Resumo: O presente trabalho analisa a possibilidade de relativização da coisa julgada material no âmbito das ações de paternidade" data-type="category">investigação de paternidade. Para tanto, enfoca-se a coisa julgada sob diversos aspectos, além da sua relação com o princípio da segurança jurídica, destacando-se a importância deste último para a efetivação de um Estado Democrático de Direito. Destacam-se os motivos pelos quais respeitados juristas confirmam a excepcional possibilidade de flexibilização. O RE 363.889/DF, leading case da matéria no âmbito do Supremo Tribunal Federal, corroborando antigos precedentes do Superior Tribunal de Justiça, reforçou, na seara constitucional, o cabimento da hipótese de relativização da coisa julgada em ações de investigação de paternidade julgadas improcedentes por falta de provas. Por outro lado, a controvérsia está longe de tornar-se pacífica; magistrados estaduais e, até mesmo, alguns ministros do STJ divergem da orientação proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade. Este trabalho pretende avaliar de modo sintético a extensão da problemática a nível processual e constitucional.
Palavras-chave: Direito Processual Civil. Ação de investigação de paternidade. Coisa julgada. Direito Constitucional. Relativização. Segurança jurídica. Ideais de justiça. Exame de DNA.
Introdução
Ao longo do primeiro capítulo, objetiva-se atingir uma definição própria do conceito de coisa julgada do ponto de vista constitucional e processual, dialogando com os aspectos primordiais do princípio da segurança jurídica.
No segundo capítulo, então, pretende-se discorrer sobre a análise teórica precípua do que é a relativização da coisa julgada, seus requisitos, os parâmetros nos quais ela se baseia, e por qual motivo chamou a atenção de renomados juristas.
O escopo do terceiro capítulo é, partindo do RE 363.889/DF, traçar um paralelo entre os fundamentos jurisprudenciais que admitem ou rechaçam a referida hipótese nas ações de investigação de paternidade. Afinal, há aceitação de tal possibilidade em face de ideais de justiça sem que isso ocasione insegurança jurídica, mas sim um meio de confirmação deste princípio, que pode ser complementarmente alargado e amoldado a outros, em benefício do próprio cidadão – por vezes já descrente na aplicação justa ou minimamente proporcional da lei.
1 Coisa Julgada
Preliminarmente, a coisa julgada é compreendida como uma garantia constitucional. Paulo Bonavides (2011, p. 537) define a evolução histórica do conceito de garantia como aquilo que “[...] disciplina e tutela o exercício dos direitos fundamentais, ao mesmo passo que rege, com proteção adequada, nos limites da Constituição, o funcionamento de todas as instituições existentes no Estado”.
1.1 Conceito, Natureza Jurídica e Marco Legal
A coisa julgada é a segurança que se confere à prestação jurisdicional outorgada, por isso está presente no texto constitucional. (Silva, 2011)
Tutela-se a estabilidade dos casos julgados, para que o titular do direito aí reconhecido tenha a certeza jurídica de que ele ingressou definitivamente no seu patrimônio. A coisa julgada é, em certo sentido, um ato jurídico perfeito; assim já estaria contemplada na proteção deste, mas o constituinte a destacou como um instituto de enorme relevância na teoria da segurança jurídica. (Silva, 2011, p. 437)
Nessa mesma linha, Cândido Rangel Dinamarco (2009, p. 220):
A coisa julgada é a situação de segurança quanto à existência ou inexistência de um direito, assegurada pela imutabilidade dos efeitos da sentença de mérito. Quer se trate de sentença meramente declaratória, constitutiva ou condenatória, ou mesmo quando a demanda é julgada improcedente, no momento em que já não couber recurso algum institui-se entre as partes, e em relação ao litígio que foi julgado, uma situação, ou estado, de grande firmeza quanto aos direitos e obrigações que os envolvem, ou que não os envolvem.
Enxergada não só como um instituto constitucional, mas também processual civil, ela sustenta a pirâmide do Estado Democrático de Direito ajudando a regular os direitos fundamentais, possibilitando o funcionamento do aparelho estatal. (Marinoni, 2010)
Quanto à sua natureza, insculpida no art. 5º, XXXVI, da CF, visa, precipuamente, a impedir a retroatividade das leis com o fundamento de prover as demandas, na medida do possível, com segurança jurídica. Logo, estabiliza as decisões do Poder Judiciário, estendendo ou projetando os efeitos da sentença de mérito, indefinidamente para o futuro, para protegê-las de modificações posteriores, não amparadas em lei, atingindo, portanto, as “pessoas em suas relações – e daí a grande relevância social do instituto da coisa julgada material, que a Constituição assegura [...] e a lei processual disciplina”. (Dinamarco, 2009, p. 221)
A aplicação da lei no tempo é um dos temas mais complexos e sensíveis do ordenamento jurídico atual, porque nunca foi próprio da natureza do direito disciplinar o passado, mas, sim, o presente e o futuro. Contudo, nem sempre o entendimento aplicado segue essa lógica. (Branco e Mendes, 2011)
O jurista italiano Enrico Túlio Liebman (1981, p. 54) aduzia que:
Nisso consiste, pois, a autoridade da coisa julgada, que se pode definir, com precisão, como a imutabilidade do comando emergente de uma sentença. Não se identifica simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato.
Então, a coisa julgada, nos moldes atuais, é não só regra de processo civil, mas um princípio, e dos mais relevantes. Isso porque não é considerada como efeito da sentença, mas como qualidade que se agrega a ela. (Beraldo 2003)
O constituinte, ciente de que o princípio da segurança jurídica é essencial ao Estado Democrático de Direito, uniu o instituto sob análise com outros dois, que dão estabilidade e previsibilidade às decisões dos poderes públicos. No âmbito infraconstitucional, o instituto encontra-se no art. 467 do CPC, como coisa julgada material, quando não cabe mais recurso contra a sentença e seus efeitos são imunizados no âmbito externo ao processo.
1.2 Coisa julgada e segurança jurídica
A correlação da coisa julgada com o princípio da segurança jurídica é emblemática quando interpretada restritiva e isoladamente.
Para Marinoni, a coisa julgada dissociada da segurança jurídica acaba por negar a essência do próprio discurso jurídico, já este só existe se capaz de produzir uma decisão definitiva; do contrário, o processo estatal perderia o sentido. Para o autor, a segurança é a essência basilar do Estado de Direito, e deve ser posta acima de outros valores ou princípios. (Marinoni, 2010)
Contrapondo essa posição, doutrinadores como Cândido Rangel Dinamarco (2009, p. 220) anotam que a coisa julgada é, sim, “situação de segurança quanto à existência ou inexistência de um direito, assegurada pela imutabilidade dos efeitos da sentença de mérito”, mas advertem que nenhuma garantia é absoluta, ou mesmo capaz de afastar os valores que as outras garantias – porventura – representem. (Dinamarco, 2009)
A exemplo da cultura jurídica norte-americana, a coisa julgada também não é tida como indispensável e absoluta, pois a “[...] condicionam à compatibilidade com certos valores tão elevados quanto o da definitividade das decisões. Evitar a propagação de litígios, sim, mas evitá-la sem prejuízo a esses valores.” (Dinamarco, 2009, p. 235).
[...] os tribunais somente podem fazer o melhor a seu alcance para encontrar a verdade com base na prova, e a primeira lição que se deve aprender em tema de coisa julgada é que as conclusões judiciais não podem ser confundidas com a verdade absoluta. (Currie, 1957 apud Dinamarco, 2009, p. 235)
A confiança do cidadão no sistema também está atrelada à segurança jurídica, mas não só a ela. No tocante a esse ponto, surge, em segundo plano, o conflito entre estabilidade e justiça, tendo o processualista Teori Albino Zavascki (2012, 155-156) tecido os seguintes comentários:
Ao modelar a tutela jurisdicional garantida pelo Estado, a Constituição dotou-a de institutos adequados ao atendimento do referido objetivo fundamental. São eles (a) o da cognição exauriente, como instrumento para potencializar a justiça das decisões, e (b) o da coisa julgada, para conferir estabilidade às sentenças, alcançando, assim, a solução final das controvérsias. Diz a Constituição: ‘Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes’ (art. 5.º, LV, da CF/1988). Ou seja, a tutela jurisdicional será conferida em processo em que os indivíduos envolvidos no conflito terão, em igualdade de condições, a oportunidade de formular suas razões de ataque e de defesa em face do litigante adversário, produzir provas, interpor recursos, enfim, utilizar amplamente os meios apropriados a fazer com que o prato da balança penda em seu favor. A intensa e democrática participação dos interessados na busca da verdade dos fatos e na formação da convicção do juiz é fator que concorre decisivamente para se alcançarem decisões justas. Mas depois, esgotadas as oportunidades para invocar as garantias do devido processo legal, pronunciado o juízo e, se necessário, encetadas as providências concretas de efetivação do julgado, a atividade jurisdicional estará concluída, tornando-se imutável o resultado da ‘apreciação’, feita pelo Estado-Juiz, do conflito de interesses a ele submetido, resultado esse que deverá ser respeitado, inclusive pelas leis supervenientes (‘a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada’ diz o art. 5.º, XXXVI, da CF/1988).
Portanto, havendo a prestação jurisdicional adequada, mediante uma cognição exauriente, confirma-se a estabilidade do pronunciamento.
O problema surge quando a tutela jurisdicional concedida foi pífia. Em outras palavras, quando o processo de cognição não foi exaurido. Por isso, segundo Gilmar Mendes, ao Judiciário compete de modo inarredável o cotejo analítico de cada caso concreto perante os postulados da proporcionalidade e razoabilidade. Ou seja, exatamente para preservar a segurança jurídica é preciso efetivar e justificar o exercício da jurisdição, procurando filtrar ao máximo os vícios de inconstitucionalidade trazidos pelo legislador. Isso tonifica a democracia de qualquer Estado. (Branco e Mendes, 2011)
Só que, por vezes, os conflitos entre parâmetros constitucionais estabelecidos não se dão apenas por imprecisão terminológica, ou, excesso, do legislador, mas também pela interpretação desequilibrada – ora extensiva, ora restritiva – dos membros do próprio Poder Judiciário. Para atingir-se uma tutela jurisdicional adequada – com um nível de auto-afirmação dos efeitos da segurança jurídica – é de suma importância que uma instância revisora atue no mesmo processo, corrigindo erros; a segurança jurídica funciona não só como balizadora das relações, mas como princípio que interage, que complementa outros, e visa proteger, acima de tudo, o ser humano no caso concreto.
2 Relativização da Coisa Julgada
A relativização da coisa julgada é, em síntese, a suspensão da eficácia preclusiva da sentença, ou seja, um contorno pela intangibilidade da coisa julgada material quando autorizado por lei, ou por fundamentos pelos quais a doutrina e jurisprudência ainda muito divergem, por isso, o intuito desse capítulo é traçar um paralelo entre os argumentos mais contundentes, verificando os motivos pelos quais algumas hipóteses prevalecem. (Medina e Wambier, 2003)
O conceito norteador da teoria é a superação do receio de insegurança jurídica para casos excepcionais, onde o Estado falhou no dever de prestação jurisdicional. Pretende-se evitar, essencialmente, a perpetuação de teratologias no tempo. (Beraldo 2003)
Em um contexto geral, observa-se que a legislação não traz, de forma expressa e específica, a submissão de valor ou princípio algum que impeça a mitigação da coisa julgada, isso porque não configura afronta direta à CF ou à lei infraconstitucional. (Dinamarco, 2009)
Para Maria Elizabeth Rocha:
O que o constituinte originário regulamentou é que, em nome da segurança jurídica, uma lei nova não poderá retroagir, a despeito do ato jurídico perfeito, da coisa julgada ou do direito adquirido. O art. 5º, XXXVI, não trata da imutabilidade da coisa julgada. Portanto, a coisa julgada é um fenômeno processual, quem legisla sobre tal é a legislação infraconstitucional. A Carta Maior vai apenas fixar o princípio da irretroatividade da lei. Com isso, a justiça não pode negar o acesso ao questionamento e a validade de um julgado; a segurança jurídica não pode ser usada como sucedâneo para a imutabilidade da decisão do poder judiciário. É importante que se relativize, portanto, a coisa julgada, em situações excepcionais, de forma criteriosa, dentro do equilíbrio do controle de constitucionalidade, da ação rescisória ou da querela nullitatis – ação declaratória de nulidade –, para desmistificá-la em face de valores maiores da CF. (Informação verbal)[1]
A coisa julgada não é mesmo uma garantia absoluta, ainda mais considerando o tormentoso problema da resposta correta durante a interpretação de um caso concreto; os dogmas decorrentes dessa percepção equivocada começam a ser quebrados em busca de um Estado ético e justo.
O problema da resposta correta em questões jurídicas será sempre um fantasma a assustar todos aqueles que tenham como ofício a aplicação de normas jurídicas abstratas a casos concretos. Herbert Hart, em passagem muito conhecida, sustentava que, ao serem perguntados sobre a capacidade de o Direito oferecer racionalmente uma resposta correta, mesmo nos chamados casos difíceis, os juristas, como regra, situam-se em um de dois extremos: de um lado, há os que se protegem atrás de um nobre sonho; de outro, existem aqueles que preferem defender-se opondo a visão de um pesadelo. (Guedes, 2012, WEB)
Diante dessa dificuldade dos operadores do direito em dar uma resposta correta, a rigidez quanto à eficácia preclusiva da coisa julgada não se coaduna, em todos os casos, com a evolução dos paradigmas constitucionais. Um exemplo é a flexibilização da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade ante a popularização do exame de DNA, tal hipótese advém não só do direito à personalidade, ou ao conhecimento da herança genética, mas da impossibilidade do Estado, em determinado momento, de oferecer a tutela jurisdicional tal e qual lhe competia, tolhendo, ao particular, o direito fundamental de amplo acesso à justiça.
A propósito, o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que o direito de reconhecimento da filiação de uma pessoa “[...] é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”. Quando um sistema garante direitos e deveres com isonomia, respeitando as nuances de cada caso concreto, quase que instantaneamente se conquista a confiança do cidadão no Estado, além de efetivar o direito de acesso à justiça.
Aos juristas clássicos, por outro lado, faltava essa possibilidade de abertura porque o apego à norma positivada era grande. (Guedes, 2012)
Segundo a teoria tridimensional do direito de Miguel Reale deve haver uma interpretação cultural das normas baseado em três pilares: norma, valor e fato social. Ou seja, o direito não pode ser dissociado do seu aspecto prático, considerando a evolução social e cultural que ocorre cotidianamente. Muitos juristas, contudo, ainda estão presos a uma realidade paralela, que não mais se coaduna com as necessidades reais que chegam aos tribunais. (Reale, 2000)
Zavascki (2012, p. 156) reconhece, que:
[...] Decisão justa é locução associada às ideias de segurança e de verdade, valores que se terá mais probabilidade de alcançar com exame aprofundado das questões controvertidas, com investigação minuciosa dos fatos, com revisão do julgado por mais de uma instância, ou por juízes mais experientes. Associa-se naturalmente a justiça da decisão ao grau de qualidade e da quantidade das providências de natureza jurisdicional desenvolvidas no processo.
Indispensável, pois, a perspicácia que um magistrado deve ter ao estudar o processo, antes de proferir a sentença. A título de exemplo, se não tiver sido exaurida a cognição no processo de investigação de paternidade, a parte deve, sim, buscar isso. Vale lembrar que:
[...] o importante não é o consenso em torno das decisões estatais, mas a imunização delas contra os ataques dos contrariados [...]. O que importa, afinal, é ‘tornar inevitáveis e prováveis decepções em decepções difusas: apesar de descontentes, as partes aceitam a decisão’. Elas sabem que, exauridos os escalões de julgamento, esperança alguma de solução melhor seria humanamente realizável; além disso, ainda que inconscientemente, sabem que necessitam da proteção do Estado e não convém à tranquilidade de ninguém a destruição dos mecanismos estatais de proteção mediante a sistemática desobediência. Por outro lado, existe a predisposição a aceitar decisões favoráveis na medida em que cada um, tendo oportunidade de participar na preparação da decisão e influir no seu teor mediante observância do procedimento adequado (princípio do contraditório, legitimação pelo procedimento), às vezes, a privação consumada é menos incômoda que o conflito pendente: eliminado este, desaparecem as angústias inerentes ao estado de insatisfação e esta, se perdurar, estará desativada de boa parte de sua potencialidade antissocial. (...) Eliminar conflitos mediante critérios justos – eis o mais elevado escopo social das atividades jurídicas do Estado. (Dinamarco, 1987 apud ZAVASCKI, 2012, p.157)
Portanto, a relativização da coisa julgada é um meio de fortalecer os laços com a verdade real sem suprimir o nível de segurança jurídica, afinal, o direito é um espelho da sociedade, ou seja, a constante mudança faz parte deste vínculo, de modo que seja incabível recusá-la nas ações de investigação de paternidade inconclusivas por falta de provas, tal e qual o STF delimitou, conforme será detalhado a seguir.
3 Análise jurisprudencial
Em junho de 2011, o RE 363.889/DF[2], dotado de repercussão geral, restou provido pelo Pleno do STF para uniformizar o entendimento de que se admite a tese de relativização da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade anteriormente extintas, ante a insuficiência de provas. O acórdão ficou assentado nestes termos:
[...]
1. É dotada de repercussão geral a matéria atinente à possibilidade da repropositura de ação de investigação de paternidade, quando anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes, foi julgada improcedente, por falta de provas, em razão da parte interessada não dispor de condições econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado não ter custeado a produção dessa prova.
2. Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo.
3. Não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável.
4. Hipótese em que não há disputa de paternidade de cunho biológico, em confronto com outra, de cunho afetivo. Busca-se o reconhecimento de paternidade com relação a pessoa identificada.
5. Recursos extraordinários conhecidos e providos.
(RE 363889/DF, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 02/06/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-238 DIVULG 15-12-2011 PUBLIC 16-12-2011)[3]
À época, o exame de DNA já existia e não foi realizado apenas por falta de recursos próprios da parte autora, não obstante ser beneficiária da justiça gratuita.[4]
Posteriormente, com o advento da Lei Distrital 1.097/96, por meio da qual o Estado se propõe a pagar pelo exame para os que não têm condições de fazê-lo sem prejuízo próprio, o recorrente pretendeu interpor novamente a ação de investigação de paternidade, apesar de já atingida pela coisa julgada.[5]
Durante a sessão de julgamento, muito se indagou sobre o peso do obstáculo constitucional, em razão da dignidade humana. No fim, prevaleceu a busca da verdade real sobre a eficácia preclusiva da coisa julgada, por se vislumbrar que o direito à personalidade tinha sido obstruído também pelo próprio Estado ao não custear o exame. Foi dada procedência à ação com fundamento no art. 5º, incisos XXXVI e LXXIV, e §6º do art. 227, todos da CF.[6]
O Ministro Luiz Fux destacou a existência de corrente doutrinária que flexibilizaria o prazo para ajuizamento da ação rescisória nas hipóteses de ação de investigação de paternidade julgada improcedente por ausência de provas, o que corroboraria com a tese de superação da coisa julgada.[7]
O Ministro Cezar Peluso[8], por sua vez, afirmou que o direito está mais atrelado à segurança que à verdade. Mas tal posição é repudiada pela doutrina moderna, porque, para se manter um mínimo de estabilidade jurídica, com cidadãos confiando nas instituições – reflexo do Estado Democrático de Direito –, deve-se respeitar e proteger, essencialmente, a dignidade da pessoa humana, ou seja, a verdade não pode ser obstaculizada a todo custo. (Sarlet, 2006)
Os parâmetros norteadores da linha de fundamentação vencedora estão de acordo com a razoabilidade clamada pela doutrina e pelo ordenamento vigente, afastando a teratologia incompatível com a Constituição em face da ponderação de preceitos fundamentais de igual ou maior relevância.
No mesmo sentido, em 2008, a Segunda Seção do STJ havia pacificado entendimento de que a inevitável excepcionalidade para a “quebra” da coisa julgada não seria atingida quando houvesse decisão de mérito transitado em julgado – tanto dando provimento à pretensão do autor, quanto negando por afastar categoricamente a paternidade –, sob pena de banalização da tese de relativização, o que traria insegurança jurídica.[9]
Essa interpretação foi baseada, precipuamente, no RESP 226.436/PR, de relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira.[10] Além de ter sido julgado improcedente por ausência de provas, há uma peculiaridade no caso julgado em 2001 pelo STJ: o exame de DNA à época não existia, o que tornava o pedido diverso da ação anterior, não havendo que se falar em coisa julgada material. Por isso, a Quarta Turma do referido Tribunal, acolhendo a alegação de violação ao art. 467 do CPC, rejeitou a preliminar para determinar o prosseguimento da ação com a consequente realização de prova específica – exame de DNA –, em função da verdade real.[11]
Encampou-se, portanto, que a ação de investigação de paternidade improcedente por falta de provas, ante a indisponibilidade do exame de DNA permitiria a relativização da coisa julgada.[12]
O Ministro Humberto Gomes de Barros, relator do caso, considerou naquela hipótese que, em face da existência de um laudo pericial feito a partir do sistema MN, foi categoricamente afastada a possibilidade de paternidade, e por isso não seria plausível suspender a eficácia preclusiva da sentença para revisá-la - ressaltando-se que esta houvera sido ajuizada mais de trinta anos antes. Por cinco votos a quatro, prevaleceu o entendimento do relator. O responsável pelo desempate, obedecendo ao regimento interno, foi o presidente da Seção, Ministro Aldir Passarinho.[13]
Contudo, tal posicionamento, que supostamente havia pacificado a jurisprudência do STJ, não foi aplicado em diversos casos – ou pelo menos, não como inicialmente se firmou. Em que pese à relação de hierarquia entre seções e turmas julgadoras de tribunal superior os magistrados têm observado, tão somente, o princípio do livre convencimento do juiz.[14]
Tem-se a controvérsia mais clara no exemplo trazido pelo RESP 899.981/MG da Terceira Turma, fundado, inclusive, no acórdão da Segunda Seção anteriormente citado, mas sem seguir a mesma fundamentação de mérito.[15]
O posicionamento do STJ foi equivocado, tanto é que o STF, ao julgar o RE interposto, cassou o acórdão do Resp. Considerou-se que a matéria já havia sido afetada ao Pleno por meio do RE 363.889/DF, que reconheceu a repercussão geral diante da matéria constitucional controvertida. O STJ divergiu de sua orientação.[16]
Fica cabalmente demonstrada a incoerência do STJ em aplicar a mesma fundamentação para casos sem compatibilidade fática completa, porque ao não analisar a questão de fundo da forma devida – o motivo pelo qual a ação tinha sido julgada improcedente –, acabou por arbitrariamente afastar o que a Segunda Seção tinha afirmado.
O mesmo aconteceu no RE 627.081/DF, de fevereiro de 2012, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, que em decisão monocrática afastou o que havia sido decidido pelo STJ.[17]
A conclusão a que se chega é que, o STJ, utilizando-se do entendimento rechaçado pelo STF, seguiu prolatando acórdãos antagônicos. Neste sentido, o Resp 1236166/RS, julgado em 2 de agosto de 2012, assim ementado:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E FAMÍLIA. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. IMPROCEDÊNCIA DE DEMANDA ANTERIOR. COISA JULGADA. SUPERVENIÊNCIA DE NOVOS MEIOS DE PROVA. IRRELEVÂNCIA. PREVALÊNCIA DA SEGURANÇA JURÍDICA. PRECEDENTES.
1. O Superior Tribunal de Justiça já assentou a impossibilidade de se renovar a investigação de paternidade em virtude do advento do exame de DNA, afastando a coisa julgada formada em processo anterior, no qual não houve o reconhecimento da alegada paternidade.
2. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp 1236166/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe 09/08/2012)[18]. (grifo acrescido)
Observa-se que a ementa é dúbia, pois afirmar que não houve o reconhecimento da paternidade na ação primitiva significa dizer que tal possibilidade também não foi afastada, ou seja, a decisão proferida naquele processo limitou-se à esfera de improcedência. Portanto, o requisito essencial, qual seja, a inexistência de decisão de mérito, passou despercebido pela Terceira Turma, já que seria suficiente à relativização a ausência de reconhecimento da paternidade.
Depreende-se, por fim, que a imperiosa análise casuística da ação de paternidade no âmbito do STJ anda sendo negligenciada, o que traz instabilidade jurídica porque o Estado Democrático de Direito só existe enquanto cidadãos confiarem nas instituições. (Sarlet, 2006)
Impossível ter-se diferentes órgãos julgadores superiores com posicionamentos divergentes, pois, além da ofensa aos princípios citados, é atentatório à dignidade justiça.
3.1 – Eficácia das decisões do STF em controle difuso
As decisões proferidas pelo STF em sede de controle difuso possuem eficácia erga omnes e efeito vinculante? Inicialmente, apenas produzia efeito inter partes, mas, ante o advento da Lei 10.259/01 o recurso extraordinário começou a enfrentar um processo de “objetivação”; passou a conferir um dever de observância quase que direto às instâncias inferiores.
Com o advento da sistemática de repercussão geral – Lei 11.418/06, autorizada pela EC 45 – o comprometimento dos magistrados de primeiro e segundo graus com aquilo que estava sendo decidido pelo STF ficou ainda mais claro.
Diante disso, por que o RE 363.889/DF foi ignorado pelo STJ, mesmo tendo sido reconhecida a repercussão geral da matéria? Talvez deva ser trazida de volta à tona a complexa discussão acerca do papel do Senado segundo o art. 52, X da Constituição, pois se não for caso de mutação constitucional, como alguns defendem, a decisão, de fato, não foi desrespeitada, já que inexiste resolução publicada por aquela Casa Legislativa com vistas a ampliar o espectro de incidência do acórdão.
Sem querer adentrar no âmbito da referida controvérsia, recentemente, na RCL 4.335, o Ministro Ricardo Lewandowski votou por afastar a tese de mutação constitucional – capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes –, já que a suspensão de norma pelo Senado Federal, ao seu modo de ver, está longe de ser, tão somente, uma publicização das decisões do STF. Pediu vista o Ministro Teori Zavascki, prolongando o impasse quanto à matéria.
3.2 – Divergência no âmbito dos tribunais de justiça
Na esfera infraconstitucional, o posicionamento do STJ desde 2001 não foi tranquilamente acatado pelos tribunais estaduais no tocante às ações negatórias de paternidade ajuizadas após o trânsito em julgado da sentença que declarou a paternidade.
Na apelação 20070110789575 julgada pelo TJDFT a Turma, por unanimidade, cassou a decisão anterior que relativizara a coisa julgada para dar procedência à ação negatória de paternidade, permitindo a realização do exame de DNA – que chegou a ser realizado –, retornando à situação jurídica anterior, conferida por sentença de 1989.[19]
Em outras palavras, a paternidade foi restabelecida, considerando, para tanto, o fato do pai, ora apelado, ter à época recusado-se a fazer perícia e aceitado, espontaneamente, a paternidade, mesmo tendo levado o exame de DNA ao conhecimento da Turma, comprovando que inexistia relação de parentesco biológico, foi levado em conta a relação sócio-afetiva de mais de 20 anos.[20]
Dito isto, questiona-se a real legitimidade do Poder Judiciário para atingir de modo tão intenso as partes envolvidas. Decisões essencialmente contraditórias proferidas em lapsos de tempo tão distintos trazem angústia e desconfiança às partes. Por óbvio não se pode olvidar o acesso à justiça, mas, por outro lado, existe um motivo lógico para a coexistência de filtros, processuais e constitucionais que visam, por exemplo, manter um nível condizente de segurança jurídica.
Por oportuno, pode-se concluir que o erro processual do juízo de primeira instância ao flexibilizar a coisa julgada em face de uma sentença de mérito, com trânsito em julgado, trouxe insegurança jurídica, não só por ter anulado a paternidade, mas, além disso, por ter restaurado o status quo ante após vários anos.
As partes continuarão, juridicamente falando, pai e filho, todavia, agora não só sabem que não possuem vínculo biológico, como deverão suportar o abalo emocional trazido pelo litígio.
A peculiaridade do presente caso leva à análise profunda da dogmática que se encontra por trás dos próximos dois.
Após negada a procedência da ação negatória de paternidade, a Ap 70008102378 do TJRGS foi julgada procedente em 2004 para relativizar a coisa julgada material e dar seguimento à instrução probatória do feito, inclusive com a realização do exame de DNA. Em síntese, o órgão julgador concluiu que a sentença do processo primitivo julgou procedente a ação investigatória sem ter provas materiais para tanto – o réu não compareceu ao exame hematológico marcado e o magistrado interpretou como recusa imotivada, sentenciando em seu desfavor.[21]
Entretanto, não faltam argumentos para afastar a hipótese de desconstituição da coisa julgada. Primeiro, porque a decisão tem conteúdo de mérito – e o réu não recorreu. Segundo, o Estado tem como obrigações máximas a proteção do menor e da família. Discutir a questão utilizando como desculpa eventual promiscuidade da mãe à época e o valor exacerbado do exame de DNA, enquanto existiam outros métodos acessíveis, não é razoável.
Noutro caso do TJRGS - Ap. 70031120124 –, julgado após cinco anos, a via ainda mais estreita para se relativizar a coisa julgada em decisões que concluíram pela procedência da ação inicial também foi alargada.[22]
A inicial foi julgada procedente com base em acordo, homologado pelo juízo, no qual houve o reconhecimento da paternidade, entretanto, em sede de apelação, um acórdão unânime reformava a decisão em face da importância do direito em questão.
Possui, contudo, conteúdo de mérito, a decisão de procedência fundada em acordo homologado no juízo de origem, nos termos do art. 269, III do CPC. E seguindo a lógica do STJ, o entendimento predominante foi desconsiderado.
Ademais, o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente dá ampla guarida ao menor que quiser obter o reconhecimento de sua filiação, pois esta é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível. Não trazendo a mesma prerrogativa ao respectivo pai, que pretender inverter a ordem do direito protegido. Afinal, sequer existe fundamento para embasar a alegação de que a falta de exame de DNA afasta, automaticamente, a incidência da coisa julgada material nas ações negatórias de paternidade.
Até mesmo porque, além de permitir a revisão, pelo Poder Judiciário, de processo que continha decisão de mérito, indo de encontro às normas processuais, aduz, que, caso o exame afaste a hipótese da paternidade biológica do autor da ação, dever-se-á, ainda, avaliar a paternidade afetiva. O que desestruturará a relação do recorrido com o que este, por mais de 30 anos, conhecia como “família”, e será mesmo que compete ao direito esse dever de intrometer-se tanto na vida de alguém, sob o argumento de estar buscando a verdade real?
Onde está a observância ao decidido pelo órgão máximo da legislação infraconstitucional? O STJ tem o fim precípuo de uniformizar a interpretação do direito federal, por isso seus precedentes devem ser sempre observados.[23] O prejuízo da divergência jurisprudencial no âmbito estadual é incomensurável, não só para o sucumbente, mas para o vencedor e para a máquina estatal, que continuará abalroada; a parte será obrigada a esperar anos e anos, para reverter a balburdia, na instância superior.
3.3 Exposição de motivos do projeto do novo CPC
Ante a conjectura atual, o projeto do novo CPC traz alguns aspectos chaves. Um exemplo é o prestígio pelo princípio da segurança jurídica, balizador das relações entre indivíduos e do próprio Estado. (Exposição de motivos, 2010)
A partir de uma sugestão, inspirada no direito alemão, foi criado um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que será utilizado para demandas de primeiro grau tendenciosas a divergências. Pretende-se evitar, dessa forma, também, o aumento exponencial do número de processos sobre o mesmo tema. Concomitante a isso, com vista a desarticular essa enorme instabilidade jurisprudencial, o regime dos recursos repetitivos será mais amplo, permitindo a suspensão de julgados em todas as instâncias, até o julgamento da matéria. (Exposição de motivos, 2010)
Para isso, o Código inteiro revela certa obediência – direta – à jurisprudência dos tribunais superiores e do Supremo. Muito embora se reconheça a afronta ao princípio do livre convencimento do magistrado, coloca em primeiro lugar o interesse social coletivo na estabilidade dos atos emanados do Poder Judiciário. (Exposição de motivos, 2010)
Ao longo da exposição de motivos, percebe-se que o intuito não foi o de tolher os poderes do magistrado, que é revestido pela supremacia de um Estado Democrático de Direito, mas criar um processo civil com menos dissonâncias, ao mesmo tempo em que célere, coeso e humano. (Exposição de motivos, 2010)