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Da (im)possibilidade do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro

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Agenda 05/06/2013 às 14:07

4. DA (IM)POSSIBILIDADE DO TESTAMENTO VITAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A declaração prévia de vontade do paciente terminal, no Brasil conhecida simplesmente por testamento vital, é assunto que, a cada dia, ganha fôlego nos mais diversos campos do conhecimento, havendo, inclusive, conforme outrora analisado, certos países que já reconhecem sua existência, validade e eficácia, a exemplo dos Estados Unidos da América, da Espanha e do Uruguai.

 Todavia, em que pese a sua relevância como símbolo do apelo ao direito de viver uma morte de feição humana, no ordenamento jurídico pátrio, até o momento, não há regulamentação legal específica sobre o assunto, razão pela qual se impõe verificar a possibilidade do testamento vital ser reconhecido na órbita jurídica brasileira.

No plano infralegal, a Resolução CFM n.º 1.805, em vigor desde a sua publicação no Diário Oficial da União, ocorrida em 28 de novembro de 2006, disciplina que na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.[92]

Entretanto, tendo em vista a repercussão no meio social que à época causou, o Ministério Público Federal, através do procurador Wellington Oliveira, ajuizou a Ação Civil Pública n.º 2007.34.00.014809-3 contra o Conselho Federal de Medicina, alegando, em síntese, que este conselho profissional não teria poder regulamentador para, por meio da resolução supra nem por qualquer outro instrumento, estabelecer como parâmetro ético uma conduta tipificada como crime.

Sob um enfoque estritamente legalista e em decisão liminar, o juiz Roberto Luís Luchi Demo, da 14ª Vara da Justiça Federal, Subseção Judiciária do Distrito Federal, entendeu que, se há um projeto de lei propondo a descriminalização da ortotanásia (PLS n.º 116/2000, de iniciativa do senador Gerson Camata – PMDB/ES), esta efetivamente é prática criminosa, e, assim, suspendeu os efeitos da resolução editada pelo Conselho Federal de Medicina.

Ocorre que, em agosto de 2010, o Ministério Público Federal, por meio da procuradora Luciana Loureiro, que substituiu o procurador Wellington Oliveira na ação, revisou o caso e em suas alegações finais reconheceu que na realidade havia se instalado uma confusão entre os conceitos de eutanásia e de ortotanásia, sendo a prática desta última totalmente constitucional.

Dessa forma, em dezembro de 2010, por ocasião da prolação da sentença, o magistrado revogou a antecipação de tutela anteriormente concedida e julgou improcedente o pleito ministerial, afirmando que se alinhava à tese defendida pelo Conselho Federal de Medicina durante todo o processo e pelo Ministério Público Federal nas suas alegações finais, haja vista que traduzia, na perspectiva da resolução questionada, a interpretação mais adequada do Direito diante do atual estado de arte da medicina. “E o faço com base nas razões da bem-lançada manifestação da ilustre procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira”.[93]

No que diz respeito a proposta de descriminalização da ortotanásia lançada no PLS n.º 116/2000, que sequer teve seu desfecho, haja vista que o referido projeto ainda se encontra em plena tramitação no Senado Federal,[94] compartilhamos do entendimento perfilhado por JIMMY MATIAS NUNES e LORENA SALES ARAÚJO, segundo o qual não há que se falar em descriminalizar algo que efetivamente não constitui crime, na medida em que, não bastasse inexistir tipificação da conduta em nosso ordenamento jurídico penal, a prática da ortotanásia não infringe qualquer norma ética ou jurídica, mas, pelo contrário, cultiva um dos princípios basilares da Carta Magna de 1988: o princípio da dignidade da pessoa humana.[95]

De outro norte, existem pelo menos 4 (quatro) projetos de lei no Senado Federal que versam, direta ou indiretamente, sobre o tema: o PLS n.º 79/2003, apresentado pelo senador Delcídio do Amaral (PT/MS)[96], e o PLS n.º 101/2005, do senador Pedro Simon (PMDB/RS),[97] que dispõem sobre os direitos dos pacientes em serviços de saúde; o PLS n.º 103/2005, do senador Papaléo Paes (PSDB/AP), que estabelece o Estatuto do Enfermo;[98] e o PLS n.º 524/2009, apresentado pelo senador Gerson Camata (PMDB/ES), que dispõe sobre os direitos da pessoa em fase terminal de doença.[99]

Interessa-nos especificamente este último projeto de lei, qual seja, o PLS n.º 524/ 2009, elaborado pela Comissão de Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e apresentado ao Senador Federal pelo então senador Gerson Camata, o qual está umbilicalmente relacionado à resolução CFM n.º 1.805/2006, contendo basicamente os mesmos dispositivos desta, porém de forma mais detalhada.

Depreende-se que o PLS n.º 524/2009 dispõe sobre os direitos da pessoa que se encontra em fase terminal de doença, no que diz respeito à tomada de decisões sobre a instituição, a limitação ou a suspensão de procedimentos terapêuticos, paliativos e mitigadores do sofrimento, estabelecendo, em suma, que

a)  a pessoa em fase terminal de doença tem direito, sem prejuízo de outros procedimentos terapêuticos que se mostrarem cabíveis, a cuidados paliativos e mitigadores do sofrimento, proporcionais e adequados à sua situação;

b)  se houver manifestação favorável da pessoa em fase terminal de doença ou, em casos de impossibilidade em decorrência de doença mental ou outra situação que altere o seu estado de consciência, da sua família ou do seu representante legal, é permitida, desde que fundamentada e registrada no prontuário do paciente, bem como submetida a análise médica revisora, a limitação ou a suspensão, pelo médico assistente, de procedimentos desproporcionais ou extraordinários destinados a prolongar artificialmente a vida; e

c)  na hipótese de impossibilidade superveniente de manifestação de vontade do paciente e caso este tenha, anteriormente, enquanto lúcido, se pronunciado contrariamente à limitação e suspensão de procedimentos desproporcionais ou extraordinários destinados a prolongar artificialmente a vida, deverá ser respeitada tal manifestação.

Objetivando sua correta interpretação, o referido projeto de lei preocupa-se também em conceituar o que se entende por pessoa em fase terminal de doença; procedimentos paliativos e mitigadores do sofrimento; cuidados básicos, normais e ordinários; procedimentos proporcionais; procedimentos desproporcionais; e procedimentos extraordinários.[100]

No mais, tanto o PLS n.º 524/2009 como os demais projetos de leis alhures mencionados atualmente ainda estão na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) aguardando a designação do relator. Após, seguirão para as Comissões de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e de Assuntos Sociais (CAS), esta última em apreciação terminativa.

Dessa forma, considerando que o devido processo legislativo é o meio hábil para alcançar uma norma geral e abstrata, que consolide as várias visões da sociedade brasileira acerca do tema, mediante o exercício da representação política, da participação popular e do diálogo democrático, resta-nos aguardar a efetiva aprovação de tais projetos de lei.

Enquanto isso, pesquisa[101] realizada por CAMILA STOLZ, GÉSSICA GEHLEN, ELCIO LUIZ BONAMIGO e MARCELO CARLOS BORTOLUZZI com médicos[102] da região da Associação dos Municípios do Meio Oeste Catarinense (AMMOC),[103] cujo objetivo era avaliar em que proporção as vontades antecipadas do paciente irão influir na conduta da equipe médica durante a tomada de decisões sobre procedimentos médicos no final da vida e se a distanásia poderá ser inibida mediante essa manifestação, observou que, numa escala de 0 a 10, quando questionados:

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a)  se acreditavam ser conveniente que os cidadãos façam planos sobre seus desejos de saúde, deixando-os escritos na declaração das vontades, a média de respostas foi 8,18;

b) se as vontades antecipadas são instrumentos úteis para os profissionais de saúde na hora de tomar decisões sobre um paciente, a média de respostas foi 8,37;

c) se as vontades antecipadas são também úteis para os familiares do paciente no momento de se tomar decisões, a média de respostas foi 8,09;

d) sobre o valor da nomeação de representantes pelo paciente em suas vontades antecipadas, para facilitar a tomada de decisões dos profissionais de saúde quando o paciente estivesse em situação de incapacidade, a média de respostas foi 7,57; e

e) se respeitariam os desejos expressos por um paciente em declaração de vontades antecipadas, a média de respostas foi 8,26;

Ademais, quando questionados se havia, de fato, a regulamentação legal das vontades antecipadas no Brasil, bem como se já haviam lido algum desses documentos, obtiveram-se, respectivamente, as seguintes respostas: 12% dos médicos afirmaram que há regulamentação, 54% responderam que não há e 34% disseram que não sabiam; e 46% dos médicos afirmaram que já tinham lido algum documento sobre vontades antecipadas, contra 54% que nunca leram algo do tipo.

Assim, os pesquisadores puderam concluir que as vontades antecipadas do paciente serão respeitadas quando ele estiver incapacitado de se comunicar, constituindo verdadeira garantia de que não serão adotadas medidas desproporcionais que se configurem como prática de distanásia, motivo pelo qual propuseram que as vontades antecipadas fossem regulamentadas tanto do ponto de vista ético quanto legal, como importante instrumento para o respeito à autonomia do paciente.[104]

Nesse desiderato, desde 13 de abril de 2010 está em vigor o sexto Código de Ética Médica reconhecido no Brasil (Resolução CFM n.º 1.931/2009), o qual, em diversas passagens, consolida a autonomia do paciente e a postura comprometida do profissional como condicionantes para a qualidade de vida daquele, no sentido de não lhe serem impostas medidas clínicas desarrazoadas.

Analisemos, por exemplo, a redação do Capítulo I, XXII e do Capítulo V, art. 41, caput e parágrafo único:

Capítulo I (Princípios fundamentais)

XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção os cuidados paliativos apropriados.

Capítulo V (Relação com pacientes e familiares)

É vedado ao médico

Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.

Parágrafo único: Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.[105]

Ambos os textos normativos, ao passo em que atuam no caminho de coibir a prática da distanásia, reconhecendo que aos doentes em fase terminal não se deve empregar medidas extraordinárias que importem em verdadeira obstinação terapêutica, impõem a manutenção das ações apropriadas sob a ótica dos cuidados paliativos, é dizer, capazes de propiciar o bem estar do paciente em situação de terminalidade.

O artigo 41, entretanto, vai além e se reveste de clareza solar no que se refere ao direito de o paciente expressamente externar sua vontade sobre os cuidados que, nos casos de doença incurável e terminal, deseja ou não se submeter, amparando-se, de certa forma, na disposição legal de que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”, inserta no art. 15, do Código Civil brasileiro.

Esse artigo do Diploma Civil visa à preservação da integridade do corpo humano, diante das situações em que um tratamento médico necessário a longo prazo para o restabelecimento do enfermo possa colocar em risco a sua própria vida.[106]

Outrossim, sob a égide do nosso Estado Democrático de Direito, é sabido que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, inciso III, resguarda como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade humana[107], que é a possibilidade, para cada ser humano, de “escolher morrer com a mesma dignidade que escolheu viver, sem prolongamento da agonia, na companhia de seus entes queridos, se assim desejar”.[108]

Dessarte, “após a promulgação da Constituição Republicana de 1988, que positivou o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental, o conceito de vida digna foi inserido nas discussões jurídicas”[109] e o direito à vida, consequentemente, deixou de ser interpretado como a garantia simplesmente da existência biológica; senão, vejamos:

[...] o direito à vida não se exaure somente na mera existência biológica, sendo certo que a regra constitucional da dignidade da pessoa humana deve ser ajustada ao aludido preceito fundamental para encontrar-se convivência que pacifique os interesses das partes. Resguardar o direito à vida implica, também, em preservar os valores morais, espirituais e psicológicos que se lhe agregam.[110]

Igualmente, o sistema constitucional brasileiro protege a autonomia e liberdade individuais (princípios implícitos no art. 5º, da Carta Magna), relacionados com a causa ética da emancipação do sujeito em direção à sua autodeterminação, causa essa que, em última instância, diz respeito à afirmação da sua cidadania; e, com veemência, rechaça o tratamento desumano ou degradante (art. 5º, inciso III, da Constituição Federal), evitando ao paciente o constrangimento de submeter-se a tratamentos médicos que, diante do estado terminal em que se encontra, caracteriza-se como obstinação terapêutica.

Não bastasse, da análise conjunta desses princípios, verificamos as dimensões que devem ser atribuídas aos direitos da personalidade, sendo impossível limitar-lhes, tanto no número, quanto na extensão de seus valores, devendo ser reconhecidos como tais, todos aqueles que fundamentem o ser humano e lhe garanta qualidade existencial, aqui compreendida como sua dignidade.[111]

Nessa esteira, apesar da inexistência de norma específica no Brasil a respeito do testamento vital, a interpretação integrativa de todas as normas constitucionais e infraconstitucionais que por ora se analisou concede aparato para se defender a possibilidade deste documento ser adotado no ordenamento jurídico pátrio.

Isso é, considerando sobretudo a Resolução CFM n.º 1.805/2006; os projetos de lei n.º 79/2003, 101/2005, 103/2005 e 524/2009 que tramitam no Senado Federal; os resultados das pesquisas empreendidas com o corpo médico que atua nas situações de terminalidade da vida; a Resolução CFM n.º 1.931/2009; e o arcabouço constitucional que protege a dignidade da pessoa humana, a autonomia e liberdade individuais, e proíbe o tratamento desumano ou degradante; não se pode recusar às pessoas o direito de expressarem seus desejos de não serem submetidas a tratamento que prolonguem artificialmente, de forma irracional e cruel suas vidas, poupando-as, bem como sua família, de desgastes físicos, emocionais e financeiros.

 Não é outro o entendimento de JIMMY MATIAS NUNES e LORENA SALES ARAÚJO, para quem,

utilizando-se de uma visão sistemática desse ordenamento jurídico em comunhão com os princípios da autonomia privada da vontade do indivíduo, da autodeterminação de sua vontade e da dignidade da pessoa humana, há plena possibilidade de introdução do testamento vital no Direito brasileiro.[112]

E assim deve ser porque o Direito está mais além daquilo que os textos legislativos podem nos informar, ou seja, deve ser interpretado para além da literalidade de seus textos, tentando abarcar as mais diversas situações que surgem no turbilhão denominado vida, sem se prender às amarras que o exegetismo jurídico por vezes traz.

Entretanto, é urgente que nossos legisladores se dediquem para efetivamente institucionalizar o testamento vital, pois “os médicos não podem continuar com a ‘espada da Justiça’ sobre a cabeça”[113] e a previsão legislativa, sem dúvida, daria à sociedade maior legitimidade e respaldo para resolver sobre o processo de morte, haja vista que o simples reconhecimento de direito muda posturas, jurídicas e sociais, ao longo do tempo, cabendo alertar, também, que a ausência de recursos materiais para a efetivação dos direitos sociais não deve servir de desestímulo para o reconhecimento do direito à morte digna.[114]

DÉLIO KIPPER e MÁRCIO PALLIS HORTA, com fidedignidade, bem retratam esse drama e corroboram a necessidade de se preencher a lacuna:

[...] temos a clara percepção de que ainda fazemos uso excessivo e inapropriado da tecnologia, prolongando inutilmente o sofrimento humano, gastando mal os finitos recursos destinados à saúde e ocupando mal os sempre insuficientes leitos das UTIs e emergências; nos vemos desamparados, sob o ponto de vista legal, de tomar qualquer decisão de não-oferta ou retirada de suporte vital; sentimos falta de normas e diretrizes de como nos conduzirmos com esses paciente.[115]

Rebelarmo-nos contra a organização médica do morrer é tarefa inadiável. A medicina e a sociedade brasileira têm hoje diante de si um desafio ético, ao qual é mister responder com urgência, o de humanizar a vida no seu ocaso, devolvendo-lhe a dignidade perdida. Centenas ou talvez milhares de doentes estão hoje jogados a um sofrimento sem perspectiva em hospitais, sobretudo nas suas terapias intensivas e emergências. Não raramente, acham-se submetidos a uma parafernália tecnológica que não só não consegue minorar-lhes a dor e o sofrer como ainda os prolonga e os acrescenta, inutilmente.[116]

Dessa forma, convém discutirmos a estrutura e o conteúdo do testamento vital considerando a realidade brasileira, na humilde tentativa de se vislumbrarem sugestões a fim de que, finalmente, o documento seja regulamentado em nosso ordenamento jurídico.

De início, cumpre considerar que o testamento vital é negócio jurídico, ou seja,

é fato jurídico cujo elemento nuclear do suporte fáctico consiste em manifestação ou declaração consciente de vontade, em relação à qual o sistema jurídico faculta às pessoas, dentro de limites predeterminados e de amplitude vária, o poder de escolha de categoria jurídica e de estruturação do conteúdo eficacial das relações jurídicas respectivas, quanto ao seu surgimento, permanência e intensidade do mundo jurídico.[117]

Sendo assim, os seus requisitos de validade, quais sejam, a capacidade do agente; a licitude, possibilidade e determinabilidade do seu objeto; e a observância da forma não proibida ou determinada em lei; obviamente devem estar presentes, consoante disposição do art. 104, do Código Civil brasileiro.

O testamento vital deverá ser escrito por pessoa capaz, vale dizer, com competência para decidir autonomamente, o que pressupõe que compreende a informação transmitida e é capaz de efetuar um juízo independente de acordo com seus valores.

Nesse particular, deve-se entender que o discernimento para a realização do testamento vital não está diretamente ligado à idade, razão pela qual a liberdade de autodeterminação do paciente não pode ser averiguada aprioristicamente com base tão somente nos critérios objetivos definidos pelo Código Civil brasileiro no que diz respeito a incapacidade absoluta ou relativa do indivíduo.

Portanto, caberá ao juiz analisar se, por exemplo, um adolescente de 15 anos tem discernimento suficiente para manifestar sua vontade sobre os tratamentos que deseja ou não se submeter caso venha a padecer de uma doença terminal.[118]

Naqueles casos em que a pessoa já não tem ou até mesmo sequer chegou a ter o discernimento, nos moldes acima, para a realização do testamento vital – recém-nascidos, anencéfalos, crianças em sua mais tenra infância e deficientes mentais severos, por exemplo –, entende-se que a competência para a tomada de decisão caberá aos seus responsáveis, que devem adotar a doutrina do melhor interesse do paciente, de acordo com critérios universais de razoabilidade.[119]

Contudo, há quem entenda que, em tais casos, a tomada de decisão deve ser sempre uma responsabilidade compartilhada entre a equipe médica e os responsáveis legais pelo paciente[120], situação na qual deve existir um consenso que, não obtido, obrigará se recorrer aos meios formais de resolução, seja intra-institucional, como o Comitê de Ética, seja extra institucional, através da intervenção o Poder Judiciário.

Quanto ao conteúdo, a doutrina dominante destaca que poderá conter disposições

a) de recusa a certos tratamentos que prolonguem artificialmente a vida, em contraste com a sua qualidade;

b)  sobre a nomeação de representante para executar o documento nos casos de o paciente não mais conseguir fazê-lo pessoalmente; e

c) disciplinando acerca da doação de órgãos.

Porém, compartilhando do entendimento de LUCIANA DADALTO PENALVA,[121] ressaltamos que as disposições acerca da doação de órgãos no testamento vital podem desvirtuar seu objetivo, não bastassem ser desnecessárias, na medida em que a doação de órgãos no Brasil já é regulada pela Lei 9.434/1997, alterada pela Lei 10.211/2001.

Importante verificar que o cumprimento da manifestação de vontade do paciente terminal, externada através do testamento vital, deverá comportar certos limites, como a proibição de se levar a cabo disposições:

a)  contrárias ao ordenamento jurídico brasileiro;

b)  contraindicadas à patologia do paciente; e

c)  superadas pelo avanço da medicina.

A primeira limitação se justifica no fato de que, revestindo-se em documento que, a priori, apenas veicularia o desejo de o paciente não se submeter a tratamentos obstinados terapeuticamente, poderia a vontade do paciente se caracterizar em real prática intervencionista proibida pelo ordenamento jurídico, a exemplo da abreviação da vida.

A proibição de disposições contraindicadas à patologia do paciente também é salutar, na medida em que o testamento vital, antes de qualquer coisa, defende o direito à morte digna, e não o suposto direito de morrer.

Dessa forma, entende-se que o paciente não poderá dispor sobre a recusa dos chamados cuidados paliativos, posto que, objetivando proporcionar a atenção básica necessária a manutenção da qualidade de vida no seu fim, verdadeiramente retratam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Assim, interpretando-se a segunda limitação, tem-se que só serão aceitas no testamento vital disposições que digam respeito à recusa de tratamentos fúteis, estes compreendidos como a intervenção médica que, objetivamente, não trará benefícios ao paciente, ou, na conceituação outrora analisada de GENIVAL VELOSO FRANÇA, “que não tem objetivo imediato, que é inútil ou ineficaz, que não é capaz de oferecer uma qualidade de vida mínima e que não permite uma possibilidade de sobrevida”,[122] devendo-se ter em mente, entretanto, que “os tratamentos não são fúteis em si, mas fúteis em relação a um objetivo”.[123]

Por sua vez, a proibição de se levar a cabo disposições superadas pelo avanço da medicina é necessária porque, entre a feitura da declaração prévia de vontade e a efetiva necessidade de sua utilização, poderá ter decorrido lapso temporal considerável, que, conjugado ao surgimento de tratamentos inexistentes à época da manifestação de vontade, poderia determinar a suspensão de esforço terapêutico em casos que não mais se caracterizam como obstinação terapêutica.

Poderá também o efetivo cumprimento do testamento vital sofrer limitação por objeção de consciência do médico, na medida em que o atual Código de Ética Médica (Resolução CFM 1.931/2009) o reveste de autonomia profissional para recusar-se a realizar certos serviços, vejamos:

Capítulo I (princípios fundamentais)

VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

Capítulo II (Direitos dos médicos)

É direito do médico:

IX – Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.[124]

Entretanto, nesse caso se entende que o médico deverá respaldar sua recusa, seja por motivos éticos, morais, religiosos ou qualquer outro de foro íntimo, e outro profissional deverá ser designado para acompanhar o paciente.

No tocante a lavratura do testamento vital, tratando-se de negócio jurídico solene, embora não se tenha a definição de uma forma especial, entende-se mais adequado seja realizada por escritura pública no Cartório competente, mormente só assim poderá surtir efeitos erga onmes, é dizer, cônjuge, companheiro, amigos, filhos, eventual representante legal, instituições de saúde e médicos, estes últimos com a ressalva supra, estarão atrelados aos seus termos, cabendo-lhes dar fiel cumprimento às diretrizes antecipadas pelo paciente em momento de lucidez.

Todavia, tais efeitos somente surtirão em situações de terminalidade de vida e apenas a partir da inscrição no prontuário médico de que existe um testamento vital, cabendo realçar que ao médico incumbe fazer tal anotação, bem como anexar o documento de vontades antecipadas ao histórico clínico do paciente.

No mais, defende-se a criação de um Registro Nacional de Declarações Prévias de Vontade do Paciente Terminal, ou seja, um banco de dados onde serão eletronicamente depositados os testamentos vitais a fim de possibilitar maior efetividade no cumprimento da vontade do paciente, cabendo ao Cartório encaminhar o testamento vital a tal registro em prazo exíguo, evitando que a declaração de vontade se torne inócua.[125]

A criação online desse banco armazenador de testamentos vitais, além de possibilitar maior efetividade no cumprimento das disposições contidas em tais documentos, proporcionaria, pelo fato de está interligado a rede mundial de computadores, a atualização em tempo real nos mais diversos espaços do globo terrestre.

Diante desse dinamismo, advoga-se que não há que se falar em validade predeterminada de tais testamentos vitais, podendo a declaração de vontade ser livremente revogada e/ou alterada até a prática do ato concreto, enquanto, obviamente, o autor do instrumento tiver a competência que detinha quando da feitura do mesmo.[126]

Há quem entenda, porém, que o testamento vital deve conter um prazo de validade, sob o argumento de que tal documento não pode ser esquecido no tempo após sua elaboração, bem ainda que a medicina avança a passos largos e, consequentemente, determinada enfermidade considerada incurável na data de elaboração do documento talvez já tenha se tornado curável no momento de sua aplicação. 

Enfim, defende-se que o testamento vital é instrumento válido no atual ordenamento jurídico do Brasil, estando legitimado pela interpretação integrativa do nosso sistema jurídico, sobretudo pela força do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Contudo, entende-se que uma lei específica sobre o tema é de suma importância para dispor sobre questões formais e materiais atinentes, o que, certamente, facilitaria sua implementação no território nacional.

Deve-se ressaltar, todavia, que a efetiva regulamentação do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro, por si só, não abreviará a luta pela humanização no cuidado dos pacientes terminais, mas certamente terá o condão de “reforçar o direito social à morte digna e o direito subjetivo à vida, que deve ser gozada de forma harmônica, respeitando os limites do corpo, dos sentimentos e do tempo”.[127]

 

Sobre o autor
Thales Prestrêlo Valadares Leão

Assessor Judiciário no Tribunal de Justiça de Alagoas. Advogado licenciado pela Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional de Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera – UNIDERP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEÃO, Thales Prestrêlo Valadares. Da (im)possibilidade do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3626, 5 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24638. Acesso em: 23 nov. 2024.

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