7 – ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL
No que se refere ao posicionamento dos tribunais pátrios, salientamos que, enquanto na esfera da justiça comum não há ainda consenso quanto à aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos administrativos, nossas Cortes de Contas têm entendimento unânime no sentido de sua possibilidade.
7.1 – Justiça Comum
Os tribunais de justiça brasileiros ainda divergem a respeito do tema.
No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, encontramos, em sentido contrário à aplicabilidade, a Apelação Cível nº 0007986-30.2008.8.26.0097, rel. Nogueira Diefenthäler, in verbis:
“APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO ADMINISTRATIVO.
1. Inexistência de relação consumerista, dada a observância de regras específicas para contratos administrativos. Pacto que se pauta pelas regras de direito público.
2. Inadimplemento contratual pelo particular que justifica a rescisão, com respaldo no artigo 78 da Lei 8.666/93. Sentença mantida. Recurso desprovido”. (TJSP, Apelação Cível nº 0007986-30.2008.8.26.0097, Quinta Câmara de Direito Público, rel. Nogueira Diefenthäler, j.22/03/2012, p.05/04/2012).
No Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina temos decisão contrária à aplicação do CDC aos contratos administrativos, nos seguintes termos:
“Os contratos administrativos firmados através do competente processo licitatório, guardam características próprias do direito público, limitados pelos princípios basilares da Administração Pública (art. 37 da CRFB), sendo-lhes inaplicável a disciplina do Código de Defesa do Consumidor. Consoante explicita a doutrina hodierna, as cláusulas exorbitantes são aquelas que excedem o Direito Comum, consignando vantagens ou restrições em favor da Administração Pública ou ao contratado, sendo inadmissíveis num contrato privado; todavia, são absolutamente válidas no contrato administrativo, desde que em consonância com a lei e com os princípios que regem a atividade administrativa. Isso porque visam estabelecer prerrogativas em favor de uma das partes para o perfeito atendimento do interesse público, que se sobrepõem aos interesses particulares”. (TJSC, Terceira Câmara de Direito Público, Apelação Cível no 24685-6, rel. Sônia Maria Schmitz, j.19/09/2003).
Posicionamento semelhante temos no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, na Apelação Cível nº 2007.001.54374.
Relevante mencionarmos que o Superior Tribunal de Justiça, ao se manifestar acerca do tema, entendeu, inicialmente, não ser possível aplicar os preceitos do CDC, como se denota da seguinte decisão:
“ADMINISTRATIVO. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS - ECT. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. NATUREZA ADMINISTRATIVA.
1. Contrato de prestação de serviços firmado, após procedimento licitatório, entre a ECT e as recorrentes para a construção de duas agências dos Correios. Paralisação das obras. Alegação de desequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Natureza da relação jurídica contratual entre a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos e as Construtoras prestadoras de serviços.
2. Pleito recursal visando a aplicação das normas de Direito Privado relativas ao Direito do Consumidor com o objetivo de evitar prática contratual considerada abusiva
3. A ECT é empresa pública que, embora não exerça atividade econômica, presta serviço público da competência da União Federal, sendo por estamantida.
4. O delineamento básico da Administração Pública brasileira, seja direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, restou estabelecido no art. 37 da Constituição Federal, que no seu inciso XXI, fixou a licitação como princípio básico a ser observado por toda a Administração Pública.
5. A Lei de Licitações e Contratos estabelece que o contraente poderá servir-se das cláusulas exorbitantes do direito privado para melhor resguardar o interesse público. É de sabença que as cláusulas exorbitantes são as que inexistem no Direito Privado e permitem ao Poder Público alterar as condições de execução do contrato, independentemente da anuência do contratado.
6. À luz do art. 37, XXI, da Constituição Federal, a natureza do vínculo jurídico entre a ECT e as empresas recorrentes, é de Direito Administrativo, sendo certo que a questão sub judice não envolve Direito Privado, tampouco de relação de consumo. Aliás, apenas os consumidores, usuários do serviço dos correios é que têm relação jurídica de consumo com a ECT.
7. Consoante o acórdão a quo, a empresa contratada não logrou demonstrar qualquer ilegalidade cometida pela ECT em face da legislação que rege os contratos públicos quando da licitação, ou o efetivo desequilíbrio econômico na execução da obra, matéria esta que não pode ser revista nesta instância extraordinária, ante o óbice da súmula 07. Sob essa ótica, resvala a tese sustentada pelas empresas recorrentes no sentido de que o acórdão recorrido malferiu os artigos 6º, 29 e 51 do Código de Defesa do Consumidor, mercê de burlar as regras de revisão contratual destinadas ao equilíbrio financeiro do ajuste firmado entre as partes.
8. Recurso Especial desprovido”. (STJ, Primeira Turma, Recurso Especial nº 527.137 – PR, rel. Min. Luiz Fux, j.11/05/2004, p.31/05/2004).
Entretanto, em decisão mais recente, passou a seguir o entendimento propalado pela teoria finalista mitigada, e decidiu que, ainda que de maneira geral não se aplique o CDC aos contratos administrativos, pode haver situações, analisadas caso a caso, em que se comprove a vulnerabilidade da Administração Publica, sendo permitida a incidência das normas consumeristas em favor do ente público. Assim se manifestou a Min. Eliana Calmon em seu voto:
“ADMINISTRATIVO - RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA - CONTRATO ADMINISTRATIVO - PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE PUBLICIDADE - INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO – INCOMPETÊNCIA DO PROCON - NULIDADE DA MULTA APLICADA.
1. Em se tratando de contrato administrativo, em que a Administração é quem detém posição de supremacia justificada pelo interesse público, não incidem as normas contidas no CDC, especialmente quando se trata da aplicação de penalidades.
2. Somente se admite a incidência do CDC nos contratos administrativos em situações excepcionais, em que a Administração assume posição de vulnerabilidade técnica, científica, fática ou econômica perante o fornecedor, o que não ocorre na espécie, por se tratar de simples contrato de prestação de serviço de publicidade.
3. Incompetência do PROCON para atuar em relação que não seja de consumo.
4. Recurso ordinário em mandado de segurança provido”. (STJ, Segunda Turma, Recurso em Mandado de Segurança nº 31.073 – TO, rel. Min. Eliana Calmon, j.26/08/2010, p.08/09/2010). (grifos nossos).
Por outro lado, também no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na Apelação Cível nº 0030881-25.2005.8.26.0053, o rel. Luiz Sérgio Fernandes de Souza decidiu que:
“AÇÃO ORDINÁRIA Furto de equipamento médico em repartição pública – Empresa contratada para serviço de vigilância patrimonial Previsão contratual de responsabilidade civil em caso de danos causados em função da execução dos serviços Dever de ressarcir prejuízo decorrente de furto, independentemente das circunstâncias, por expressa previsão contratual Aplicação, ademais, da regra do artigo 14, § 1º, do CDC Recurso provido Sentença reformada”. (TJSP, Apelação Cível nº 0030881-25.2005.8.26.0053, Sétima Câmara de Direito Público, rel. Luiz Sérgio Fernandes de Souza, j.27/02/2012, p.01/03/2012).
O Tribunal de Justiça do Estado do Pará prolatou decisão na mesma linha, como se denota do seguinte trecho:
“Tenho que, a partir da combinação do artigo 2º com o inciso I do artigo 4º, ambos da Lei nº 8.078/1990, mitigou-se a aplicação da teoria finalista, chega-se, em situações excepcionais, a um novo conceito de consumidor, pautado na apreciação da vulnerabilidade, de modo que até mesmo uma pessoa jurídica possa ser classificada como consumidora, com a aplicação do art. 29 do CDC. Pode-se concluir que é razoável a interpretação de que são aplicáveis as disposições do CDC aos contratos administrativos, em caráter subsidiário, desde que atendida a seguinte condição: o órgão ou entidade pública estiver em posição de vulnerabilidade técnica, científica, fática ou econômica perante o fornecedor, visto que a superioridade jurídica do ente público é presumida nos contratos administrativos”. (TJPA, Terceira Câmara Cível, Apelação Cível e Reexame de Sentença nº 20073009633-3, rel. Des. Maria Rita Lima Xavier, j.03/09/2010, p.13/09/2010).
Dessa feita, percebe-se que o tema ainda não é unânime nos tribunais de justiça brasileiros.
7.2 – Tribunais de Contas
No que se refere às decisões dos tribunais de contas pátrios não há discussão, sendo plenamente aceita a aplicação do CDC aos contratos administrativos em que a Administração Pública figure como consumidora.
Nesse sentido, podemos citar o Processo nº TC/58728/2011 do Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso do Sul, o Processo nº 1973/2004 do Tribunal de Contas do Distrito Federal e Territórios, o Processo nº 004142-02.00/00-0 do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul e os Acórdãos nº 696/2010, nº 892/2010, nº 1879/2011, nº 2179/2011 e nº 3343/2012 do Tribunal de Contas da União.
Por todos, cite-se a decisão paradigma acerca do assunto, nos termos do Acórdão nº 1729/2008 do Plenário do TCU, em que a Corte de Contas se manifesta no sentido de que não seria necessária a exigência editalícia de apresentação por parte dos licitantes de carta de solidariedade, posto que esta já vinha prevista no Código de Defesa do Consumidor, e, portanto, plenamente exigível, sem a necessidade de previsão em edital.
8 - CONCLUSÃO
Os contratos consumeristas têm como característica a proteção da parte considerada vulnerável na relação contratual. Esta proteção, por sua vez, deve ser concedida a todos que dela participem, devendo, entretanto, ser auferida no caso concreto a existência de vulnerabilidade. Essa conceituação demonstra, de maneira clara, que a proteção consumerista não exclui, de maneira automática, as pessoas jurídicas.
A existência de cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos, a despeito de fornecer mais segurança nas tratativas consumeristas, não fornece uma proteção completa à Administração Pública, que, nos termos do art. 54 da Lei Federal nº 8666/93 pode se utilizar supletivamente das normas de direito privado.
Assim, consideramos possível que em determinadas situações o ente público possa ser considerado parte vulnerável nos contratos de consumo, fazendo jus à proteção do Código de Defesa do Consumidor.
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Nota
[1] A Lei nº 8002/90 foi revogada pela Lei nº 8884/94.