Um dos fundamentos do Estado é a repressão. Teoricamente ela visa a preservação da legalidade e só pode ser realizada dentro dos limites fixados pela lei. Os abusos cometidos pelos agentes de segurança contra os cidadãos podem e devem ser reprimidos.
Na prática, entretanto, a repressão sempre foi um instrumento político nas mãos do governante para preservar as suas ilegalidades e para eliminar a desobediência civil (mesmo quando esta é legitima). No Brasil, a repressão estatal sempre foi exagerada e tendeu a reduzir as liberdades políticas. Não raro os abusos cometidos pelos agentes de segurança ficaram impunes em virtude do sadismo, racismo e elitismo daqueles que acreditam ter o privilégio de mandar e de legitimar abusos contra a população.
O resultado desta oposição entre a "teoria do Estado" e a "prática repressiva" sempre foi e é a "naturalização da violência". Em todos os episódios de crise, o Estado brasileiro reagiu com extrema brutalidade e preservou a impunidade daqueles que mataram, torturaram e espancaram pobres para supostamente preservar a ordem. Os exemplos são muitos e vêm desde os tempos da Colônia: massacre de tupinambás durante a Confederação dos Tamoios (1554/1567), destruição do Quilombo dos Palmares (1694), combate aos Cabanos (1835 a 1840), aos Malês (1835), aos Farrapos (1835 e 1845), aos Balaios (1838 a 1841), aos Quebra Quilos (1874/1875), aos habitantes de Canudos (1896/1897) e, mais recentemente, aos comunistas (Estado Novo a partir de 1937, Ditadura Militar após 1964). Em todos estes episódios os revoltosos também utilizaram violência contra os agentes da repressão, legitimando o crescimento da mesma por causa do apoio dos colonos, dos aristocratas, dos brasileiros "bem nascidos" e católicos.
Nos últimos meses temos visto as PMs paulista e carioca reprimirem de maneira extremamente brutal manifestações populares organizadas por causa da incompetência e desonestidade de Sérgio Cabral e Geraldo Alckimin. Para cada PM machucado dezenas, as vezes centenas de pessoas, são agredidas, espancadas, intoxicadas com gás e atingidas com tiros de borracha disparados pelos agentes de segurança. Os abusos policiais tem sido frequentes e só despertam verdadeira reação da imprensa quando um jornalista é atingido. Em geral, a mídia tem desqualificado os manifestantes, legitimando a "naturalização da violência" policial. Alguns jornalistas clamam por mais repressão, por mais violência estatal e acusam os governadores de serem muito tolerantes.
Na sexta-feira passada, 25/10/2013, durante um conflito de rua o Coronel da PM paulista Reynaldo Rossi foi agredido e sofreu uma grave lesão. Os autores da agressão foram mascarados supostamente ligados ao Black Bloc. A imprensa noticiou fartamente o ocorrido enfatizando a brutalidade cometida contra o policial e se esquecendo da violência praticada sob seu comando.
Sempre critiquei a violência policial e lutei pela punição dos agentes de segurança que cometem excessos. Nem por isto vou dizer aqui que a violência praticada contra um coronel da PM é legítima. Apesar de compreensível (em razão raiva que os abusos impunes cometidos por policiais paulistas despertam nos manifestantes), a agressão contra Reynaldo Rossi foi ilegal e certamente produzirá consequências indesejadas pelos manifestantes. Mesmo que o autor da agressão não seja localizado e pessoalmente punido (mediante acusação, processo, condenação e prisão), o episódio será doravante utilizado nos quartéis da PM para instigar os policiais contra os manifestantes e na imprensa para legitimar maior e mais eficiente repressão contra os mesmos. Prisões em massa irão ocorrer nas próximas manifestações, agressões mais graves serão praticadas pelos policiais e o uso de armas de fogo contra os manifestantes e membros do Black Bloc é uma possibilidade que não pode ser descartada.
Os exemplos da História do Brasil acima citados autorizam esta interpretação. A violência popular contra agentes do Estado nunca foi tolerada e nos últimos 500 anos sempre acarretou mais violência repressiva e maior impunidade dos abusos cometidos em nome de uma suposta preservação da lei e da ordem. É por isto que não creio que o episódio de sexta-feira seja um indício de revolução. No limite ele apenas demonstra a obediência do Black Bloc ao sistema repressivo brasileiro, na medida em que seus membros forneceram ao Estado o pretexto que o mesmo precisava para destruir as manifestações e limitar ainda mais as liberdades políticas da população.