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Protestos no Brasil: o direito também brota das ruas

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07/01/2014 às 13:18
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O SAQUE DO ESTADO

1. A administração dos tribunais como palco de conflagração - Sem muitos comentários, que se mostram desnecessários para deixar clara a intenção manifestada, convém fazer a transcrição parcial do que se contém no site de uma grande entidade representativa  de funcionários públicos. Ali está dito:

“A ANAJUSTRA possui uma das melhores assessorias jurídicas do país com várias ações já impetradas pela entidade em benefício de seus associados. O destaque vai para a vitória na ação dos quintos, que transitou em julgado e cuja sentença já beneficiou milhares de associados em todo país. A entidade também obteve vitória, em primeira instância, nas ações dos 13,23% e dos aposentados e pensionistas que se inativaram após a EC 41/2003. Se você ainda não é associado à ANAJUSTRA, filie-se aqui e participe das ações em aberto (Fonte: www.anajustra.org.br/acoes/acoes.asp)”.

A leitura que se faz dessa proposta é no sentido de que melhores advogados podem obter vantagens remotas ou até mesmo incríveis, de modo que essa é a motivação principal (obter ganhos extras) para filiação à entidade. A seguir, no mesmo site é apresentado um rol impressionante de ações propostas contra a administração pública, visando a desembolsos pelo Tesouro:

“AÇÕES NACIONAIS

Ação para receber a FC ou o DAS na aposentadoria

15,8% de aumento na remuneração geral – índice suprimido na Lei 12.774/12

Ação para devolução do PSSS incidente sobre o adicional de treinamento, adicional noturno e sobre demais verbas não incorporadas aos proventos de aposentadoria

Adicional de penosidade/localidade

Recálculo do valor das horas extras – fator de divisão

Ação para dedução integral dos gastos com educação no Imposto de Renda

Auxílio alimentação: Anajustra ingressará com ação coletiva

Direito de opção previsto no art. 193 da Lei 8.112/90

Ação de pagamento da GAS independente de aprovação em curso de reciclagem

Ação de pagamento da GAS cumulativamente com a função comissionada

Ação de pagamento da GAS aos servidores da área administrativa, especialidade transporte

Diferença da GAJ – reenquadramento isonômico

Isonomia da GAS ente ativos e inativos

Incorporação dos 11,98%

IR sobre o terço de férias

Abono permanência

Aposentadoria especial

Ação dos 13,23%

Restituição do IR sobre rendimentos recebidos acumuladamente

AÇÕES REGIONAIS

Cobrança do passivo da incorporação dos quintos até 2001 – TRT7

Cobrança do passivo da incorporação dos quintos até 2001 – TRT22

Cobrança do passivo da incorporação dos quintos até 2001 – TRT3

Cobrança do passivo da incorporação dos quintos até 2001 – TRT12

Cobrança do passivo da incorporação dos quintos até 2001 – TRT8

Ação URV 11,98% – TRT17

Ação URV 11,98% - TRT15

Ação URV 11,98% - TRT12

Ação URV 11,98% - TRT9

URV 11,98% - TRT4

URV 11,98% – TRT2

Juros moratórios URV – 11,98% - TRT1

URV 11,98% - TRT1

Diferença dos quintos – TRT18”

A lista dessas 19 ações nacionais e das 14 ações regionais, no total de 33, leva a algumas perguntas. (1) O serviço público é de tal modo caótico que não consegue implantar um sistema legal coerente e regular para remunerar seus servidores? (2)  As pessoas que atuam nos tribunais como ordenadores de despesas são mentecaptas ou quadrilheiras a ponto de não atender, nas épocas próprias, as regras de remuneração que, afinal, em se tratando de Direito Administrativo, estão todas elas fixadas em lei? (3) Os administradores e integrantes dos tribunais brasileiros estão mal comprometidos, seja pelo desconhecimento de leis que não cumprem, seja por terem comportamento leniente com chicanas processuais, a ponto de gerarem para o Tesouro um monumental rombo, em nome de erros inescusáveis ou de favorecimento a grupos privilegiados por interpretações estapafúrdias?

Em fevereiro do ano corrente, os tribunais eleitorais pagaram diferenças remuneratórias aos seus servidores, relativas à incorporação do que haviam percebido quando exerceram cargos comissionados, os chamados “quintos”. Embora a incorporação tenha sido extinta no longínquo ano de 1998, através da Lei 9.624, editada ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, predominou o entendimento de que ela deveria ser paga até 2001, como vantagem pessoal. Com isso, por exemplo, o TRE de São Paulo pagou 5 milhões e 300 mil para apenas 41 servidores beneficiários. Pouco antes, a partir de novembro de 2012, os tribunais eleitorais já haviam feito o desembolso de 3 milhões e 800 mil a título de pagamento de horas extras, o que deve ter decorrido de uma situação de descontrole, pois esta última quitação deu causa à dispensa do cargo comissionado ao diretor-geral do TSE, determinado pela sua presidente, Ministra Cármen Lúcia. O funcionário campeão no ressarcimento do “quinto” pelo TRE de S. Paulo recebeu R$ 300.089,00 e o melhor aquinhoado com as horas extras R$ 64.000,00. (Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo, 17/02/2013).

Não estaria o serviço público pagando pelo trabalho regular “dividendos”, à maneira como eles são distribuídos para investidores privados no mais típico dos regimes capitalistas, sem que a população - embaraçada pelo viés de uma legislação distorcida por interpretações patrocinadoras de privilégios - saiba o porquê? Ou seja, os agentes da nomenklatura, que seguidamente reivindicam a posição de engajados no processo político em favor de lutas emancipatórias, teriam redescoberto a mais antiga fórmula burguesa para obter lucros, com a vantagem de fazer “investimentos” apenas nas “apostas” para exaurir o Tesouro mediante interpretações sibilinas e aproveitando a inépcia, verdadeira ou simulada, dos ordenadores de despesa.

Todas estas situações mostram que o Poder Judiciário não se administra da maneira eficiente e proba, que corresponda aos princípios previstos no art. 37 da Constituição Federal. Como exigir, portanto, que órgãos gigantescos como o INSS ou a CEF tenham uma administração eficaz? A CEF, por exemplo, é o maior litigante institucional nos tribunais do país. Embora seja compreensível que atue em áreas que podem suscitar conflitos, pois além das atividades bancárias cuida das loterias e de programas sociais extensos, como PIS, FGTS, Minha Casa Minha Vida e Bolsa Família, isso não quer dizer que a racionalidade exigida ao serviço público possa ser substituída pelo caos administrativo. Nem que o custo, representado afinal pela evasão dos recursos do tesouro, venha a ser suportado pela população carente dos serviços públicos. Carência esta que só a “privilegiatura” tem condições de superar.

2. A única fidelidade da nomenklatura é aos interesses próprios - Na verdade, não é mais possível ocultar que existe uma nomenklatura instalada na administração pública, tomando vantagens sobre vantagens, e para isso desenvolveu uma noção confessada de aparelhamento dos órgãos estatais, e os apparatchiks servem para manter um governo paralelo, voltado à obtenção de privilégios, status, poder decisório e, não menos, resultados econômicos vultosos, que resultam de pretensões discutíveis, quer nas ações ou omissões que as motivam, quer nas concessões que as atendem. Em resumo, o aparato do Estado não pertence ao povo ou ao país; a estrutura do Estado pertence ao “aparelho”.

Não passa despercebido o questionamento intenso que sofre a legislação relativa a três pontos, quando ferem os interesses corporativos e os submetem às garantias públicas de regular acesso e bom exercício dos cargos e funções do Estado: (a) as disposições constitucionais e legais que vedam o nepotismo, também expressas na Resolução 07/05 do Conselho Nacional de Justiça e na Súmula Vinculante nº 13; (b) a lei da ficha limpa e (c) a lei de livre acesso à informação. Não por acaso, os diplomas a respeito desses temas foram atacados à exaustão nos tribunais e tiveram, por muito tempo, sua vigência protelada, ou através de liminares suspensivas ou simplesmente por recusa de cumprimento. Muitas das vantagens estendidas a grupos de servidores públicos visaram como objetivo escuso privilegiar parentes de políticos, juízes e membros do Ministério Público, ainda que os benefícios tivessem de ser estendidos para toda a categoria funcional a que pertencia o privilegiado visado, com desastrosa consequência para os cofres públicos. Eis a causa de haver tanto interesse em ocultar essas manobras, descumprindo a lei da transparência e acesso às informações funcionais.

De qualquer forma, a existência dessa “privilegiatura” tem presença espessa e humilha a sociedade. A impressão que os privilegiados passam é a de que determinadas categorias detém a chave do cofre do Estado e estão mais preocupadas em usar os recursos que são de todos em interesse próprio. Para agravar, também fica a impressão de que há um patrocínio, isto é, um plano concebido para obter esse resultado e, por fim, de que o Direito é instrumentalizado para criar um Estado vassalo de interesses corporativos. Tal quadro de descalabro seria impossível imaginar na França, por exemplo, onde o Conseil d’État (criando ainda na administração do Cardeal Richelieu, ao tempo de Luis XIII) atua como tribunal administrativo para todas as causas com litígio envolvendo os poderes públicos, e regula normativamente o seu funcionamento. Este é o caminho para o Brasil? Talvez, mas o certo é que um caminho qualquer tem de ser encontrado, pois o poder público brasileiro se encontra, do ponto de vista da administração, num estado semelhante àquele descrito na Física como entropia, que – no sentido laico tomado por empréstimo – quer dizer algo como a desorganização interna dos elementos de um material depois de exaurido o trabalho para extrair dele a energia. Órgãos públicos que não têm autoridade científica em Direito Administrativo, ainda que em nome da autonomia, não podem continuar da deliberar sobre essa matéria, que mal conhecem e pior aplicam. Ou teremos um Estado eternamente pagador de precatórios intermináveis, com juros e honorários vultosos, sangrando os cofres públicos de recursos essenciais para programas sociais e reformas econômicas, enquanto a estrutura estatal permanece autoritária e proveitosamente ineficiente e indefesa para a nomenklatura.


JUDICIÁRIO CONTURBADO

1. Os juízes que não fazem concurso - Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, mediante ingresso por concurso público, com exceção daqueles que são comissionados ou de confiança (temporários), e dos eletivos (com mandato).

Entretanto, exatamente nos tribunais, que deveriam primar por seguir essas regras fixadas para a universalidade dos cidadãos, subsiste a prática de entronizar advogados e membros do Ministério Público a título de compor um quinto das vagas de desembargadores e ministros (no STJ essa mesma participação chega a um terço). Diria Petrônio Portella, porta-voz dos militares durante o regime de exceção, do alto de sua imaginária cavalgadura, para onde foi alçado como testa de ferro para repetir as banalidades do Conselheiro Acácio, personagem ridículo de Eça de Queiróz: “o que está na Constituição não pode ser inconstitucional”. Efetivamente, foi o que ele disse e era assim que se procedia. Os atos ditatoriais eram inseridos na Carta Magna e, após conspurcada a Constituição de 1946, teve de ser outorgada a Constituição de 1967, depois a Emenda de 1969 (que a reescreveu), e ainda vigorou paralelamente o AI-5/68, na verdade um estatuto constitucional à parte. Outras emendas pontuais foram feitas, em tão grande número que, na campanha para uma Assembleia Constituinte, ficou consagrada a expressão “colcha de retalhos” para nossa lei fundamental deformada que vigorava antes de 1988.

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Assim é que um Petrônio Portella-Conselheiro Acácio redivivo afirmaria que a composição do chamado quinto constitucional, por elementos estranhos à magistratura, está prevista na Constituição. Muito bem, se esta é a lógica a ser defendida, por que os candidatos não fazem concurso público para os cargos que almejam? Não é a própria Constituição que prevê a acesso a cargos públicos ou por eleição popular ou por concurso? A certeza que se afirma é esta: os integrantes do quinto são os únicos agentes do Estado, junto com os conselheiros e ministros dos tribunais de contas, que (1) não prestam concurso público para exercer cargo permanente; (2) não se submetem a exames das condições físicas e psicológicas para o bom desempenho de suas funções, previamente à investidura.

Na verdade, o quinto constitucional somente serve para inserir nos tribunais promotores públicos que têm sua própria carreira truncada porque não se abrem novas vagas para eles na segunda instância (pudera, no MP é comum constatar o pagamento de um “abono de permanência” e de outras vantagens de duvidosa legalidade, o que incentiva os integrantes mais antigos a aguardar em atividade até a aposentadoria compulsória) e advogados que atuarão por apenas cinco anos no Judiciário, retomando depois suas bancas de advocacia que, a mais das vezes, continuam funcionando todo esse tempo sob o comando de parentes ou amigos, enquanto eles judicam.

Como não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar, segundo o adágio popular, tramita na Câmara de Deputados (está na Comissão de Constituição e Justiça, já sendo alvo de um intenso lobby para aprovação) a PEC 204/2012 que assegura à advocacia e ao Ministério Público, através de suas corporações, a formação das listas tríplices dos componentes do “quinto”, enviando-as diretamente aos governadores (no caso dos Tribunais de Justiça) e à presidência da República (no caso dos Tribunais Federais). Atualmente, as entidades de classe formam uma lista sêxtupla que é encaminhada aos tribunais onde existe a vaga, e estes selecionam, dentre os indicados, uma lista tríplice. Só então o chefe do Executivo faz a escolha. É bom recapitular que antes da Constituição de 88 (e desde que foi criado o “quinto”) a formação da lista cabia unicamente aos tribunais. A partir de então, os órgãos de classe foram incumbidos de formar um elenco preliminar de seis candidatos. Agora o que se pretende é alijar completamente os tribunais do processo de escolha. A iniciativa tem grande chance de dar certo, simplesmente porque não há ninguém que faça lobby em contrário. Os tribunais não acompanham ou interferem no processo legislativo. As associações de juízes também têm entre seus associados integrantes do quinto, que podem até presidi-las. A OAB chega ao ponto de fazer indicação formal de algum juiz que considera “inimigo da advocacia”, e sinaliza que não o receberá nos seus quadros depois de aposentado na magistratura, e já foi condenada judicialmente por isso. Os parlamentares agem sob a pressão de grupos de interesse. Assim, a maioria dos congressistas, pelo nível de conhecimento que têm, e pelas escolhas políticas que eles fazem, deixando o interesse do país por último, é formada por despachantes e não por mandatários. O risco de corrupção aumentará, pois ficará mais fácil comprar uma indicação (com dinheiro, ou com a moeda do tráfico de influência, patrocínio velado e advocacia administrativa). Até mesmo as PECs – ou melhor, principalmente elas – tornaram-se o mais indecoroso meio de corromper a República, pois levam a uma nova “colcha de retalhos”, tal como existia na ditadura.

A AJUFE, a poderosa entidade que reúne os juízes federais, avaliando que lutar contra o quinto é uma guerra perdida, pois as instâncias políticas e legislativas estão comprometidas em manter o status atual, quer por existir interesse em influenciar na escolha de seus preferidos, quer para atender ao lobby da OAB, preferiu investir na criação de novos tribunais federais e – nesse passo – se equiparou aos lobistas que privilegiam interesses de grupo sobre o interesse público. Por não querer lutar do lado certo, de resgate de uma condição de cidadania expressa no livre acesso a cargos públicos através de concurso ou eleição, escolheu a guerra suja em favor de novos TRFs, não importa quantos eles venham a ser, nem o quanto custem ao país, nem a utilidade prática que irão ter (ou não) para o sistema. Segundo anteprojeto de lei preparado pelo Conselho da Justiça Federal, para cumprir a Emenda Constitucional 73, que criou quatro novos TRFs, serão necessários 60 cargos de desembargador, 2027 de funcionários efetivos, 355 em comissão, sendo que 1449 funções também serão comissionadas. Os custos estão sendo levantados. Uma estimativa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) é de que o gasto operacional seria de 922 milhões por ano. Os gastos de instalação ainda são uma incógnita, não tendo sido divulgada nenhuma projeção. A tudo devem ser acrescentados outros custos do Ministério Público e da Advocacia da União, para funcionarem junto aos novos órgãos (Fonte: blogdofred.blogfolha.uol.com.br/‎ Frederico Vasconcelos, 29/06/2013).

2. A interferência de critérios pessoais ou políticos para formar tribunais - Outro ponto que conturba o funcionamento do Judiciário está no critério para a nomeação dos ministros. A escolha também resulta de lobbies cada vez mais constrangedores. Para que se tenha uma ideia aproximada das implicações desse problema com a independência funcional, que assim periclita, basta examinar este fato: em 6/03/2013, o plenário do Superior Tribunal de Justiça reuniu-se para formar as listas tríplices com indicações para suprir as vagas naquela corte. Para as três vagas reservadas pelo quinto constitucional ao Ministério Público, inscreveram-se nada menos do que 116 candidatos. Para a outra vaga restante, destinada a desembargadores de Tribunal de Justiça, mais 56 candidatos foram inscritos. A existência de 172 interessados em preencher 4 vagas de ministro mostra apenas o início da “corrida de obstáculos”, que culmina - após o ingresso na lista tríplice - em um lobby antropofágico para ser escolhido pela presidência da República. Mesmo a imprensa especializada noticiou o fato como “disputa” e “corrida de desembargadores”, além de referir que Fulano “corre por fora”, prevendo que “os ânimos podem ficar mais acirrados” (Fonte: Revista eletrônica Conjur, www.conjur.com.br, 6/03/201, Notícias: Mais de cem candidatos disputam três vagas no STJ).

Quando veio ao conhecimento público (em fins de janeiro de 2012) a Operação Porto Seguro da Polícia Federal, indiciando por tráfico de influência, advocacia administrativa e outros crimes praticados contra o regular funcionamento dos portos vários integrantes da administração pública federal, sendo os principais implicados Rosemary Noronha, chefe do Gabinete da Presidência da República em São Paulo, e José Weber Holanda Alves, Advogado-Geral Adjunto (o número dois) da Advocacia-Geral da União, ficou-se sabendo que foram encontrados – nas buscas realizadas no gabinete de trabalho do último, na AGU – currículos encaminhados por candidatos a ministros dos tribunais superiores e até do Supremo. Trata-se de notícia da imprensa diária. Mas não são conhecidos desmentidos. A situação é de tal modo constrangedora que, se o lobby político em si já deveria ser condenável, mais deplorável ainda é terem os candidatos recorrido ao número dois da AGU.

Por que não foram logo ao número um? Na verdade, na corrida de obstáculos qualquer padrinho serve, desde que tenha o telefone de quem decide. Daí, talvez, caber a pergunta do Evangelho: “O que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma?” E, em seguida: “O que dará o homem em troca de sua alma?” (Mateus, 8, 36 e 37). Claro, pensarão os pragmáticos ou cínicos, “progredimos” o bastante pelos milênios para que tais perguntas sejam tidas por ingênuas e de pouco valor prático nos dias de hoje... De qualquer forma, não há nenhuma outra situação na face da terra que possa ser melhor descrita do que esta como sendo o significado mais próprio da palavra arrivismo. E o arrivismo é socialmente nocivo, pois sufoca o mérito numa competição canibalesca. Na verdade, o único currículo que deveria interessar ao Congresso quando faz a sabatina dos candidatos, a par de verificar a formação técnica, é este: o que você já fez, que o qualifique profissionalmente, pelo seu país? Esta pergunta, ao que consta, nunca foi feita. Logo, ficará para sempre uma incógnita irrespondível: o que pretende então, como ministro do Judiciário, fazer por ele?

3. Os Colégios que não ensinam, mas gastam dinheiro público – Foram criadas no país pelo menos três entidades como sendo o Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil, o Colégio dos Presidentes de Tribunais Regionais Eleitorais e o Colégio de Presidentes e Corregedores dos Tribunais do Trabalho, que adotou a sigla COLEPRECOR, que até parece nome de predador de science fiction. Trata-se de organizações civis que (a) não são representativas de juízes; (b) não estão integradas a órgãos públicos; (c) não têm nenhuma função de Estado; (d) são compostas por pessoas que, escolhidas para administrar os tribunais a que pertencem, não foram eleitas para compor nenhum colegiado fora da estrutura estatal e, por fim, (e) não estão previstas em lei. Com tudo isso, recebem e gastam verbas públicas. A título de “colaborar” com os conselhos administrativos dos tribunais superiores, ou de opinar junto ao Conselho Nacional de Justiça, seus integrantes viajam por todo Brasil, num indisfarçado turismo “funcional” e, por ocasião das viagens, os “colegiados” abandonam seus cargos públicos regulares, sejam eles de presidente ou de corregedor em seus estados ou regiões. No caso do Colégio de Presidentes de Tribunais de Justiça, ficou demonstrado (Fonte: Processo n° 0002330-77.2012.2.00.0000 do CNJ, classificado como ‘Desconstituição de Ato Administrativo) que há repasse dos recursos orçamentários de todos os tribunais estaduais para essa entidade civil. Nos demais casos, as cortes regionais federais aludidas pelo menos pagam passagens e diárias para seus “colegiados”.

É impressionante como se age contra o interesse público impunemente, pois não há sequer um motivo legal que leve dirigentes de tribunais a se reunir periodicamente se, do conjunto formado, não pode ser extraída nenhuma deliberação válida, sob o ponto de vista do Direito Administrativo. Certamente os integrantes dos Colégios se dedicam a incrementar suas carreiras, talvez aproveitando as oportunidades das viagens para fazer lobby em torno de seus próprios nomes, visando a uma vaga futura em tribunal superior. Talvez façam maquinações contra desafetos. Ou talvez promovam aquelas formidáveis alegorias da vida, verdadeiras pantomimas fantásticas, que Mário Quintana bem identificou no seu poema “Metamorfoses”:

“E os velhos jurisconsultos viram fetos...

Esses fetos que a gente olha, meio desconfiado, nos bocais de vidro ...

E que, no silêncio dos laboratórios, oscilando gravemente as cabeças fenomenais, elucubram anteprojetos, orações de paraninfo, reformas da constituição ...

Sempre que puderes, crava um punhal, um garfo, um prego, no miolo mole desses fetos.”

         4. O Caso Pimenta Neves -  Em agosto de 2000, na cidade de Ibiúna, SP, o conhecido jornalista Pimenta Neves, que então era diretor de redação do jornal O Estado de S.Paulo matou a também jornalista Sandra Gomide. Preso provisoriamente por sete meses, o autor do crime respondeu processo em liberdade, a partir de então, em virtude de decisão liminar adotada em Habeas Corpus pelo Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal.

Há nos tribunais brasileiros um posicionamento assente: em virtude da garantia constitucional de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, os réus - salvo aqueles que tenham uma condição de vida incompatível ou inconveniente para com a ordem publica, conforme estabelecido em muito poucas definições legais - não podem ser privados da liberdade ou de seus bens antes do fim do processo. Prender antes do trânsito em julgado passou a ser tido como um ato de exceção, que alguns ainda consideram peremptória e abstrata, independente dos elementos apurados serem demonstrativos da autoria certa, da responsabilidade inescusável, da culpa manifesta ou das consequências brutais. Essa posição, de “aprisionamento” da formação do juízo, como se o direito fosse escrito em sânscrito ou em outra língua cabalística, que merecesse veneração e não entendimento, leva a compreender porque Dostoievski usou seu gênio para apontar o homem como um ser ridículo na formação de seus juízos, bem como porque Robert Musil descreveu com tanta profundidade o homem sem qualidades, isto é, o medíocre, que depõe sua vontade e sua lucidez diante de grandes definições, grandes princípios, grandes mistérios, missões supremas, comandos imperativos..., que em geral são o abismo das verdadeiras convicções.

As normas jurídicas ou têm inteligibilidade ínsita ou não são normas. Como esclareceu definitivamente Hans Kelsen, a norma não é a regra escrita, não é a lei; é a elaboração que se faz para que ela atue objetivamente, inspirada na teoria de sua construção por critérios próprios, que consideram o texto do preceito, sua inserção na ordem jurídica, sua formulação explícita e implícita e, por fim, a interpretação que é reveladora do seu sentido autêntico. Há outras escolas, melhores ou piores do que a de Kelsen, mas nenhuma delas sustenta que o juiz deva agir como boneco de ventríloquo. No caso Pimenta Neves, o autor do crime era confesso. As circunstâncias do delito, por motivo passional, foram inteiramente levantadas. Não havia, assim, dúvidas possíveis a respeito de autoria e materialidade. Nunca houve debate algum sobre a tipificação, como ocorreria, por exemplo, se a ação persecutória tivesse que lidar com a hipótese de dúvida sobre mais de um enquadramento legal possível. Logo, a reprobabilidade sempre esteve à margem de erros de apreciação, pois também não havia risco de equívoco na formação do juízo de culpabilidade. Ainda assim, o autor do crime só veio a ser preso em 2011, após esgotar todos os recursos possíveis. Nesse tempo, mais de uma década, a família da vítima foi destruída pelo sofrimento, desamparo, doença e dificuldades econômicas.

Esta justiça cativa de postulados herméticos, imaginários ou canônicos, que, como disse Graciliano Ramos a respeito de um juiz da roça, está prisioneira do ponto e da vírgula, do artigo e do parágrafo, da estupidez enfim, não pode levar a um quadro se estabilidade jurídica, enquanto a vítima sobrevivente de delitos muito cruéis e o criminoso saem da delegacia juntos. Isto simplesmente não deve ser tido como aceitável em nenhuma sociedade, desde as primitivas até aquelas mais civilizadas pelos milênios de história ou pelo acúmulo exuberante da cultura. É verdade que o Ministro Celso de Mello assustou-se com a consequência de seu julgamento, que suspendeu a prisão de Pimenta Neves por dez anos. Procurou justificar argumentando que o magistrado de primeiro grau poderia ter prendido de novo o acusado. Depois do que aconteceu com o Juiz Fausto de Sanctis no julgamento da “Operação Satyagraha”, acusado injustamente de “desobediência” ao Supremo? Basta ler a decisão do próprio Ministro Celso de Mello. Como é seu costume, inúmeras são as palavras sublinhadas para dar uma ênfase retórica. A ordem por ele expedida foi no sentido de que o jornalista Pimenta Neves ficasse solto até o trânsito em julgado (Fonte: Revista eletrônica Consultor Jurídico www.conjur.com.br – Notícias de 24/05/2011 - Pimenta Neves perde último recurso e cumprirá pena).

“Estamos em pleno mar”... do acinte às vítimas. O Brasil das manifestações é também o Brasil que deplora sua justiça. Se a reivindica, quer que ela seja outra. O Judiciário entre nós, se não comete crimes, aumenta consideravelmente os seus efeitos.

5. O caso do calouro que morreu em um “trote” universitário – Em 06/06/2013, o Supremo Tribunal Federal julgou o recurso extraordinário 593443, em que foi reconhecida repercussão geral, oferecido pelo Ministério Público para reverter julgamento do Superior Tribunal de Justiça, que foi no sentido de trancar ação penal contra quatro estudantes veteranos de Faculdade de Medicina em São Paulo, acusados de causar a morte de Edson Tsung Chi Hsueh, por afogamento na piscina de um clube. O acórdão do STJ foi mantido, contra o voto do Relator Marco Aurélio e outros dois ministros. Ao fim do julgamento, o Presidente do STF pronunciou as seguintes palavras: “É muito comum esquecermos a questão de fundo: um jovem saído da minoria étnica brasileira, que foi vítima de uma grande, imensa violência, que resultou em sua morte e de seus sonhos e os de sua família. É isso que deveríamos estar debatendo.” Em seguida, acrescentou: “A quem incumbiria examinar se eles são ou não culpados, já que houve morte? Ao Tribunal do Juri ou a um órgão burocrático da Justiça brasileira situado aqui em Brasília, o Superior Tribunal de Justiça? Ouvi aqui que não cabe exame de provas em Recurso Extraordinário, que é o que estamos julgando. No entanto, o que mais se fez aqui foi examinar prova. Para quê? Para confirmar uma decisão questionável do STJ?”. Segundo o repórter que cobriu o julgamento, “o ministro disse ainda que não era a primeira vez, em dez anos de tribunal, que presenciava uma situação em que os ministros preferiam se debruçar sobre ‘teorias e hipóteses’ e esquecer o que é ‘essencial’, a vítima. ‘O STJ violou abertamente o artigo 5º, inciso 38, da Constituição, violou a soberania do juri’, disse Barbosa”.

O Relator Marco Aurélio sustentou em seu voto que o trancamento da ação penal pelo STJ não se escudou nas três únicas hipóteses em que poderia ser concedido o Habeas Corpus: (1) atipicidade de conduta; (2) flagrante inocência do acusado e (3) extinção da punibilidade. Como essas circunstâncias não foram verificadas no caso, o STJ deixou de considerar que “o trancamento de ação penal pressupõe a inexistência de juízo de probabilidade da ocorrência da infração e da autoria”. Em lugar disso, segundo o Relator, houve “a valoração e o cotejo analítico de provas, testemunhos e perícias médicas” indicando que o Superior Tribunal de Justiça realizou o exame de matéria imprópria à ação de Habeas Corpus (Fonte: Recurso Extraordinário 593.443, Rel. Min. Marco Aurélio – voto vencido; Revista eletrônica Consultor Jurídico, www.conjur.com.br – Notícias – 06/06/2013).

Venceu o voto do Ministro Ricardo Lewandowski, no sentido de que o STJ detém competência para trancar a ação penal, mesmo antes do juízo de primeira instância fazer o exame das provas, quando constatada a ausência de justa causa. Trata-se, portanto, de um entendimento em tese. Será ele original? Não, pois qualquer tribunal competente em matéria penal pode determinar o trancamento da ação, nos casos discriminados na lei em numerus clausus. Portanto o que avulta no caso em exame são estas circunstâncias: (1) como o STJ errou tanto, aos olhos do relator no STF e dos votos que o seguiram? (2) por que o desfecho indignou tanto o Presidente da Corte Suprema a ponto de censurar vivamente o entendimento contrário? (3) como se constroem (e se admite!) brechas no Direito brasileiro de modo que um crime de morte, decorrente de irresponsabilidade e de sadismo, reste impune e - tendo em vista que foi cometido no já longínquo fevereiro de 1999 - é certo que nunca mais será investigado. Os responsáveis ficarão impunes. Esta é a única certeza do processo iníquo.

Saber por que esses acontecimentos são admitidos em nosso “estado democrático de direito” talvez remeta à constatação de que esse status é ilusório, não traz garantias efetivas, não é um sistema de proteção ao exercício da cidadania. Ao contrário, é um aparato custoso, demorado, cheio de contrafações que, sob a capa de muitas teorias delirantes, metafísicas, esotéricas ou definitivamente mefistofélicas, leva o homem comum a concluir como quem se vê só num campo de batalha, tentando nele sobreviver: a vida não vale nada.

6. A diminuição crítica do poder de administrar justiça – Enquanto se mostra “totêmico” em relação a alguns enunciados constitucionais ou legais, o Judiciário não sabe se defender. Não sabe garantir suas funções para que elas produzam o efeito desejado. Isso ocorre em tantos casos que a população já assimilou expressões técnicas de sentido complexo, como ‘precatório’ e ‘PEC’, por exemplo. Há uma dissolução de finalidade no entendimento do que seja a ordem legal. Mesmo em casos corriqueiros, não se pergunta mais a que leva a adoção de determinadas práticas. Por exemplo: os tribunais costumam copiar sentenças e pareceres para fundamentar seus acórdãos. Chamam a esse procedimento que “seleciona, recorta e cola”, no editor de texto, de motivação ad relationem. O latim, em casos como este, parece que serve para dar respeitabilidade a uma impostura. Tal prática serve para os chamados “julgamentos em bloco”, com o tempero adicional: “com ou sem destaque”. Ora, tudo isso é um imenso engodo. É o fabulário do rei nu recontado com dados de uma realidade triste.

Ao mesmo tempo, aquele que foi apontado como o maior litigante individual do Brasil já protocolou no CNJ mais de 40 representações contra magistrados e, desde a remota cidade do interior onde está sediado, moveu mais de mil ações contra desafetos vários, sofrendo outras tantas, além de ser condenado 239 vezes por litigância de má-fé. Sua última investida é no sentido de proibir a divulgação desses dados da estatística mais do que bizarra que produziu (Fonte: Revista eletrônica Consultor Jurídico – www.conjur.com.br Notícias – CNJ repreende autor de processos contra magistrados, de 31/07/2010; Empresário vai à Justiça para tirar ConJur do ar, de 28/06/2013).

Até quando essas pantomimas serão encenadas ninguém sabe. Até que os atores cansem e sucumbam à prostração? Até que o desassossego dos prejudicados se torne um clamor? O Judiciário aceita o labirinto do Minotauro, aceita as charadas da Esfinge de Tebas; mas tem imensa dificuldade em elevar-se sobre seus próprios pés.                                                                                                                                            

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Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABEDA, Luiz Fernando. Protestos no Brasil: o direito também brota das ruas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3842, 7 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26322. Acesso em: 22 nov. 2024.

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