formação das crianças e adolescentes, a desesperança, os exemplos de impunidade, a ausência de punição severa em relação aos crimes considerados graves, os domínios do crime organizado, globalizado e do narcotráfico, os incontáveis problemas sociais, são fatores decisivos para a elevação dos índices de criminalidade e mostram a impossibilidade atual do abolicionismo penal no Brasil.

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De fato, catadores de papel, mineiros, garis, faxineiros, trabalhadores das mais diversas atividades insalubres expostos a agentes cancerígenos, bóias-frias, trabalhadores em olarias e carvoarias, pessoas em regime de trabalho semi-escravo em muitos rincões do país, flanelinhas, biscateiros, vendedores de quinquilharias de porta em porta, trabalhadores sem carteira assinada, camelôs, todas essas pessoas que em comum têm apenas a parca remuneração pelos seus empenhos laborais e condições sociais adversas, fazem bom uso do seu livre-arbítrio, não se voltando à prática de ilícitos. Tal realidade dá ensejo à idéia de Jean Jaques Rousseau (2008) que afirmou: “O homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe”. Nessa sociedade, com isso, o abolicionismo penal seria inviável.

Todavia, é inegável a aceitação do fato de que a criminalidade não advém apenas da miséria, mas no contexto do capitalismo, a partir desta se fortalece e se expande. Caberia então ao Estado, enquanto ente responsável pelo zelo com a sociedade, encontrar as medidas necessárias para reparar as distorções causadas pelo sistema de exclusão social oriundo do capitalismo. Para tanto, medidas sócio-educacionais seriam não mais que indispensáveis.

Utopicamente, uma vez resolvido o problema da miséria, findar-se-ia a questão criminal? Diriam muitos que sim, mas não estariam esses contemplando a criminalidade como um todo, se levarem em consideração os crimes cometidos pelas altas camadas da sociedade. A necessidade de punir tais atos, que estão alheios à falta de perspectiva, uma vez que os seus agentes dispuseram de todas as oportunidades educacionais que o dinheiro pode oferecer, leva a reiteração da ideia de pena como maneira de manifestação de reprovação por parte da sociedade a atitudes à margem da lei.

Portanto, é imperativa à realidade brasileira a existência de um sistema que possa coibir e prevenir atos que se opõem ao Ordenamento Jurídico, aliando tal sistema punitivo a uma política de reestruturação sócio-educativa para prevenir que a miséria e a pobreza fomentem ainda mais a criminalidade, já muito bem desenvolvida por aqueles indivíduos que, mesmo diante de uma educação privilegiada, enveredam pelo caminho tortuoso da ilegalidade. Sendo assim, o abolicionismo penal, que, em sua teoria, aparece como primorosamente fundamentado, mostra-se inviável para a realidade fática brasileira, essa composta por sérias deformidades na composição social e que ainda lida com os desdobramentos de um processo colonial estapafúrdio que instalou, por meio do autoritarismo e do uso desmedido da força, um ideário fundado na busca de sempre levar vantagem sobre o próximo, deixando de lado valores como a cooperação, ética e altruísmo.


Referências bibliográficas:

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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Porto Alegre: Editora L&PM, 2008.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

Sobre o autor
Walace Ferreira

Professor de Sociologia da UERJ. Pesquisador. Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Walace. O abolicionismo penal e a realidade brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3605, 15 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24443. Acesso em: 5 nov. 2024.

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