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Protestos no Brasil: o direito também brota das ruas

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07/01/2014 às 13:18
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“NÃO ME REPRESENTA”. O COMPLEXO DE “EXCELÊNCIA”.

1. Um representante do povo que quer representar uma farsa -  Parece óbvio que um parlamentar eleito pelo povo, em qualquer tempo e lugar, exerce um papel de representação, o que não se confunde com representação de um papel. Ele não está investido em um personagem que vá desempenhar uma farsa ou outra forma de dramaturgia. Em que pese essa constatação simples, um capítulo à parte deve ser aberto a respeito ao ato de escolha do pastor Marco Feliciano para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Proteção das Minorias da Câmara dos Deputados, em 07/03/2013, por 11 dos 18 votos do colegiado que a integra. A indicação partidária para o cargo decorreu do acordo que prevê a distribuição das comissões temáticas por todas as bancadas que compõem a maioria parlamentar. O PSC – Partido Social Cristão, legenda do deputado indicado, tem em sua composição membros da chamada “bancada evangélica”, agrupamento político que faz proselitismo religioso e está ligado a práticas de cooptação de fiéis para crenças neopentecostais.

No mesmo mês de março de 2013 iniciaram as manifestações de rua em Porto Alegre, de recusa do aumento das passagens de ônibus urbanos. A imprensa chegou a noticiar que participantes do movimento se deslocaram até Brasília, para ali reforçar outros grupos que já começavam a protestar contra a escolha de Feliciano que, por declarações públicas e ações tidas como discriminatórias, foi agraciado com o bordão “não me representa”. Esta segunda recusa, no redirecionamento da Comissão de Direitos Humanos para ações de fundo ou de pretexto religioso, mostra que havia uma mesma inspiração de sentido contestatório já na primeira, contra o aumento das passagens, e – na continuidade - com outras bandeiras que vieram depois, paulatinamente, num crescendo que levou os representantes políticos a uma crise de mudez. Da qual eles tentaram se recobrar fazendo propostas estapafúrdias freneticamente em torno de plebiscito ou referendo, reforma política e outras generalidades esotéricas. Iniciativas estas que não responderam de nenhum modo aos protestos,  mas deixaram expostos o medo e abalo que eles causaram.

A Mesa da Câmara dos Deputados saiu-se muito mal no episódio, primeiro dando ultimatos ao PSC, depois prometendo achar uma solução negociada, mas na prática não fez nada. Pudera, pelo “condomínio” utilizado como processo de escolha para os cargos de mando na Casa (da mesma forma como ocorre com os 39 Ministérios do Poder Executivo), cada grupo ou partido se acha dono do seu quinhão. O Ministério dos Esportes, por exemplo, é feudo do PC do B. O do Trabalho, do PDT. As Comissões temáticas do Legislativo não fogem a essa regra nefanda. Portanto, a ação direta foi percebida como a única forma de lidar com essa excrescência que foge a todas as regras de uma representação autêntica, bem assim aos compromissos de bem gerir a coisa pública. No auge das manifestações, a Comissão de Direitos Humanos ainda aprovou texto que patrocinava a chamada “cura gay” através de tratamento psíquico, por conta dos serviços públicos de saúde oferecidos à população – já péssimos, abaixo da crítica, no que se refere às doenças somáticas. Por fim, em virtude das manifestações, o autor do projeto (contra o qual se voltou seu próprio partido, o PSDB) pediu seu arquivamento. Mas Marco Feliciano continuou.

2. A pseudoelite recém-chegada em busca de prestígio - A par desse vaudeville, para se ter em conta o delírio das proposições legislativas,  emergindo dessa desorganização interna do Congresso, em 20/06/2013 a presidente da República promulgou a Lei 12.830 que trata de prerrogativas dos delegados de polícia. Foi vetado um parágrafo que assegurava a eles conduzir a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico. A razão apresentada para o veto foi a de que tal preceito poderia causar conflito institucional ao ser feita a persecução penal. E poderia mesmo, tendo em vista as faculdades legais de outras autoridades requisitarem novas diligências. Os delegados poderiam simplesmente alegar seu convencimento técnico-jurídico em contrário para não realizá-las. Assim, a atividade administrativa policial passaria de vinculada a discricionária. O que ficou da nova lei, uma vez que os demais artigos não têm nenhum conteúdo normativo, formando um amontoado de bobagens que eram destinadas apenas a formar um “balão de ensaio” para a PEC 37, foi o artigo 3º, que assegura aos delegados “o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados”.

Assim, no auge das manifestações de rua que fizeram tremer os Poderes, tudo o que a atividade legislativa tinha a dizer é que, fruto do lobby dos delegados, eles agora deverão ser tratados como excelência. Ora, os policiais, para o bem do país, não são atores da cena judiciária. Não atuam nos tribunais, salvo como testemunhas ocasionais. Por um ranço histórico, a “gente da justiça” – como foi chamada pelo gravurista francês Daumier, que a criticou profundamente em suas litografias – usa o protocolo do tratamento distanciado e circunspecto. Seria talvez preferível seguir o modelo da França, onde todos são tidos como cidadãos iguais, e os agentes públicos são chamados pelo nome do seu cargo [por exemplo, Monsieur le Président (senhor presidente) ou Monsieur Conseiller (senhor conselheiro), nos órgãos judiciais colegiados; Monsieur le Juge (senhor juiz), nos juízos individuais]. Os advogados são tratados como Maître  (mestre), assim como os chefes de cozinha, os açougueiros, os farmacêuticos, os confeiteiros, os notários, etc, segundo a herança das corporações, e ninguém se sente diminuído por isso. Não há nem mesmo uma reivindicação dos causídicos para serem tratados nos diálogos formais como avocat, talvez porque essa mesma palavra queira dizer tanto advogado como abacate. Não se tem notícia de que a OAB de lá (Conseil National des Barreaux), ao contrário do que certamente aconteceria no Brasil, tenha querido mudar o léxico. Quem sabe isso explique porque os advogados mais eminentes, que atuam na Court de Cassation, recebam a designação de avoué. Porém, cada povo segue seu caminho na História, por razões diferentes. Nos Estados Unidos, pátria da república moderna, somente o juiz – e ninguém mais, por pretensa equiparação – recebe o tratamento de your honour. Porque lá é percebido que no cargo e na pessoa nele investida está concentrado todo o poder decisório do Estado, num sentido simbólico para a democracia, em relação a direitos fundamentais e comportamento social.

No Brasil parecerá sempre, aos nossos próprios olhos, porém mais ainda, aos olhos dos estrangeiros, acentuadamente ridículo que procuradores, promotores, advogados, delegados (e, mais adiante, com absoluta certeza, oficiais superiores da polícia militar, que costumam ser beneficiados por legislação estadual que os equipara aos delegados) queiram gozar das prerrogativas dos juízes, sem nunca haver feito concurso para a magistratura, nem ter desempenhado as suas funções. Nenhuma dessas categorias faz parte, na maioria dos países, da magistratura togada e nunca incorpora ou personifica o exercício de um Poder do Estado. É curioso constatar que os oficiais das forças armadas, que mandaram tanto no país por vinte e um anos, sem estar submetidos a legislação alguma que lhes parecesse inconveniente, jamais aspiraram “equiparação” aos juízes... talvez porque só na democracia vicejem as vaidades mais grotescas, enquanto nas ditaduras os delírios são mais grandiosos e supostamente mais respeitáveis...

De tudo isso, resta o sentimento do “não me representa”, que aqui tornou-se muito grande e só tende a aumentar. Longa vida para ele.                                                                                                                                                                                                                       


AS VERDADEIRAS MENTES PERIGOSAS

Enquanto o país tem a evidente mostra de que faltam elites autênticas, que foram importantes em momentos históricos mais recentes (no movimento da legalidade, em 1961, por exemplo, ou na campanha das “diretas já”, como na da anistia, ou na convocação da Assembleia Constituinte e, não menos, no processo de impeachment), passaram a ter  presença ostensiva nos dias que correm pseudoelites arrogantes que desprezam a população. Dois exemplos são particularmente expressivos:

1. Quem são os verdadeiros portadores de ideias perigosas? -  Em 07/06/2013 foi realizada em São Paulo, capital, a primeira das grandes manifestações de rua que ali se sucederam. Houve bloqueio de avenidas importantes e surgiram logo problemas óbvios de trânsito. Um promotor público do Estado, que atua na Vara do Juri, postou mensagem extremamente agressiva em sua página no Facebook. A síntese do episódio foi assim descrita: “O promotor de Justiça Rogério Leão Zagallo, do Ministério Público de São Paulo, causou polêmica no Facebook na última semana, ao postar uma mensagem na qual disse que a Tropa de Choque poderia matar um grupo de manifestantes na capital que ele, mesmo assim, arquivaria qualquer possível processo contra os policiais.             O promotor, que já foi investigado pela Corregedoria do Ministério Público paulista, ainda xingou os manifestantes e os classificou como um bando de bugios (macacos). Diante da repercussão negativa, o promotor apagou a postagem ofensiva e publicou uma nova com esclarecimentos e pedindo desculpas.” (Fonte: Revista eletrônica Consultor Jurídico www.conjur.com.brNotícias – MP vai investigar promotor sobre incitação à violência, 10 de junho de 2013).

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Na primeira mensagem constaram os seguintes trechos: “Estou há 2 horas tentando voltar para casa, mas tem um bando de bugios revoltados parando a Avenida Faria Lima e a Marginal Pinheiros. Por favor, alguém poderia avisar a Tropa de Choque que essa região faz parte do meu Tribunal do Juri e que se eles matarem esses (...) eu arquivarei o inquérito policial? (...) Que saudade da época em que esse tipo de coisa era resolvida com borrachada nas costas (...)”. Na segunda mensagem o promotor disse que não agiu em virtude da sua condição funcional, mas que fez um desabafo. Ainda assim, criticou a “falta de firmeza das autoridades (...) para não ficar mal perante os chamados movimentos sociais”. Criticou os transtornos causados por pequenos “grupos aguerridos” que promovem “manifestações selvagens (...) desconhecendo solenemente as proibições existentes”.

Na apuração que é esperada, e certamente será feita, é possível que haja uma tentativa – que provavelmente será exitosa  - de personalizar o caso, com a demonstração de que é um episódio isolado. Se for assim, a gravidade da situação não ficará atenuada. Ninguém pode ser portador de ideias perigosas, com a compulsão de torná-las públicas pelos meios de mais ampla difusão, senão quando tenha o objetivo de vê-las aplicadas. Logo, sendo um servidor, age contra a sua função. Por outro lado, a supina ignorância acerca da proporção de um fato social relevante, a dificuldade em perceber a profundidade e a expressão de problemas reais manifestados por um comportamento coletivo de ruptura, também são maus indicativos, quando alimentam a idéia de que deva existir uma guarda pretoriana, uma gendarmerie, unicamente para cumprir o papel de repressão, de modo a assegurar prioritariamente o bem estar de quem está alheio ao movimento. O egoísmo revoltado e o sentimento de perda do direito próprio, porque outros estão pleiteando direitos diferentes, têm sido indicadores da escalada dos regimes autoritários. Definitivamente, não é bom para o país associar a mente perigosa ao exercício da autoridade.

2. Como e por que agredir a lei e a consciência alheia? – Também no auge das manifestações de rua, um procurador de justiça do Rio Grande do Sul resolveu expressar sua forma de protesto contra a “Lei de Acesso à Informação” (Lei 12.527, de 18/11/2011), que finalmente o Ministério Público daquele Estado havia resolvido cumprir, depois de mais de seis meses de relutância, publicando os valores de sua folha de pagamento individualizada. O procurador escreveu um artigo, não se sabe bem se apenas com propósito desafiador, cujo título é expressivo: “E daí?” (Fonte: jornal Zero Hora, Editoria de Opinião, 11/06/2013). O articulista começa dizendo: “Bem, agora você já sabe, sem ter sido sequer necessário se dar o trabalho de procurar na internet, que, no fim do mês passado, eu ganhei, como procurador de Justiça, R$ 26.266,00 de vencimentos líquidos, ou R$ 847,30 por cada dia do mês, trabalhado ou não, útil ou feriado.” O comentário inicial que se impõe é este: ganhou mais que um ministro do Supremo Tribunal Federal, que recebe subsídio líquido menor. Em sequência do trecho inicial transcrito, o procurador desenvolve várias arengas; diz que paga pensão alimentícia, pois já teve três casamentos e tem agora uma namorada, sofre descontos, o valor que entra em sua conta bancária é bem menor, etc. Diz também que dá economia para o Estado pois, recebendo o adicional de permanência pouco superior a 3 mil reais, e tendo tempo para aposentadoria, faz com que a Procuradoria não precise contratar outro agente público, poupando-se assim de pagar o salário deste. Neste passo, o articulista fornece de novo uma informação insubsistente: se ele se aposentasse permitiria que fosse promovido um promotor que atua no primeiro grau e, portanto, já recebe os seus próprios vencimentos. A seguir, o procurador recompõe o esforço de sua vida, desde uma origem humilde. Anuncia que nos próximos dias dará o parecer sobre o valor das passagens de ônibus em Porto Alegre. O final de seu texto é um desafio: “Eu até não me importo que você ignore isso tudo. O que eu quero saber é, e agora?, o que você vai fazer? Vai me acusar de ladrão da pátria, ou vai recomendar a seus filhos que se inscrevam no concurso para promotor?”. Conclui assim: “Por fim, eu valho mais do que ganho.” O certo é que não vale a pena tecer considerações sobre essa autoavaliação, mas é necessário o registro de que, para o senso comum, para o fim de identificação do cidadão com as autoridades públicas, a arrogância nunca é esclarecedora. Nem boa conselheira. Provavelmente produz o efeito contrário ao desejado.

Estes dois casos mostram que existe algum espectro turvando a mente de importantes agentes públicos, os quais mostram a dificuldade na compreensão dos problemas com que lidam e para cuja solução deveriam contribuir com lucidez, enfoque objetivo e um pouco menos de egocentrismo. Os fatos ou interesses de sua vida pessoal, que voluntariamente trouxeram a público, são desinteressantes. Cada pessoa tem sua própria história de dificuldades, que sempre lhe parecem maiores do que as dos outros. As revelações feitas pelos procuradores acerca do que os preocupa na vida privada, principalmente, implicam em sentimentos e ambições que são irrelevantes para o exame concreto dos fatos que abordaram. Acresce que os dois casos aqui comentados contêm, de forma diferente, alto propósito de agressão ao que se tem chamado de ‘espírito público’. Pois é exatamente a sua falta, por parte de quem se reconhece como autoridade, que ajudou decisivamente a desencadear a recusa popular, o “não me representa”.

Nada – absolutamente nada - do que os agentes do Ministério Público disseram nos textos apontados tem a ver com o que deles se espera: (1) a representação dos cidadãos como alma e corpo da sociedade; (2) o cumprimento das funções públicas, com estrita observância das regras para sua atuação; (3) a legitimidade para sustentar os interesses coletivos; (4) a fiscalização das funções do Estado frente a uma ordem de legalidade e (5) a construção jurídica das proteções aos direitos individuais e comuns.

Ao estudar os costumes dos povos germânicos, sisudos em relação aos romanos, que praticavam o desperdício em nome de sua grandeza, o historiador Tacito escreveu: corrumpere et corrumpi saeculum vocatur – corruptores e corruptos, o século vos chama (por ‘século’, entenda-se o que há de passageiro no mundo). Seria uma esperança útil para nosso povo que autoridades de alta investidura tivessem nisso, principalmente nisso - no combate objetivo, infatigável e circunspecto a esse fenômeno - o foco de sua atuação.   

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Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABEDA, Luiz Fernando. Protestos no Brasil: o direito também brota das ruas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3842, 7 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26322. Acesso em: 5 nov. 2024.

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