O livro A GUERRA DO FUTURO, Bevin Alexander, editado no Brasil pela Biblioteca do Exército, pode ser dividido em duas partes. Na primeira o autor delineia os caminhos que devem ser trilhados pela superpotência única hegemônica, fornecendo elementos para uma nova doutrina militar norte-americana. Na segunda, recupera as experiências e desventuras da Guerra dos Bôeres, Rebelião Árabe, Revolução Comunista na China, Guerra da Coréia e Guerra do Vietnam, conflitos que resultaram em mudanças significativas nas estratégias militares.
A primeira hipótese do historiador parece ter sido ironicamente frustrada pela História. Afinal, Bevin Alexander previu que as principais ameaças à segurança dos EUA eram “tentativas de uma ou mais potência de controlar matérias-primas essenciais, como petróleo; e tentativa de alguma potência de ganhar hegemonia ou dominar toda a Eurásia, ou uma parte dela.” Os principais conflitos militares iniciados pelos EUA neste princípio de século XXI (Afeganistão e Iraque) iniciaram por causa do terrorismo e da ambição norte-americana de controlar sozinha o petróleo do Oriente Médio. Estes duas guerras não foram, portanto, deflagradas em razão de outra potência tentar dominar militarmente aquela região.
Alexander defende a retaliação preventiva ao sustentar que os EUA “...tem que impedir que qualquer outra nação construa uma grande Marinha porque o controle dos mares é imperativo para a segurança norte-americana.” Além disto, segundo ele “...os Estados Unidos não podem permitir que outras potências conquistem o controle de matérias-primas industriais importantes ou do suprimento mundial de petróleo.” O historiador militar norte-americano não reconhece, portanto, a validade e eficácia da Lei Internacional que proíbe a agressão militar exceto nos casos de autorização do Conselho de Segurança da ONU e legítima defesa contra agressão armada não autorizada por aquele órgão.
Não só isto. O doutrinador militar norte-americano acredita piamente na hegemonia unilateral dos EUA, país que deve preventivamente impedir os outros Estados de atingir o mesmo status político e militar. Realista, Alexander admite porém que “Os Estados Unidos podem explorar sua posição de superpotência, mas não podem conquistar o mundo.” E alerta que com “... o fim da União Soviética, os Estados Unidos certamente perseguirão seus interesses econômicos mais energicamente.”
Os conselhos de Bevin Alexander foram provavelmente aceitos pelos governantes dos EUA. Tanto que eles resolveram criar os super-bancos de dados da NSA e recrutar Facebook, Google e Microsoft para ajudar à alimentar o pesadelo orwelliano denunciado por Snowden. Ao perseguir seus interesses econômicos mais energicamente, entretanto, os EUA conseguiram unir o planeta inteiro contra a espionagem massiva ilegal que pratica. Tanto isto é verdade, que o Secretário Geral da ONU já condenou publicamente a prática norte-americana. Alguns dias depois disto, Brasil e Alemanha apresentaram um Projeto de Resolução conjunta na ONU com a fim de reafirmar e defender a privacidade na internet. A aprovação deste projeto terá conseqüências devastadoras, pois empurrará os EUA para a ilegalidade caso o país não desmonte a estrutura de espionagem massiva que construiu.
O autor de A GUERRA DO FUTURO advoga a abertamente necessidade dos EUA celebrar alianças para realizar operações militares de grande envergadura. No presente momento e enquanto não for solucionada a grave crise diplomática que abalou as relações entre os EUA e seus parceiros e aliados massivamente espionados, dificilmente os norte-americanos conseguirão seguir o caminho sugerido por Alexander. O momento é mais propício para o unilateralismo de matiz imperial do que para ações militares multilaterais. Mesmo que os EUA desmontem a NSA e parem de espionar massivamente cidadãos e empresas e governos estrangeiros o grau de confiança indispensável para a realização de operações bélicas multilaterais demorará a ser recuperado.
Quase no final do último capítulo Alexander assevera que “... o romance norte-americano com a ‘construção de nações’ está enfraquecendo e tomara que desapareça.” Ledo engano. Após o ataque terrorista ao WTC, o sonho de construir, controlar e ocupar nações se tornou cada vez mais forte dentro de alguns influentes círculos de poder político e midiático dos EUA. A invasão do Iraque com base em mentiras e a espionagem massiva praticada pela NSA com ajuda de Facebook, Google e Microsoft são apenas manifestações concretas deste sonho que tem tudo para desembocar num pesadelo planetário.
As previsões feitas no capítulo QUE TIPO DE GUERRAS? também tornaram-se obsoletas após os atentados de 11/09/2001. Todavia, este capítulo é de suma importância, porque nele o autor defende a tese de que a guerra é uma extensão da política, que os norte-americanos deveriam abandonar a doutrina do destino manifesto para ater-se apenas aos benefícios políticos das guerras que pretendem realizar. Segundo ele “A tarefa dos militares norte-americanos não é vencer guerras, como insistiu Mac Arthur, mas atingir os objetivos políticos da nação.”
O sonho da hegemonia unilateral inconteste alimentado por George W. Bush Jr., Donald Rumsfeld, Dick Cheney e Condoleezza Rice, todavia, parece ter obliterado qualquer cálculo racional econômico, político e militar nos EUA. As campanhas no Afeganistão e no Iraque consumiram (e ainda consomem) trilhões de dólares, comprometendo a capacidade do país de cuidar internamente de cosias banais como educação e saúde da população. O déficit público dos EUA se tornou um problema crônico e levou ao quase colapso do país há algumas semanas. O endividamento externo dos EUA também cresceu de maneira assustadora e descontrolada, comprometendo a habilidade do país de impor ao mundo suas propostas de maneira suave.
Além disto, é no capítulo acima mencionado que o autor revela sua especial preocupação com os Conflitos de Baixa Intensidade, com as guerrilhas desencadeadas em virtude dos ataques militares norte-americanos contra nações mais fracas. Suas conclusões justificam plenamente a necessidade da análise mais acurada das táticas de guerrilha empregadas nos conflitos que aborda na segunda parte do livro.
No capítulo três Bevin Alexander analisa os fundamentos da supremacia dos EUA:- controle dos mares, superioridade aérea e tecnológica sobre os seus possíveis inimigos. “Uma vez que o comércio é a principal preocupação de todas as nações, os Estados Unidos são o mais importante fator para se terminar se o mundo permanecerá aberto ao comércio ou se sucumbirá ao protecionismo. Não porque os Estados Unidos têm a maior economia do mundo, mas porque possuem a maior Marinha.” A reativação pelos EUA da IV Frota mais ou menos na mesma época em que o Brasil anunciou que descobriu reservas petrolíferas na camada do Pré-Sal, entretanto, não se encaixa nessa doutrina.
O Atlântico Sul está e sempre esteve aberto ao comércio mundial. Todas as potências que são banhadas pelo Mar Oceano – como o mesmo era chamado pelos navegadores portugueses - expressaram seu compromisso formal e concreto de evitar o protecionismo e de mantê-lo navegável. Ao contrário de França, Holanda e China (países sedes das empresas que participaram do leilão do Campo de Libra), os EUA se recusam a reconhecer a soberania brasileira na área do Pré-Sal. Portanto, é evidente que a reativação da IV Frota revela ambições escusas e provavelmente imperiais dos EUA http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/EUA-reativam-IV-Frota-e-preocupam-dirigentes-da-AL/6/14205 .
Apesar de ter criticado o chamado destino manifesto na esfera militar, Bevin Alexander adota esta ideologia no plano político. Afinal, para ele só os norte-americanos estão realmente comprometidos com o comércio porque, tendo a maior Marinha, nunca a utilizaram para bloquear as rotas navais às marinhas mercantes do planeta. É falsa sua conclusão de que só os EUA podem ter uma grande Marinha de Guerra e tem o direito de atacar preventivamente qualquer outra nação que pretenda construir uma igualmente poderosa. Todas as nações que comerciam com os EUA têm interesse na preservação das rotas mercantis. Mesmo que estas não sejam fechadas pelo governo norte-americano os outros paises estarão sempre à mercê dos porta-aviões dos EUA caso não tenham uma Marinha de Guerra à altura da norte-americana.
O capítulo NOVAS TÁTICAS PARA UM NOVO EXÉRCITO também parece ter se tornado obsoleto. Apesar de superado pelo que ocorreu após 11/09/2001, o capítulo é fundamental mais que revela nas entrelinhas do que pelas teses do autor.
Apesar dos EUA estar em condições de enfrentar abertamente qualquer Estado, Alexander admite indiretamente que os norte-americanos também têm seus calcanhares de Aquiles:- não suportam um grande número de vítimas; não tem como suprimir a determinação de inimigos mais fracos e; mesmo tendo satélites e mísseis inteligentes precisam localizar os inimigos para usar seu poder de fogo. A redução da pegada militar dos EUA e a conseqüente intensificação da controversa utilização de Drones no Paquistão e no Iêmem sugerem que alguns conselhos de Bevin Alexander foram levados em conta pela administração Barack Obama.
Não abordaremos aqui de maneira detalhada toda a segunda parte do livro. As operações militares realizadas na Guerra dos Bôeres, Rebelião Árabe, Revolução Comunista na China, Guerra da Coréia e Guerra do Vietnam já foram criteriosamente resumidas na obra. Recomendamos aos interessados a leitura do livro.
No último capítulo da obra o historiador traça as linhas mestras para uma política externa norte-americana sob a ótica da utilização do seu poderio militar. Ele sugere que os EUA devem intervir “... apenas para proteger os interesses estratégicos da nação.” Segundo ele é essencial que os EUA exerçam um papel de liderança porque a OTAN e as Nações Unidas e os demais Estados estariam “... despreparadas para examinar os conflitos internacionais desapaixonadamente ...”. Assegura que se tornando um mediador imparcial “... os Estados Unidos podem reduzir muito o barbarismo no mundo.”
A contradição presente na doutrina política de Bevin Alexander é evidente. Afinal, os EUA não podem se tornar um mediador imparcial sem abrir mão de intervir sempre que seus interesses estejam ameaçados. O papel de árbitro é, por razões óbvias, incompatível com o de parte interessada. Além disto, a exemplo de outros povos, os norte-americanos também estão sujeitos a agir de maneira passional quando se considerarem prejudicados (foi o que ocorreu quando aquele país invadiu o Iraque justificando previamente sua ação com base em mentiras deslavadas). De fato, do jeito que as coisas estão qualquer nação que tentar frear os ímpetos hegemônicos da superpotência imperial corre o risco de ser julgada agressora mesmo que tenha sido previamente agredida.
Alexander aconselha as lideranças norte-americanas à não realizarem ocupações duradouras porque “... as lideranças do país teriam meios de explorar o antagonismo inerente ao povo contra um invasor e organizar uma guerrilha.” Coerente com sua tese da impossibilidade dos EUA construir nações Alexander enfatiza que as “... condições que produziram uma estrutura não democrática reaparecerão, a menos que as formas norte-americanas permaneçam como um exército de ocupação.” Caso em que a vietnamização do conflito é inevitável. De fato foi o que ocorreu no Afeganistão e no Iraque.
Não é exagero concluir que os principais elementos da doutrina Bush Jr. podem ter sido retirados de A GUERRA DO FUTURO. Seu autor defendeu a preservação da supremacia bélica norte-americana e o suposto direito que os EUA tem de exercer um papel de liderança mundial, intervindo preventiva e unilateralmente sempre que sua segurança e interesses sejam ameaçados. Os aspectos moderados da obra certamente fornecerem paradigmas para a doutrina Obama de redução da pegada militar.
A sociedade norte-americana é suficientemente heterogênea e complexa. Foi capaz de apoiar a doutrina Bush Jr. e de repudiá-la algum tempo depois. Tem apoiado a doutrina Obama sem deixar de questioná-la diariamente. Mas há duas coisas que seguem sendo incontroversas nos EUA: a crença no destino manifesto e; o mito da legítima e generosa hegemonia norte-americana. Os principais ingredientes das guerras norte-americanas certamente provocarão novos conflitos.
A História demonstra, por outro lado, que o militarismo é um caminho sem volta. Quando um Estado escolhe militarizar-se será obrigado pelo seu povo ou por seus inimigos a se tornar cada vez mais agressivo. Às nações pacíficas e que não se consideram inimigas dos outros povos (como o Brasil) só resta agir com independência, moderação e neutralidade diante dos EUA. Mesmo assim elas também serão obrigadas a continuar a defender de seus próprios interesses comerciais diplomática e militarmente se necessário for. O desenvolvimento de uma doutrina militar defensiva requer, de qualquer maneira, o conhecimento da realidade.
O estudo desta obra e de outras similares é vital para que possamos enfrentar os dilemas de um mundo globalizado espionado massivamente pelos EUA. O cidadão brasileiro deve considerar real a necessidade de o Palácio do Planalto usar mais energia para preservar os interesses nacionais. Um eventual confronto político ou comercial com a superpotência não deve ser descartado. E o governo brasileiro somente terá êxito se a população estiver preparada e disposta a encarar os riscos da nova ordem mundial.
O Brasil não precisa de uma Marinha de Guerra tão poderosa quanto a norte-americana. Mas tem que ter condições de defender seu mar territorial e suas plataformas de prospecção de petróleo na área do Pré-Sal.
Nossa Força Aérea não necessita se igualar à dos EUA. Mas o país deve se capacitar para produzir aviões cada vez mais modernos e eficazes, mediante o incentivo ao desenvolvimento tecnológico e ao seu programa aeroespacial. A construção de mísseis inteligentes e a aquisição de sistemas de defesa aérea ajudarão a preservar o respeito à nossa soberania.
Agora que chegamos ao final o leitor deve estar se perguntando por que indicamos a leitura de A GUERRA DO FUTURO e nos esforçamos para provocar o debate sobre a doutrina militar brasileira. A resposta é simples. Até ser atacado pelo Paraguai nosso país estava em paz havia muito tempo. Desarmada e despreparada, a nação demorou a reagir e quando isto ocorreu cometeu diversos equívocos.
O Brasil não é agredido em seu território desde o século XIX. Mas a história prova que a paz não dura para sempre. E caso qualquer país resolva adotar uma atitude mais belicosa em relação ao nosso país seremos obrigados a nos defender. Para que isto ocorra temos que conhecer a cultura militar da potência hegemônica e, principalmente, começar a discutir nossa própria cultura bélica. O Brasil deve estruturar as Forças Armadas segundo seus próprios interesses. Os cidadãos brasileiros custeiam a defesa do país tem o direito/ dever de discutir estes temas neste momento em que o governo contingencia gastos militares.