Resumo: O ordenamento jurídico brasileiro tem como valor fundamental a dignidade da pessoa humana, princípio que busca a garantia de um mínimo existencial para uma vida digna. Os honorários advocatícios representam a remuneração dos advogados, e dessa forma, devem ser estabelecidos em valores que garantam a subsistência digna destes profissionais. Ainda assim, percebe-se o aviltamento dos honorários advocatícios, grave problema enfrentado pelos profissionais da advocacia atualmente.
Palavras-chave: honorários; aviltamento; dignidade humana; advocacia; remuneração.
Sumário: Introdução – 1 O valor fundamental da dignidade da pessoa humana – 2 Características dos honorários advocatícios – 3 O atual aviltamento dos honorários advocatícios – Considerações finais – Bibliografia.
Introdução
A dignidade dos profissionais da advocacia depende, entre outros elementos, de uma remuneração digna, condizente com os serviços jurídicos prestados, e estabelecida de forma suficiente para o sustento do próprio advogado e de sua família.
De modo que não é possível que o princípio fundamental da dignidade humana seja efetivamente respeitado, sem que haja uma justa remuneração aos advogados, que prestam serviços relevantes para a sociedade, e são indispensáveis à administração da justiça. Ainda assim, os profissionais da advocacia têm enfrentado atualmente o aviltamento dos honorários advocatícios, problema resultante de diversos fatores.
Para refletir sobre esta questão, é preciso discorrer por diferentes aspectos. Primeiramente, será tratado o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, valor protegido constitucionalmente e que deve estar presente em todas as situações. A seguir, será abordado o tema dos honorários advocatícios, com suas espécies e principais características. Em seguida, será discutida a questão do aviltamento dos honorários advocatícios, problema cada vez mais presente no cotidiano dos profissionais da advocacia.
A importância desse trabalho, ressalte-se, é demonstrar a relação entre a justa remuneração dos advogados, com o recebimento de honorários advocatícios condizentes com os serviços prestados, e o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que somente possui efetividade quando o profissional é dignamente remunerado, pois não há dignidade sem uma remuneração que assegure uma subsistência digna.
1 O valor fundamental da dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana trata-se de conceito amplo, e segundo Azevedo, “tomada em si, a expressão é um conceito jurídico indeterminado; utilizada em norma, especialmente constitucional, é princípio jurídico”.[1] Pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana significa a expressão do valor da pessoa humana: a pessoa humana é o bem, e a dignidade, a projeção do seu valor.
Segundo Barroso, “Dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. O conteúdo jurídico do princípio vem associado aos direitos fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade”.[2]
Deve-se ressaltar que a dignidade da pessoa humana é um conceito em processo constante de desenvolvimento, e que não pode ser configurado de maneira estanque, diante da diversidade de valores que deve abranger.[3]
Apesar de a dignidade ser considerada valor inerente ao ser humano, o seu reconhecimento jurídico é relativamente recente, mesmo no direito comparado. Somente a partir da inclusão do princípio na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, é que este foi positivado em alguns ordenamentos jurídicos, e países como Alemanha, Brasil, Espanha, Grécia e Portugal inseriram esse princípio em seus textos constitucionais.[4]
No Brasil, o advento da Constituição Federal de 1988 impôs a todo o ordenamento pátrio a proteção plena da pessoa humana, ao elevar a dignidade da pessoa humana ao status de valor constitucional e de fundamento da República.
Assim, a Constituição Federal de 1988, logo em seu artigo 1º, inciso III, estabelece que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Determina, desse modo, que os direitos e garantias fundamentais são inafastáveis, vez que inerentes à personalidade humana. A dignidade da pessoa deve ser entendida como um fim, não como um simples meio para alcançar outros objetivos, ou como mera norma programática.
Nesse sentido, Bittar expressa sua preocupação no sentido que o princípio da dignidade humana não permaneça simplesmente no campo da teoria, sem qualquer efetivação: “Nesta linha, o que se externa é uma preocupação com a transformação de discursos em ações, de letra de lei em políticas públicas, de normas programáticas em programas de transformação da sociedade, desde as suas mais intrínsecas limitações, no sentido da afirmação prática e da realização da abrangência da expressão dignidade da pessoa humana, normalmente tida como mero expediente retórico do legislador constitucional. Ainda assim, vale dizer que, apesar da vagueza da expressão, deve servir como norte das ações governamentais e das ações sociais, no sentido da planificação da pessoa humana no convívio social. A expressão “dignidade da pessoa humana”, portanto, deixa de representar mero conceito aberto da Constituição e ganha um sentido como télos das políticas sociais, limite mesmo que permita diferir o justo do injusto, o aceitável do inaceitável, o legítimo do ilegítimo. Registra-se, com isto, que sua importância se deve ao fato de se encontrar topograficamente localizada no princípio da Constituição, o que denuncia a prevalência hermenêutica para a discussão exegética de seus demais dispositivos”.[5]
A importância desse dispositivo e a inovação por ele trazida são incontestáveis: colocou o ser humano como objetivo central do ordenamento jurídico, orientando e fundamentando todo o sistema, de maneira que todo ele esteja sistematicamente direcionado para a sua proteção.[6]
Tal princípio ético-jurídico orienta todo o ordenamento, atribuindo sistemática e unidade axiológica ao direito pátrio, que abandona seus valores precipuamente individualistas. De modo que o operador do direito deve primar pela proteção da dignidade da pessoa humana em toda interpretação ou aplicação de normas.[7]
Nesse sentido, destaca Piovesan: “[...] o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional. [...] A dignidade humana simboliza, deste modo, um verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe especial racionalidade, unidade e sentido”.[8]
Ademais, em respeito à superioridade hierárquica dos preceitos constitucionais, toda a legislação infraconstitucional deve ser interpretada e aplicada de acordo com o texto constitucional, que, além de vértice da legislação, tem papel unificador no sistema jurídico.[9] Assim, todo o direito brasileiro deve ser orientado pelos princípios constitucionais, especialmente os elencados como valores fundamentais, em que o princípio da dignidade da pessoa humana tem destaque, devendo ser sempre respeitado.
Com esse entendimento, Alexandre de Moraes: “A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos” [grifo original].[10]
De modo que, diante da importância e do papel que desempenha em todo o sistema jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser elemento-chave na solução de todos os conflitos de valores que se apresentem. Toda e qualquer decisão deve respeitar o princípio da dignidade humana, que é fundamento de toda a ordem jurídica, constitucional e infraconstitucional, sendo elemento fundamental no direito contemporâneo.
2 Características dos honorários advocatícios
O trabalho dos profissionais da advocacia é remunerado através do pagamento de honorários, cujo termo vem do latim “honorarius, que é feito ou dado por honra [...] significando paga, salário das profissões liberais”.[11] No entanto, há muito que a expressão “honorários” não tem relação direta com honraria ou homenagem, e sim com a remuneração pelos serviços prestados pelo profissional da advocacia.[12]
Nesse sentido, esclarece Lobo:
A remuneração do advogado, que não decorra de relação de emprego, continua sendo denominada honorários, em homenagem a uma longa tradição. Contudo, rigorosamente, o pagamento dos serviços profissionais do advogado nada tem em comum com o sentido de honorários que se empregava, por exemplo, em Roma. A advocacia incluía-se nas atividades não especulativas consideradas operea liberales, percebendo o advogado honoraria ou munera, com sentido de compromisso social, em vez de salário. Mas até mesmo em Roma, apesar de a Lei Cíntia (205 a.C.) vedar as doações remuneratórias, é duvidosa a afirmação de que o ministério privado do advogado era gratuito, sendo enganoso o termo honoraruim, como ressalva a doutrina [grifo original].[13]
Apesar de ter um único objetivo, o de representar a contraprestação pelo serviço jurídico prestado, os honorários advocatícios podem ser de três espécies: honorários convencionais, honorários de sucumbência e honorários arbitrados.
Os honorários convencionais são aqueles ajustados entre o advogado e o seu cliente no momento em que o profissional da advocacia é contratado para a realização de determinado serviço jurídico, com a formalização de tal acordo através de instrumento subscrito pelas partes. É forma de contratação mais recomendada, em nome da transparência e da seriedade do acordo de vontades, e para evitar eventuais desgastes futuros, especialmente ao que se refere ao quantum da verba honorária.
Nesse caso, os valores ajustados não devem ser inferiores aos parâmetros estabelecidos pela tabela organizada pelo Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, que existe justamente para garantir uma remuneração digna aos profissionais da advocacia, garantindo o mínimo existencial destes profissionais, o que significa o respeito ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, valor constitucional que deve prevalecer em todas as situações.
Ainda em relação às tabelas de honorários da Ordem dos Advogados do Brasil, não há a fixação de valores máximos, mas a recomendação é que os valores ajustados sejam estabelecidos com moderação, considerando os elementos elencados no Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil.[14]
Nesse sentido, estabelece o artigo 36 do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil:
Art. 36/CED. Os honorários profissionais devem ser fixados com moderação, atendidos os elementos seguintes: I – a relevância, o vulto, a complexidade e a dificuldade das questões versadas; II – o trabalho e o tempo necessários; III – a possibilidade de ficar o advogado impedido de intervir em outros casos, ou de se desavir com outros clientes ou terceiros; IV – o valor da causa, a condição econômica do cliente e o proveito para ele resultante do serviço profissional; V – o caráter da intervenção, conforme se trate de serviço a cliente avulso, habitual ou permanente; VI – o lugar da prestação dos serviços, fora ou não do domicílio do advogado; VII – a competência e o renome do profissional; VIII – a praxe do foro sobre trabalhos análogos.
Os honorários de sucumbência são aqueles decorrentes do sucesso em demanda judicial, sendo pagos pela parte vencida, e fixados pelo juízo, devendo obedecer aos parâmetros estabelecidos pelo artigo 20 do Código de Processo Civil.[15]
Há ainda os honorários arbitrados judicialmente, previstos no artigo 22, §2º do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, que têm lugar quando não foram ajustados os honorários convencionais, ou quando há divergência entre as partes a respeito dos honorários devidos.[16]
No entanto, independentemente da espécie dos honorários advocatícios, estes representam a renumeração dos profissionais da advocacia, e possuem caráter alimentar, significando, assim, a fonte de sustento do advogado e de sua família.
Os honorários advocatícios tanto possuem caráter alimentar, que são impenhoráveis, de acordo com o disposto no artigo 649, inciso IV do Código de Processo Civil, que assim dispõe:
São absolutamente impenhoráveis: [...] IV - os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3º deste artigo; [...][17]
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a natureza alimentar dos honorários advocatícios, conforme se verifica nos seguintes julgados: REsp 988.126/SP[18], AgRg no REsp 765.822/PR[19], REsp 865.469/SC[20], REsp 1032747/RS[21], entre outros com o mesmo entendimento.
3 O atual aviltamento dos honorários advocatícios
Apesar de seu caráter alimentar, os honorários advocatícios nem sempre representam uma remuneração digna aos advogados, que muitas vezes têm seus honorários aviltados, não somente pela grande concorrência existente, em que alguns profissionais acabam por desvalorizar a classe, ao cobrar honorários muito inferiores aos parâmetros estabelecidos pela tabela da Ordem dos Advogados do Brasil, mas também pelo problema da compensação dos honorários advocatícios e pelo aviltamento dos valores dos honorários de sucumbência, que muitas vezes são fixados em valores incompatíveis com o valor da condenação e com o trabalho desenvolvido.
Em relação à questão do aviltamento dos honorários advocatícios pelos próprios advogados, o profissional da advocacia deve atuar de forma a evitar o aviltamento de sua remuneração, não contratando serviços jurídicos por preços irrisórios ou em valores inferiores aos trazidos pela tabela de honorários da Ordem dos Advogados do Brasil.[22]
Nesse sentido, para Ramos, a questão é ainda mais complexa, por entender que o aviltamento dos honorários pelo advogado pode ensejar processo ético-disciplinar: “É passível de punição disciplinar, por infração ética, o aviltamento de valores dos serviços profissionais, conforme estabelece o art. 41 do Código de Ética”.[23]
Já em relação à questão da compensação dos honorários de sucumbência, o problema somente será resolvido com o reconhecimento do caráter alimentar da verba honorária,[24] e a conseqüente vedação da compensação, com o cancelamento da Súmula n. 306 do Superior Tribunal de Justiça, que estabelece que "os honorários advocatícios devem ser compensados quando houver sucumbência recíproca, assegurado o direito autônomo do advogado à execução do saldo sem excluir a legitimidade da própria parte”.
Apesar de atualmente tratar-se de matéria sumulada, a compensação dos honorários contraria os artigos 22 e 23 do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil e o artigo 368 do Código Civil, já que os advogados são credores de honorários advocatícios, mas não devedores dos mesmos, hipótese em que se torna inviável a utilização do instituto da compensação.
Isso ocorre porque somente pode ser aplicada a compensação entre pessoas que forem ao mesmo tempo credora e devedora uma da outra, o que não ocorre na fixação da sucumbência, em que os credores são os profissionais da advocacia e os devedores são as partes litigantes.
Nesse sentido, somente com a alteração da legislação, e a vedação expressa da compensação de honorários de sucumbência, é que o problema da compensação de honorários deixará de ser um fator impeditivo para uma remuneração digna para os profissionais da advocacia.
Quanto ao problema do aviltamento dos honorários de sucumbência, o que se percebe atualmente é muitos honorários fixados pelos magistrados não se coadunam com a atividade desenvolvida pelos profissionais da advocacia, e muito menos obedecem aos parâmetros estabelecidos pelo artigo 20 do Código de Processo Civil.
Os horários de sucumbência fixados em valores extremamente baixos, em patamar por vezes inferior a 10% – e até mesmo inferior a 1% – do valor da condenação, especialmente nas causas que envolvem grandes cifras, mostram-se aviltantes, já que os valores fixados mostram-se ínfimos diante do montante das condenações, não suprindo sequer o mínimo existencial que o respeito ao princípio da dignidade humana impõe.
A fixação da verba honorária, portanto, deve ocorrer em patamar condizente com o zelo e labor profissional e com a complexidade da demanda, como determina o artigo 20, §§ 3º e 4º, do Código de Processo Civil, e nesse sentido, a fixação dos honorários em valores inferiores a 10% sobre o valor da condenação são considerados aviltantes, não representando uma remuneração digna dos profissionais da advocacia.
De modo que a jurisprudência tem referendado que os honorários advocatícios devem ser fixados em, no mínimo, 10% sobre o valor da condenação.
Nesse sentido, é o entendimento do egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, conforme se verifica nos seguintes julgados: Agravo de Instrumento Nº 70040940512[25], Apelação Cível Nº 70033912676[26], Apelação Cível Nº 70039470158[27], Apelação Cível Nº 70035649177[28], seguindo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, conforme se depreende das seguintes decisões: REsp 1164561/MG[29] e REsp 1042946/SP[30].
Isso porque os honorários de advogado revestem-se de natureza alimentar e traduzem a dignidade profissional do advogado. Por isso, por ocasião de sua fixação, o julgador deverá obedecer aos parâmetros e critérios definidos no artigo 20, §§ 3º e 4º, do Código de Processo de Civil.[31]
De modo que os honorários advocatícios devem ser fixados de forma razoável, de maneira a se adequar os parâmetros traçados pelo Código de Processo Civil para tal finalidade, sopesando o trabalho desenvolvido, o tempo despendido e o grau de complexidade da matéria, entre outros elementos.
Ademais, a própria Constituição Federal, em seu artigo 133, elevou a atividade de advogado como essencial à administração da justiça, não se podendo olvidar da necessidade de remunerar condignamente a atividade dos profissionais da advocacia, seja por sua relevância social, seja por seu caráter de múnus público, com a própria atividade relacionada como essencial ao desempenho da justiça.
Conforme já referido, a dignidade da pessoa humana diz respeito a um mínimo existencial, de modo que a fixação de honorários advocatícios em patamar insuficiente para a subsistência digna dos profissionais da advocacia configura desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, o que não pode ser admitido pelo ordenamento jurídico pátrio.
Assim, o trabalho do profissional da advocacia deve ser adequadamente remunerado, não apenas em prol do reconhecimento da importância do exercício da advocacia enquanto função essencial à Justiça, mas também em respeito ao princípio fundamental da dignidade humana, valor constitucional e fundamento da República.