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A constitucionalização das relações privadas

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Agenda 22/09/2013 às 15:15

1.3. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os parâmetros normativos primordiais dos direitos fundamentais do homem estão apresentados na Magna Carta de 1215 do Rei João Sem-Terra ao assegurar privilégios feudais aos nobres, sendo acompanhado no Direito Anglo-Saxão pelo Petition of Rights de 1628, o Habeas Corpus Act de 1628 e o Bill of Rights de 1689, estabelecendo-se direitos adotáveis pelos particulares contra o Estado. Todavia, a mola mestra sobre a criação e importância na sociedade moderna dos direitos fundamentais, decorreu do advento da Declaração de Direitos da Virginia de 1776 e a Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.[40] É bem verdade que num conceito filosófico, as origens decorrentes de direitos humanos precedem a ordem normativa apresentada nos textos anglo-saxões, sendo num primeiro momento classificáveis como direitos imanentes ao ser humano e de caráter absoluto.

O estudo científico dos direitos humanos coincidirá com o próprio constitucionalismo e a visão de liberalismo político que se apresentava na virada do período medieval para o Estado Moderno, incorporando-se ao texto constitucional a visão adstrita dos direitos fundamentais ao homem e que ganhará força nas leis fundamentais positivadas, passando a se tornar juridicamente válidos. Em seu primeiro estágio jurídico se resumiu a uma aplicabilidade exclusiva na relação que existia entre o Estado e o homem e tinha como finalidade precípua conservar as liberdades individuais contra as interferências do Poder Público, impondo um dever de abstenção do Estado em que se respeitaria um ambiente absolutamente liberal sendo o ente público mero expectador das relações privadas então desenvolvidas. Haveria nesse momento o reconhecimento de que o particular era detentor de direitos subjetivos que constituiria o núcleo essencial de sua existência e o posterior enquadramento de deveres gerais de abstenção do Estado para a consecução desse espaço ontológico do homem. A preocupação com os direitos fundamentais ao homem tinha como viés a percepção da atuação estatal numa concepção exclusivamente individualista sem se ater de forma categórica ao contexto coletivo-social, firmando as diretrizes primordiais de uma dimensão subjetiva dos direitos fundamentais onde se revelava a preocupação pontual com a limitação jurídica estatal. Denota-se o conceito de liberdades públicas como centro irradiador dessa relação do Estado com os direitos essenciais ao homem.[41] A relação expressar-se-ia tão somente num viés vertical, impondo uma abstenção estatal na sua relação com o ser humano, primando-se sobre a idéia do ser humano como um elemento isolado sem a devida preocupação com suas relações com os outros particulares.

No mundo ocidental, as Constituições Mexicanas de 1917 e a Lei Fundamental da República Alemã de 1919 iniciaram uma alteração na visão de ação do Estado para buscar a efetivação dos direitos fundamentais, deixando seu perfil absenteísta e passando a adotar mecanismo ativos para conseguir implementar os novos conceitos inseridos no texto normativo.[42] Passa-se ao estágio do Estado-ator e não mais mero espectador inerte. Criam-se verdadeiros programas de governo almejando o alcance finalístico dos direitos positivados do homem. Além das limitações públicas que já se encontravam presentes nos textos liberais, incorporou-se novos direitos e as finalidades sociais que passam a ganhar corpo em detrimento de um antropocentrismo tão próprio das Constituições que a precederam. Temos nesse novo contexto a idéia de normas programáticas e que mereceriam posteriormente um melhor destaque quanto a sua força normativa.

    Com o advento do Estado Social, fortaleceu-se e ganhou espaço o perfil estatal de intervenção nas relações privadas mudando o paradigma de sua atuação na busca de uma igualdade material. Leva-se o Estado, portanto, a alterar os parâmetros adotáveis de atuação frente aos direitos fundamentais do homem. Sendo expressão direta de uma ordem jurídica constitucional e expoentes de seu núcleo essencial, os direitos fundamentais não se resumirão mais a uma medida de abstenção e de previsão de ação, mas efetivamente o Estado passará a agir na busca de concretizar preceitos que estariam encartados na norma constitucional, chamando agora toda a coletividade a agir em prol da consecução dos ideários do homem.[43] Impera agora um mecanismo positivo de obtenção dos alcances fundamentais contidos na norma constitucional caracterizando-se na concepção finalistica do próprio Estado.[44] É o advento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais. A preocupação nesse atual estágio manterá a visão do homem como centro irradiador das decisões estatais, todavia inserindo-o dentro de um contexto social-coletivo, gerando contundo o reconhecimento de que o respeito a tais direitos não é um problema exclusivo do Estado, mas de toda a sociedade. [45] Boaventura de Souza Santos, analisando o perfil coletivo português, demonstra que naquele país mesmo diante de uma Estado não-providente a coletividade supriria essa ausência, preenchendo as lacunas e caracterizando-se como uma sociedade-providente.[46] Atribui-se nesse novo momento, efeitos jurídicos concretos a toda a normatização sobre os direitos fundamentais.[47] Willis Santiago Guerra Filho citando Canotilho coloca as normas que tratam acerca dos direitos fundamentais do homem como cânones de máxima efetividade, eficiência ou de interpretação efetiva.[48] Como assevera Sarmento, ganha destaque um movimento de irradiação dos direitos fundamentais espraiando-se por todo o ordenamento jurídico, condicionando a atuação e interpretação das normas constitucionais e infra-constitucionais como impulsos e diretrizes para a administração, o legislador e o judiciário, ensejando a humanização da ordem jurídica.[49]

No ambiente constitucional em que decorre uma imposição de abstenção e ação de toda a coletividade para a perfeita consecução dos direitos fundamentais não poderemos mais atribuir uma eficácia estritamente vertical, com suas “garras” exclusivas a atividade do Estado, mas o dever de exigir de todos os cidadãos a responsabilidade com o respeito e implementação a direitos do homem. Paulo Freire narra em sua obra “Pedagogia da indignação”, a necessidade do homem ter consciência do seu papel e intervir diretamente no mundo em que vive para alçar as mudanças que toda a coletividade almeja.[50] A eficácia poderá ser vista agora com um viés horizontal de aplicabilidade direta entre as pessoas e as entidades privadas. Decorre dessa nova interpretação um aumento cada vez mais intenso de normas de conteúdo indeterminado e aberto nas relações privadas, onde sua interpretação e construção pelo jurista decorrerão de uma compreensão extensiva dos fundamentos constitucionais e seus objetivos fundamentais.[51] No âmbito do Direito Constitucional Brasileiro e toda a construção normativa que se faz presente, a eficácia dos direitos fundamentais se valerá em reconhecer a dignidade da pessoa humana como norte constitucional a ser seguido, caracterizado como vetor axiológico dos direitos fundamentais e a busca na construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Para alcançar tais diretrizes, não basta que o Estado e seus órgãos venham a agir, mas, a partir da irradiação da eficácia dos direitos fundamentais, toda a coletividade possa visualizar em suas condutas o modo de atingir tais mandamentos constitucionais na construção de um direito mais social.

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 1.3.1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NAS RELAÇÕES PRIVADAS

Ao se iniciar a discussão sobre os direitos e garantias fundamentais do homem, a primeira pergunta que se faz é: qual a razão jurídica de se garantir e incentivar que o ser humano possua direitos fundamentais? Sobre esse prisma inicial, deveríamos encampar a busca no próprio texto constitucional, sem desmerecer o contexto filosófico, quais seriam os parâmetros valorativos que o Estado almeja alcançar. Nessa interpretação axiológica, os cumprimentos aos fundamentos constitucionais implícitos e explícitos da ordem jurídica servirão de base para a resposta do questionamento acima apontado. No ordenamento jurídico brasileiro, o Constituinte originário em momento de lucidez, inseriu como fundamento do Estado Democrático de Direito a proteção a dignidade da pessoa humana, dando-lhe a característica de princípio-mor de toda a discussão sobre os direitos fundamentais do homem.  

Numa visão historicista/pragmática da dignidade da pessoa humana, encontramos seus primórdios fundamentais ainda na concepção cristã ao trazer menções da criação do homem à imagem e a semelhança de Deus, dotando-lhe de um valor próprio que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto.[52] Já na antiguidade clássica, a dignidade da pessoa humana na visão filosófica dos sofistas passou a ser visto como as funções ou atividades exercidas por aquele homem no seio da sociedade, criando-se a partir dessa função social, o que os gregos caracterizaram como “prosópon”, e que foi traduzido posteriormente pelos romanos no sentido de “persona”, sentido próprio de rosto, máscara de teatro que individualizava a pessoa.[53] Percebia-se daí a caracterização de pessoas consideradas mais ou menos dignas, a depender da função que exercia na sociedade e da posição social que ocupava. Em outro viés, para a filosofia estóica, trouxe um aprofundamento da idéia de “personalidade” analisando-o sobre a visão da unidade moral no contexto da dignidade do homem, pois todos seriam filhos de um mesmo Deus.

No contexto filosófico, a grande ruptura entre a tradição anterior amarrada as concepções religiosas e uma formulação tipicamente racional foi empreendido por Samuel Pufendorf, fundamentando-se na liberdade moral como característica fundamental do ser humano.[54] Pufendorf considerava a dignidade da pessoa humana como a liberdade do ser humano optar de acordo com sua razão e agir conforme seu entendimento e sua opção. Seria a base da liberdade eticamente vinculada e da igualdade dos homens.[55] O amadurecimento metafísico ocorreu nas leituras de Immanuel Kant que construiu suas bases filosóficas a partir da natureza racional do ser humano, assinalando que a autonomia da vontade seria entendida como a faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com certas leis, atributo encontrado apenas nos seres humanos e que se constituiria em fundamento da dignidade da pessoa humana, visualizando na pessoa o reconhecimento de que ela seria considerada como um fim, insuscetível de coisificação ou instrumentalização.[56] A dignidade seria uma qualidade a ser conquistada.[57] Se caracterizaria como uma nota distintiva do ser humano.[58]

A incorporação da dignidade da pessoa humana aos textos normativos, vez que nos momentos prefaciais originava-se exclusivamente de apanhados religiosos e éticos, ocorreu após a Segunda Grande Guerra Mundial, passando a figurar em diversos textos normativos internacionais, com destaque para a Declaração Universal da ONU de 1948, e no centro valorativo de diversas constituições pós-modernas. No Estado Brasileiro com o advento da Constituição Federal de 1988, ganha contorno de fundamento do Estado Democrático de Direito e efetivo princípio constitucional de direito fundamental, representando o núcleo essencial e irradiador de todos os demais direitos humanos. Em que pese originalmente uma visão subjetiva de seu termo, ganha contornos objetivos a partir do instante em que permite ao aplicador do direito a construção das decisões judiciais a partir de sua análise axiológica, sendo caracterizado como vetor valorativo dos direitos fundamentais.[59] Nas palavras de Luis Roberto Barroso o princípio da dignidade da pessoa humana se expressa num conjunto de valores civilizatórios, extraindo dele o sentido mais nuclear dos direitos fundamentais.[60] Willis Santiago Guerra Filho utilizando-se da classificação empregada por Karl Larez, classifica a dignidade da pessoa humana como princípio constitucional geral, encontrando-se num patamar superior aos princípios constitucionais especiais, onde se extrairia os direitos fundamentais do homem e de onde sairiam os mecanismos de concretização do respeito à dignidade da pessoa humana.[61]

Estando a justiça como uma das finalidade do direito, aquela não poderia vir a existir sem a necessária compreensão e aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana como seu alicerce para alcança-la.[62] Nesse contexto faz-se importante considerar a aplicação da dignidade da pessoa humana em todos os momentos da vida em sociedade e não apenas na relação protetiva e ativa do Estado com o cidadão. Como já fora objeto de explicitação no sub-tópico antecedente desta pesquisa, os direitos fundamentais do homem se irradiam no âmbito de todo o ordenamento jurídico, e com mais ênfase na sua base valorativa encartado na dignidade da pessoa humana, elemento necessário para se alcançar a pretensa justiça social incorporada no bojo normativo constitucional. Nas relações entre particulares, o respeito aos direitos fundamentais se mostrará indispensável diante da necessidade de se atender a dignidade da pessoa humana como fundamento de toda a ordem normativa dos direitos fundamentais dos homens. A interpretação dos negócios jurídicos, o conceito de boa-fé contratual, a definição de função social do contrato, a garantia de igualdade material nos contratos, a idéia de patrimônio mínimo[63], entre outras, encontrará seu norte de solução no sentido primordial de garantir ao ser humano uma vida digna, levando o homem a ser o centro das relações privadas. [64] As normas do Direito Civil perpassam ao texto constitucional e encontram seu plexo de validade num campo fértil onde empregam para o complemento de seus conceitos abertos valores sociais como fundamento axiológico e que tem por base a garantia ao ser humano de uma vida digna, mantendo-o em uma posição nuclear do ordenamento jurídico.[65]

1.3.2. A CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE LIVRE, JUSTA E SOLIDÁRIA E AS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES 

O ideário republicano francês criou a perspectiva dos Direitos Fundamentais sobre a tríade da liberdade, igualdade e fraternidade. Para Fábio Konder Comparato seria o núcleo axiológico supremo.[66]  É bem verdade que no campo das idéias o pensamento francês/burguês se preocupou de modo muito mais intenso em preservar a manifestação livre de vontade, como se tal liberdade pudesse ser considerado o mecanismo único para se chegar as demais bandeiras da Revolução Francesa em detrimento da igualdade e da solidariedade. A igualdade e a fraternidade não receberam a atenção que lhes seriam devidas no primeiro estágio, principalmente quando se faz necessário a análise conjunta de todas as diretrizes do tripé fundamental para o bom desempenho social. A justificativa se reportava muito no modo de pensar individual sem a preocupação com o contexto coletivo.

Na perspectiva do Estado Social, passa-se a mudar o foco de preocupação garantindo-se nesse novo estágio e com base ainda nos 3 elementos liberais, uma conduta mais próxima da igualdade real, ocupando-se o Estado na garantia de efetivar uma igualdade não apenas formal, mas efetiva entre os cidadãos e na visão de solidariedade, como centro irradiador das decisões estatais e da conjunta entre iguais. Decorre o advento dos direitos sociais, crescendo o fundamento ético/filosófico da justiça distributiva.[67]

Seguindo a tríade francesa, o Estado Brasileiro elege como objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Tais diretrizes são incorporados ao ordenamento normativo como um caminho que o Estado e os particulares em suas relações deverão seguir. Não deverão se afastar do contexto geral de interpretação das normas e condutas, mais umbilicalmente ligadas como um objetivo a ser preenchido. Logicamente, não se poderá imaginar a presença desses objetivos sociais sem fazer menção a dignidade da pessoa humana, corolário fundamental dos direitos fundamentais do homem. Ter como objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária é garantir que os caminhos que o estado e a sociedade percorrerá o levará ao final ao atendimento do ser humano numa vida com dignidade, lhe sendo preservados os diversos direitos sociais do texto constitucional. E como mencionamos nessa pesquisa, a dignidade da pessoa humana estaria umbilicalmente ligado a justiça social, pois é o vetor valorativo dos direitos fundamentais.[68]

Dentro e para a atividade particular, o que se busca é que as pessoas possam nas suas relações intersubjetivas primar pela construção de uma sociedade solidária em seu contexto finalístico. Para o intérprete das normas, almeja-se que ao julgar determinado conflito ou dirimir questões que necessitem de uma ponderação de interesses o façam também na busca de preservar os objetivos solidários da República Brasileira.[69] Mostra-se com isso que cada vez mais a preocupação sai das barras do patrimonialismo e ingressa na figura do ser humano e suas necessidades vitais. A idéia de “repersonalização” permanece contida nas relações particulares, agora com substrato fundamental na construção de uma sociedade justa e solidária. Nas colmatação das lacunas, no decifrar dos conceitos abertos e na solução pontual das questões civis em geral, deverá o aplicador do direito partir das premissas de que o homem está no centro destas relações, conformando o sistema que se encontra aberto com os princípios e valores fundantes da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana.[70]

Sobre a autora
Kelery Dinarte da Páscoa Freitas

Defensor público Federal. Mestre em Direito Constitucional pela UNIFOR. Professor de direito civil e processo civil pela UNIFOR.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Kelery Dinarte Páscoa. A constitucionalização das relações privadas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3735, 22 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25376. Acesso em: 22 dez. 2024.

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