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Protestos no Brasil: o direito também brota das ruas

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Agenda 07/01/2014 às 13:18

Fontes materiais do Direito em xeque. Reflexões sobre o caso emergente em 2013: balanço dos movimentos populares de rua e dos direitos afirmados à margem do sistema representativo e institucional.

Resumo

A proposta deste texto é responder à indagação do porquê as providências institucionais falharam em impedir a decadência das ações do Estado para manter uma ordem jurídica, assim aceita majoritariamente, como sendo aquela que reconhece e responde de modo efetivo ao exercício regular dos direitos de cidadania.

Acaso as principais funções, de governar, legislar e julgar, foram bloqueadas pela própria inoperância das instituições?

O painel traçado a seguir também procura responder por que as manifestações públicas que atravessaram o país tomaram a feição de uma democracia direta revoltada, diante da democracia formal representativa, quando esta passou a ser produtora de um pastiche de leis, de julgamentos e de atos administrativos que visam a interesses particulares e corporativos, seguidamente escusos, atentando contra o interesse público.

O outro propósito do texto é o de que a resposta esteja compreendida dentre os instrumentos de análise de que dispõe o Direito para se mostrar operativo, enfrentando assim as contingências históricas momentâneas exatamente para resguardar a permanência que é própria do conhecimento jurídico.


ABORDAGEM

Partamos do que é de nossa específica competência científica, como propôs o professor Goffredo da Silva Telles Jr. no notável texto que redigiu em 1977 e leu nas arcadas da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Trata-se do escrito mais emblemático produzido no período do estado de exceção vivido no Brasil entre 1964 e 1985, com o título singelo de Carta aos Brasileiros (Fonte: www.goffredotellesjr.adv.br), que pode servir de paradigma como um pronunciamento crítico das legítimas elites intelectuais do país, as quais não querem e não devem ser confundidas com o elitismo discriminatório ou com políticas elitistas, que tanta revolta causam em uma república que - antes de tudo - deveria ser a “république des égaux” (república dos iguais) preconizada por Gracchus Babeuf.

Ocorre que é necessária uma reflexão mais profunda sobre as manifestações de rua que incendiaram, metafórica e literalmente, muitas cidades do Brasil desde o início de junho de 2013 (em Porto Alegre, onde tudo começou, a partir do mês de março), captando a atenção do mundo e daquela que deveria formar a intelligentsia nacional? e esteve acuada na sua perplexidade?, seja ela formada pelos representantes políticos, seja pelos analistas sempre prontos a reivindicar um saber especializado a mais das vezes em “especialidades” inexistentes, seja, por fim, pela imprensa, ainda que esta se mostre mais apta para reagir em seguida à precipitação incontrolável dos fatos, praticando o jornalismo investigativo.

É motivo justificado para incredulidade inicial imaginar que uma reivindicação de estudantes, escudados embora na militância de partidos políticos menores e em grupos de ação política não orgânica que acreditam na desobediência civil (seria ingenuidade ignorar esse dado importante), dirigida inicialmente contra o aumento do custo no transporte urbano, tenha destampado a caixa de Pandora e exposto todos os vícios da República. Como e por que um protesto inicial contra o valor elevado das passagens dos ônibus urbanos ganhou corações e mentes? Como e por que agora um movimento de massa importante pôde ser organizado com base no atomismo, sem lideranças carismáticas e sem a intermediação das elites?  Como e por que os males dos governos e das instituições receberam a maldição daquela desobediente Pandora que, ousando em sua curiosidade sobre os segredos do mundo dos deuses, descumpriu a recomendação recebida e, segundo conta Hesíodo, abriu o jarro que os continha? A resposta, tal como na mitologia, está na constatação primeira do surgimento de uma recusa. No caso localizado dos transportes urbanos, recusa de que a conta fosse repassada à população por uma lógica de transferência, decorrente do funcionamento do Estado clientelista, corporativo, muito seguidamente corrupto e leniente com crimes e mau atendimento nos serviços públicos. E, sobretudo, pouco reformador, apesar da retórica insistente propagando o contrário. A recusa teve, portanto, tal como a atitude de Pandora em ceder à curiosidade de conhecer o segredo dos deuses, o efeito de desencadear o questionamento radical centrado nesta indagação: o Estado tem necessariamente de funcionar assim? A negativa obstinada em mais uma vez “pagar a conta”, embora se trate de um valor pequeno dentre tantos preços públicos, e o desejo intenso de substituir-se à recomendação dos que têm o poder (simbolicamente, os deuses), para que tudo continue como está, indicam que não. Daí ter surgido nas manifestações uma longa e criativa série de cartazes “não é pelos 20 centavos, mas por...”

De todo modo, a lição que vem com simplicidade dos séculos, propagada desde Confúcio, é esta: “a experiência é como uma lanterna dependurada nas costas que apenas ilumina o caminho já percorrido”. Ou seja: ilumina para trás. Há presentemente tantas coisas novas como aquelas que, na segunda revolução industrial, motivaram o pronunciamento do Papa Leão XIII na sua encíclica “Rerum Novarum”. Há tecnologias novas, vontades novas, recusas novas, condições sociais novas, novas descrições do que seja digno e indigno à luz de um conhecimento imediato e universalizado dos fatos, e essas realidades não podem ser iluminadas pela luz da experiência. Eis a primeira razão para a perplexidade. A segunda diz respeito à linguagem. As reivindicações não podem ser desprezadas porque resultam de vozes a esmo, ou porque não foram “pautadas” por algum editor, como os jornalistas gostariam que acontecesse, por cacoete da sua profissão. Não há uma clara relação de causa e efeito, nem todas as consequências dos pleitos foram dimensionadas em sua repercussão econômica. Também não parece inteligível porque nos centros históricos das cidades prédios tombados viraram alvos inertes da fúria predatória, nem que veículos destinados ao transporte público – tal qual acontece em ações episódicas do crime organizado – tenham sido queimados.

É bem de ver, inicialmente, que a linguagem tem um substrato simbólico. Seria preciso que todas essas coisas fossem traduzidas em palavras precisas, e gerassem consequência, para que não viessem a ser “ditas” com paus, pedras, fogo e ferro. Acontece que já foram ditas com palavras até a exaustão e não produziram resultado convincente. Ao contrário, os processos de controle institucional das atividades de governo, de legislação e de jurisdição foram e continuam sendo sistematicamente fraudados, de sorte que há uma grande impostura, uma imensa contrafação nas ações do Estado, que sucumbe à função principal de instituir e defender o bem comum, sem realizá-la.

Ora, a linguagem que se estabeleceu para contestar a grande pantomima dos ritos custosos, numa república formal cujo deficit de cidadania é abismal, não poderia ser aquela dos requerimentos, das petições públicas, da intermediação dos representantes políticos, da espera por julgamentos reparadores, sendo que estes últimos geralmente são insuficientes em repor os bens sociais dilapidados, quando não vêm tarde demais. A linguagem a ser considerada, sendo a única capaz de levar a um entendimento das razões da mobilização, é aquela que decorre do funcionamento modular da mente, e se capacita pela função neuronal diante de questões tópicas. Não se há de esperar que pessoas se mobilizem com um elevado grau de motivação exclusivamente por aspectos racionais, tanto mais em assuntos complexos, que só podem ser dominados por aqueles que tenham conhecimentos profissionais avançados, ou se mostrem acessíveis através de demorados estudos. O que se viu foi a falência do discurso cedendo à ação, e não se podia esperar que a ação tivesse a natureza de um discurso.

A linguagem praticada é aquela da inteligência emocional, obviamente sem o engodo em que implica o uso místico ou capcioso dessa expressão, como é tão comum na prática da autoajuda impostora. O que interessa aqui é a valoração científica dessa expressão da inteligência humana, que não decorre dos métodos lógicos e dedutivos conhecidos no processo civilizatório. O que está em jogo são razões que não podem ser tidas como estritamente razoáveis, nem atitudes que se contenham inteiramente em explicações demonstrativas de uma causa determinada. Por igual, não se pode esperar que os efeitos sejam correspondentes simetricamente ao motivo que ensejou a ação. A lógica argumentativa já cedeu seu lugar para o ímpeto emotivo, pois há um novo ponto de partida: não é mais possível o diálogo e, ainda assim, existe a sensação difusa de que é impossível calar.

Se tudo isso for considerado com seriedade, é possível entender porque há uma aparente quebra da ordem institucional exatamente em nome de restaurá-la. Em primeiro lugar, é acessível a compreensão do que seja uma grande recusa, ainda que ela não se explique em termos estritos de lógica. A recusa abrange a própria lógica, uma vez que o resultado inexorável desta passou a não ser mais aceito. A constatação básica, portanto, tomada como o já mencionado novo ponto de partida é: o sistema não tem nenhuma lógica aceitável. Em segundo lugar, a mobilização envolve um impulso em torno de uma solidariedade que não está destinada a ninguém, mas a todos. É preciso entender o uso dessa inteligência que se manifesta de acordo com grandes impulsos, inspirações profundas, inclusive nos autores iconoclastas que a humanidade afinal reverenciou. Recusa e desejo, portanto, são as palavras que têm de ser entendidas agora, diante do dinamismo dos fatos históricos, para além do seu sentido literal e óbvio.

As manifestações acabaram formando uma procissão improvável, mas presente, que reúne os espectros de Nietzsche, Tolstoi, Orwell, Maquiavel, Bakunin e Jean Genet, dando eco aos seus clamores ainda que eles sejam mal percebidos, de forma indistinta, como se retumbassem numa imaginária unidade. Os manifestantes podem não ter a ciência das questões pormenorizadas aqui expostas, mas também não estão em busca do conhecimento de sala de aula. É verdade que esse conhecimento liberta, mas trata-se agora de engajar o resultado do que se tornou conhecido e assumir a condição de libertado. Nesse ponto, não é a apatheia dos estoicos que poderia motivar alguma ação. Se há uma consciência presente de que existe um alijamento do interesse popular nas ações do governo representativo, a apatheia perderia o sentido superior característico do estoicismo, de aceitar serenamente a condição humana, e ganharia a acepção de apatia, palavra dela derivada. Portanto, o mais próprio seria esperar que a potência (recusa + desejo) se transformasse em ato e que uma natureza mais autêntica se revelasse, de modo que houvesse de fato uma realização. É esse o entendimento que a palavra enteléquia, proposta por Aristóteles, proporciona. Esta é - bem sumária - a lição dos gregos.       

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Com isso fica mais fácil fazer uma aproximação histórica das manifestações deste 2013 com os episódios de maio de 1968, tanto na França como na Califórnia. Dentre as originais divisas daquele movimento, ainda ecoa “não sabemos o que queremos, mas sabemos o que não queremos”, mas – como tudo na vida – com uma atualização não menos lírica, mas necessária e realista: “não sabemos o que queremos em nosso próprio interesse, mas sabemos o que não queremos, no interesse de todos”.           

Não fazer nada, uma vez assumida a consciência de todo esse processo de entendimento, o qual não se compreende unicamente na inteligência que opera com a lógica linear, significaria exigir uma situação de acomodado sofrimento, verdadeiro masoquismo apático, que não é minimamente decente esperar dos outros ou de coletividades inteiras. Como todas as coisas da vida, a espera também deve ter um fim.                 


OUTRA FORMA DE PODER

Foi salientada no início deste texto a recomendação da Carta aos Brasileiros: “fiquemos no que é da nossa competência”. É importante, nesse propósito, retomar as lições dos clássicos. A divisão metodológica do Direito entre objetivo e subjetivo é largamente conhecida. Enquanto o direito objetivo é aquele que decorre da ordem jurídica estabelecida, da legislação, com suas práticas de aplicação, mediante o funcionamento dos órgãos que têm a incumbência de velar para que ela não seja violada, o direito subjetivo, menos percebido fora do meio jurídico, ainda pode ser apresentado pela conceituação do jurista francês da área de direito público Léon Duguit: “é um poder do indivíduo que vive em sociedade. É um poder para o indivíduo obter o reconhecimento social do objeto que pretende, quando o motivo que determinar o seu ato de vontade é um fim considerado legítimo pelo direito objetivo.” O grande mestre ainda completa: “parte-se assim do direito subjetivo para nos elevarmos ao direito objetivo: fundamenta-se o direito objetivo no direito subjetivo”.

O que aconteceu no Brasil – e terá ainda desdobramentos - tem a ver com uma percepção aguda do obscurecimento insustentável do direito subjetivo como poder e como ato de vontade, embora formalmente – vale dizer, de modo não operativo na prática – ele esteja inscrito na Constituição e nas leis como legítimo. No caso que interessa, há um alijamento e uma sufocação visíveis dos direitos subjetivos públicos, embora vivamos em uma era de francas reivindicações das prerrogativas de cidadania.

O que temos são atores sociais que não atuam, pois a intermediação decisória, isto é, aquela que forma as instâncias várias do poder, exerce uma força de inércia que paralisa todas as reivindicações que se mostram marginais aos interesses genéricos estabelecidos pelos agentes do mesmo poder. Assim, se existe a escolha de realizar determinada política pública, seja ela a de transpor ou alterar o curso de um rio, ou patrocinar o futebol na copa do mundo, ou de criar ministérios desnecessários, todas as objeções são sufocadas e não suscitam nunca uma avaliação qualitativa que, quando menos, permitisse o exame crítico das consequências das ações de governo.

O silêncio das bocas de quem pode exercer o direito do voto – sob as manipulações admitidas por uma legislação cheia de falhas e, mais ainda, de campanhas eleitorais maçantes e viciadas no jogo de intrigas, sob patrocínios caros – resulta numa exata privação do direito de voz. Não foi um acaso que o presidente do STF, chamado ao Palácio do Planalto para fazer suas conjecturas sobre a crise, tocou num ponto que parece esquecido e, no entanto, é espantoso em suas implicações: como podem os tribunais eleitorais ser compostos por juristas que são advogados em atividade e, em consequência, patrocinadores legítimos de interesses de políticos e outros envolvidos nos processos eleitorais? As manifestações populares em curso trouxeram, nos seus cartazes variadíssimos e criativos, observações claras sobre a percepção popular de alguns problemas. A respeito da PEC 37, por exemplo, houve um que fez a síntese de toda a discussão que as corporações mantiveram e o Congresso alimentou difusamente, num impasse artificial, antes de decidir por grande maioria arquivar o projeto. Dizia o cartaz: “Os políticos comandam a polícia. Quem vai investigar os políticos?”.

Ora, para responder a essas duas perguntas simples, à maneira socrática, caberia fazer outras: não devem os juízes eleitorais ser exatamente juízes, isto é, estarem proibidos de advogar interesses? A polícia, por outro lado, não pode apresentar deficiências no seu trabalho investigativo, de modo que convenha seja ele completado por outros órgãos que disponham de meios, seus próprios, para apreciar os mesmos fatos sob uma óptica diferente, que não foi suficientemente explorada? Estas questões deixam clara uma situação de anomia em que as normas decorrentes das leis, da ação administrativa do Estado e dos pronunciamentos judiciais deixam de ser aplicadas, exatamente em virtude de uma situação de desorganização que desgarante, na prática, o reconhecimento dos bens jurídicos que deveriam ser protegidos. É a constatação da “lei ausente”. A lei que foi concebida, mas não opera.

As mobilizações, que iniciaram como protesto fundado na recusa de um aumento, e ganharam o corpo de uma rebelião social, têm subjacente uma compreensão percebida e sentida como efeito de um erro insuportável em um sistema de representação: a anomia impede a satisfação dos direitos subjetivos. O “uomo della strada” (homem da rua) mencionado pelo grande Carnelutti não saberia dizer isso, mas ele pode senti-lo. E agir.                 


O EXEMPLO DA LEI DA FICHA LIMPA

A sabotagem de uma iniciativa popular - O histórico da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010) não precisa ser recontado pois se refere a fatos recentes e está narrado em muitos registros na internet.  Basta lembrar que iniciou com uma petição de 1 milhão e 300 mil eleitores, dando origem  ao Projeto de Lei Popular 519/2009. Esse ensaio exitoso de democracia direta combinado com democracia representativa logo suscitou impasse nos tribunais. Teve sua aplicação protelada. Levado o caso ao Supremo (que na época contava com dez ministros), deu-se o empate. Finalmente, nomeado o 11º, o desempate foi no sentido de postergar a vigência até as eleições seguintes. Mal a lei tornou-se de eficácia plena, já surgiram iniciativas legislativas para restringir essa iniciativa que – na linguagem imprópria mas divulgada “ad nauseam” – é “moralizadora”. Melhor seria dizer: restauradora da legitimidade da representação.

A mudança da Lei da Ficha Limpa marcará o êxito de uma armadilha, um engodo ao esforço de pessoas e instituições que mobilizaram a população para que, ao menos, os políticos condenados em segundo grau perdessem a condição de elegíveis. Esse revés nas aspirações populares, que leva as massas à frustração, pois nada de reformador pode ser feito com resultado permanente, é sem dúvida um motivo de revolta. E quando esta brota contra um todo indistinto, tudo o que está errado, vem à lembrança uma velha canção já incrustada no imaginário popular: O que será, que será/ O que não tem certeza/ Nem nunca terá/ O que não tem conserto/Nem nunca terá ...” O projeto para afrouxar as regras da Lei da Ficha Limpa, no sentido de autorizar as candidaturas de políticos condenados, é a definitiva frustração no uso dos métodos de reforma legislativa e da crença neles (Fonte: Blog  josiasdesouza.blogosfera.com.br, de 29/05/3013;www.jusbrasil.com.br/ Projeto de lei altera ficha limpa; www. oabmg.org.br, Notícias de 05/06/2013).                                                                                                                


PARLAMENTO FALIDO (OU COMO FALSIFICAR VONTADES)

A intermediação política é necessária pelo menos depois que os gregos, tendo inventando a democracia com os traços fundamentais que hoje conhecemos, foram absorvidos pelo império alexandrino. Não foi mais possível reunir-se na ágora, a praça dos encontros dos cidadãos, na cidade-estado. Portanto, mesmo nas situações de profunda ruptura, como na comuna de Paris em 1871 ou na revolução soviética de 1917, não foi postulado o retorno da democracia direta, nos moldes da Grécia clássica. Ao invés, os parâmetros de representação buscados então, e a partir daí de modo crescente também em todas as formas de governo representativo liberal ou conservador, foram os de uma legitimidade crescente nos processos de escolha dos representantes, seja ampliando o alcance do voto (com o aumento do universo de eleitores e guardando a exatidão do sufrágio) ou compromissando os políticos com os postulados partidários, tanto os ideológicos e classistas como os relativos aos direitos civis. Este é o resumo do que passa como sendo a evolução havida no sistema da democracia representativa e é do conhecimento comum. Em dissonância com isso, os aspectos seguintes mostram a situação concreta da representação política e da atividade legislativa em nosso país:

1.         O saque na boca do caixa em nome da democracia representativa - Observada em junho de 2013, época das grandes manifestações de rua no Brasil, a situação do nosso parlamento é desapontadora. O Senado é a casa legislativa mais cara do mundo. Para os 81 senadores, emprega mais de 5 mil e 200 funcionários, efetivos ou comissionados, além de remunerar  mais de 2 mil e 400 aposentados e pensionistas, sem contar os serviços terceirizados. O custo de cada senador (relação da despesa orçamentária anual dividida pelo número de representantes) é de 33 milhões e 100 mil reais por ano. Portanto, o preço pago pelo brasileiro para ter um só senador por ano, ou muito poucos deles, poderia ressarcir e reparar os estragos que todos os atos de vandalismo, praticados na esteira das manifestações, causaram em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Vitória ou Porto Alegre (Fonte:  www.transparencia.org.br/docs/parlamentar.pdf).

Ainda que seja assim, o Senado está realizando presentemente concurso público para preencher 242 vagas de funcionários, com salários que variam de R$ 18.440,00 a R$ 23.826,00, para nível superior, e de R$ 13.833,00, para nível médio. Ou seja, funcionários iniciarão suas carreiras já percebendo perto do teto da remuneração do serviço público federal, que é o valor dos subsídios de um ministro do Supremo Tribunal Federal, sendo que ainda no curso de seu tempo de serviço acumularão vantagens, incorporações, adicionais, auxílios, retribuições e indenizações variadas. Como será possível fazer a contenção de seus ganhos dentro do limite fixado pelo teto? Além disso, os servidores de nível médio começarão recebendo vencimentos próximos aos de um delegado da Polícia Federal (R$ 14.037,00) e superiores aos de um cientista das fundações de pesquisa ou de um professor de universidade federal, ou de um médico responsável pelo controle de epidemias ou ainda de um engenheiro que fiscaliza a construção de obras públicas (Fonte: www.concursosenado.org). A comparação é impactante. Na ordem das prioridades para o país, a importância social e política de qualquer dos casos exemplificados é imensamente maior do que a de um servidor público de nível médio do Senado, considerando que o mesmo nunca terá (ou não deveria ter) competência decisória nenhuma. Além disso, suas exigências no trabalho serão muito menores, limitadas a funções burocráticas. Pois a lógica que impera é esta, a da inversão na importância funcional. Porém, cada vez mais, ela se mostra absurda. Como já existe uma consciência pública a respeito dessa distorção, outra face é agora exposta: ela também é inaceitável.

2.         Uma Constituição móvel para garantir interesses de grupo - A Constituição brasileira conta com aproximadamente 250 artigos (são aproximados porque foi introduzida a classificação alfanumérica e existem, por exemplo, os artigos 103, 103-A e 103-B). Além deles há 97 artigos nas disposições finais e transitórias. Já foram produzidas 74 emendas constitucionais e muitas delas são volumosas, não só transformando os artigos originais mas acrescentando muitos outros, que ficam paralelos, a latere do texto primitivo feito pelos constituintes. Ainda existem 6 emendas de revisão. Tudo isso foi produzido em menos de vinte e cinco anos, desde a promulgação da Carta em outubro de1988. Por fim, há emendas das emendas.

Cada país tem sua história e os sistemas constitucionais variam, mas – feitas essas ressalvas – são úteis as comparações. A Constituição americana data de 1787 e contém 7 artigos originais, é bem verdade que divididos em várias seções. Suas emendas, em mais de duzentos anos, somam apenas 27, sendo que as dez primeiras foram realizadas nos cinco anos iniciais de vigência, para integrar os termos da Bill of Rights de Virgínia, o texto da declaração de direitos redigido por Thomas Jefferson em 1776, ano da independência. A Constituição francesa da Quinta República data de 1958 e é também estável. Em cinco décadas teve 36 emendas. A Lei Fundamental da Alemanha previa a elaboração de uma Carta Magna quando o país voltasse a ser unificado. Transcorridos mais de vinte anos da unificação, continua a vigorar como sendo o texto constitucional, possivelmente em virtude da grande estabilidade jurídica que alcançou com sua interpretação sistemática pela Suprema Corte.

O que almeja nosso Congresso Nacional instituindo no Brasil uma Constituição móvel? Por outro lado, como esperar uma estabilidade jurídica no país se as regras básicas de funcionamento do Estado e da sociedade são mudadas intensa e seguidamente? Há de fato uma obsessão por reescrever o texto legal básico do país, como se sua suposta atualização apaziguasse tendências inovadores e, com essa ilusão, muitíssimas vezes se retrocede em relação ao que já havia sido disposto pelo constituinte originário. A irresponsabilidade do Parlamento para com a permanência razoável dos dispositivos constitucionais – pois eles afinal resultam de um grande pacto político que estabeleceu as bases do querer e do não querer coletivos mostra que saímos de um regime de exceção, que “movia” a Constituição para satisfazer interesses ditatoriais, ou para suprir sua incompetência de representação, para um “estado de dispersão”, supostamente democrático por abrigar múltiplas tendências, mas carente de um compromisso afirmativo de políticas públicas, de implantação de práticas democráticas, tanto no nível centralizado dos governos, como dos núcleos atomizados de manifestação da vontade baseada na vivência comunitária e nas opiniões técnicas ou científicas.

Em resumo, o que pode ser sentido por todos, como irremediável alienação, é que temos uma Constituição que não garante a todos, mas patrocina interesses que mudam, ou se sobrepujam, e têm de ser atendidos para favorecer grupos de pressão. Mesmo com a exigência do quorum qualificado, os congressistas descobriram que é melhor recorrer a uma PEC para atender a seus interesses banais, grupos trânsfugas ou clientelas de ocasião do que utilizar o projeto de lei, pois então se submeteriam ao veto presidencial, enquanto a emenda não passa pela presidência da República. De repente foi percebido pela população que a ação poderosa dos lobbies só pode ser compensada por mobilização de massa. Afinal, também é clara a percepção de que o Brasil não tem porque ser, no concerto das nações, aquele solitário país que insiste em ter uma Constituição móvel e, ao mesmo tempo, aspira tornar-se uma sociedade estável. Talvez ainda surja ainda um cartaz muito compatível com o que as manifestações  havidas já disseram: “Chega de PECs! Queremos uma Constituição permanente!”.

3.         Partidos e concessões públicas para patrocínio proselitista - Certamente é difícil para um estrangeiro entender porque o Brasil mantém mais de vinte partidos políticos sem identidade ideológica ou programática definível e com uma atuação oportunista que atrai o epíteto de partido de aluguel para muitos deles.  A chantagem política, manifestada na reticente fidelidade às bases de apoio das composições partidárias, tornou-se a regra. O funcionamento de partidos religiosos numa sociedade que se proclama laica ou bem traz para dentro do Estado um debate que não lhe diz respeito, nem se destina a alcançar o bem comum, ou faz do Estado um patrocinador da proposta de cooptar adeptos para confissões espirituais, mal disfarçadas em entidades que recebem subvenções para supostas ações assistencialistas, que pouco ou nunca realizam.

Serviços públicos de comunicação também são concedidos para doutrinação religiosa diretamente, por meio da cessão de canais de rádio ou TV, ou através de “aluguel de espaço”, que empresas laicas concessionárias fazem para igrejas ou entidades que se dedicam à pregação ou proselitismo de todo tipo.  Isso resulta na lobotomia coletiva que se assiste nos meios que, afinal, resultaram de conquistas científicas demoradas ou até espetaculares só alcançadas no século XX. As pregações podem ser examinadas por vários enfoques críticos, o que aqui não interessa, mas em qualquer situação são frequentes cenas constrangedoras que todos conhecem, de milagres, doenças curadas e descrição de dramas verdadeiros ou inventados acerca de tudo, com intimidades expostas e um longo e aplastante rito de bestificação. Isto nada tem a ver com liberdade de culto, que a Constituição assegura, nem com a confissão de fé através das diversas liturgias nos locais próprios, destinados a esse fim, bem como de comemorações em lugares públicos. Ora, se alguém é concessionário de serviço público, como pode alugar espaço para fins que não são do interesse público? Se uma empresa de comunicações não tem condições de produzir seus próprios programas então não está apta, isto é, não possui idoneidade técnica e financeira para explorar uma concessão. Por outro lado, tal serviço não tem porque ser entregue para a atividade confessional.

Porém, fica sobremodo difícil corrigir esse descontrole administrativo das funções públicas em um Estado laico se os já mencionados partidos de aluguel dispõem todos os anos, no ano inteiro, de espaço gratuito para suas próprias arengas inconsistentes no rádio e TV. O tempo por ele despendido é pago em alto preço através de renúncia fiscal dos poderes públicos, que deixam de arrecadar impostos incidentes em valor correspondente ao do tempo pago, sob patrocínio comercial. E há políticos que ainda querem financiamento público a campanhas eleitorais. É através desses meios que fazem a pregação em programas vazios de conteúdo e que outro objetivo não têm a não ser o de marcar presença ativa, para o fim de integrar coalizões oportunistas e preparar as eleições seguintes para a partilha do governo em um condomínio de verdadeiros vândalos, cuja única especialidade é saquear os cofres do Estado. Por isso, lia-se em um cartaz dos mais fotografados das manifestações: “os vândalos estão no poder”. Caberia talvez acrescentar: “Há muito tempo!”

4.         Um Congresso que sistematicamente legisla mal - Há uma situação evidente, bem percebida pelos manifestantes de junho de 2013, de quase irremediável embaraço legislativo. No mundo formal, no Brasil do arcabouço jurídico, as leis feitas com o propósito confessado de melhorar o país (mas que não escondem o inconfessado de promover interesses de grupos ou criar estruturas de poder nocivas ao interesse social) estão em franca dissintonia com o país real, o país das necessidades e das aspirações coletivas há muito conhecidas.

Um exemplo expressivo do embaraço legislativo se encontra na análise da tramitação da PEC 37, que visava a definir a autoridade policial como a única instância investigatória no processo penal. O argumento para defender a tese era de fato embaraçoso: aquele que acusa (o promotor) não poderia investigar. Ora, não há nenhum tipo de perseguição criminal, desde o seu início, que deixe de visar à apresentação (ou a não apresentação) de uma denúncia. Logo, toda a investigação visa à coleta dos elementos para amparar uma acusação e é, ela própria, desde seu início, a persecutio criminis, a forma legal de perseguir o crime. Depois de intermináveis debates, conduzidos por lobbies e não pela discussão parlamentar que definisse os rumos de uma política para a definição jurídica desejada, mas como resposta sôfrega às manifestações de rua, a Câmara dos Deputados rejeitou a proposta por 430 votos, contra 9 e 2 abstenções. Isso após inúmeros adiamentos e falsos impasses.

A questão principal, no entanto, não foi tratada. Qual é o rito a ser adotado nas investigações penais do Ministério Público? Atualmente ele está fixado em resolução do Conselho Superior dessa instituição. Mas isso não é possível, pois as regras têm de ser estabelecidas em lei, em nome das garantias públicas. O Ministério Público deve sem dúvida deter a competência investigatória complementar, como vem decidindo o STF, mas também deve ater-se a regras legais de procedimento a fim de que não seja possível a iniciativa voluntarista, que poderia decorrer de motivação pessoal. Afinal, como se verá em seguida, há mentes perigosas também dentro do MP.

Outro imbroglio mal conduzido pelo Congresso foi a aprovação da PEC 544/2002, resultando na EC 73, de 06/06/2013, que criou quatro novos Tribunais Regionais Federais. Na véspera da promulgação da emenda foram sancionadas pela presidente da República as leis que criaram quatro novas universidades federais, no sul do Pará, sul da Bahia, oeste da Bahia e em Cariri, no Ceará. Primeiro, qual é o país, salvo os riquíssimos, que pode criar em dois dias quatro novos tribunais e mais quatro universidades? O impacto orçamentário desses atos é muito grande e permanente. Em segundo lugar, o artigo 96, inciso II, alínea “c”, da Constituição Federal estabelece duas condições formais para a criação e extinção de tribunais: (I) a iniciativa está reservada ao próprio Poder Judiciário; (II) a matéria deve ser regida por lei. Terceiro: todos os argumentos “funcionais” indicando a necessidade de haver quatro novos TRFs soçobram, além de contrariarem todas as estatísticas, por esta constatação: já tramitam no Senado outras propostas para criar ainda mais dois tribunais, que terão sede em Belém e Fortaleza. Isso revela – na verdade, escancara - a única preocupação realmente existente: clientelismo político e vontade manifesta de beneficiar a “privilegiatura”, multiplicando-se cargos judiciais, acomodando-se milhares de funcionários. Por certo, dentre estes, muitos oriundos do numeroso grupo dos excluídos da advocacia pela restrição seletiva da OAB, a quem o Congresso e depois o Judiciário outorgaram o poder de definir quem pode e quem não pode exercer uma profissão que a Carta diz ser livre, atendidas as qualificações profissionais que somente as universidades deveriam proporcionar. Para a criação dos novos tribunais federais foi decisivo o lobby da AJUFE, Associação dos Juízes Federais, confessadamente em busca de vagas para ascensão funcional para os magistrados de primeiro grau. Eis a razão, pelo enfoque limitado e corporativo predominando sobre os interesses nacionais, da censura dirigida a essa entidade pelo presidente do STF. A verdadeira excrescência, que é a integração de um quinto dos tribunais por elementos de fora, os quais não prestam concurso para terem esse acesso, não é combatida por puro comodismo e falta de espírito público.

Ainda está no Congresso a PEC 33/2011, aguardando a formação de uma Comissão Especial Mista para seu exame, o que - muito provavelmente - será abortado pelas manifestações de rua. Ela submete as decisões do Judiciário a uma espécie de confirmação ou referendo do Legislativo. Ou seja: um Poder que vive seus impasses abismais sobre as escolhas políticas que deveria fazer, que está montado sobre uma verdadeira pirâmide de gastos, ineficiência e descontrole administrativo, quer exercer a supervisão de outro Poder, sem que possa superar as insuficiências reais deste – que são grandes – em implantar um efetivo regime de garantias públicas.                           

Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABEDA, Luiz Fernando. Protestos no Brasil: o direito também brota das ruas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3842, 7 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26322. Acesso em: 23 dez. 2024.

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