Introdução
Editada a Lei n. 12.690, de 19 de julho de 2012, um novo desafio se coloca. Como viabilizar as verdadeiras cooperativas, diante de um contexto de fraude institucionalizada, que propositadamente confunde noções antagônicas. A lei, que tivemos oportunidade de questionar em outro artigo, enquanto ainda era mero projeto, equipara – em termos – a cooperativa a uma sociedade empresarial. Pretende regular cooperativas de trabalho classificando-as em cooperativas de produção, “quando constituída por sócios que contribuem com trabalho para a produção em comum de bens e a cooperativa detém, a qualquer título, os meios de produção”; e de serviço, “quando constituída por sócios para a prestação de serviços especializados a terceiros, sem a presença dos pressupostos da relação de emprego” (Art. 4o).
Trata-se de um projeto capitaneado já há alguns anos por partidos de esquerda, que talvez estejam mesmo imbuídos das melhores intenções. Não resiste, porém, a um exame minimamente comprometido com a ordem constitucional vigente.
Este artigo, é importante que se pontue desde o início, não é contra o cooperativismo verdadeiro, que acaba por ser atingido de modo letal pela norma que pretendemos comentar, justamente porque a lei equipara figuras opostas e incompatíveis entre si. A verdadeira cooperativa de trabalho é aquela em que os trabalhadores detem os meios de produção e dividem os lucros, figurando como sócios comuns do empreendimento. A cooperativa de serviços, tal como definida no artigo 4o antes citado, é uma verdadeira ode à fraude. A própria previsão legal refere-se a trabalhadores que colocam sua força de trabalho à disposição de um tomador dos serviços, configurando hipótese clara de intermediação de mão de obra. Trata-se de típica terceirização fraudulenta, albergada pela legislação em exame, em completa contrariedade à ordem constitucional vigente.
Não se trata, portanto, de combater o cooperativismo como iniciativa de manifestação econômica. Concordamos que a verdadeira cooperativa se insere na lógica do mercado como uma espécie de empresa solidária, em que todos são proprietários dos meios de produção, superando, assim, a relação de subordinação entre patrão e empregado .
A lei que regulava o trabalho cooperado no Brasil, de 1971, já definia o que verdadeiramente se deve compreender por “cooperação”. Cooperar é unir esforços para melhorar as condições de trabalho. É o que ocorre, por exemplo, quando catadores de papel se reúnem e, trabalhando de forma solidária, contratam a venda do material reciclável com o Estado.
Aqui não há empregador e, por consequência, não há empregados. Não há um dono da cooperativa, não há uma tomadora de serviços que dirige, coordena e remunera atividade tipicamente subordinada. Os trabalhadores não “vendem” sua força de trabalho, mas sim o produto que resulta de seu trabalho, retirando da operação conjunta um incremento no potencial produtivo. Esvazia-se, com isso, a própria noção de mais-valia, que Marx apontava como a nota distintiva do capitalista e uma das formas de alienação do trabalho.
O cooperativismo opera, pois, como uma tentativa de ruptura com a lógica da relação burguesa entre capital e trabalho, devolvendo aos trabalhadores os meios de produção, o que por si só torna o cooperativismo louvável e atraente àqueles que, como nós, se angustiam com a perpetuidade e o crescimento dos aspectos nefastos do atual sistema econômico.
Essa prática, que pode ser comparada a uma iniciativa socialista de produção, quando inserida na lógica capitalista, já enfrenta de início uma dificuldade: depara-se com um ambiente que lhe é claramente hostil.
Sabe-se que um novo modo de produção não se realiza de forma isolada, mas tem de necessariamente estar inserido em um contexto social. É justamente por isso, que o verdadeiro cooperativismo, entendido como uma prática de repartição de lucros a partir da divisão dos meios de produção, se insere com dificuldade em uma sociedade cujo padrão é a exploração do trabalho de forma alienada.
Para além das dificuldades enfrentadas na tentativa de rompimento da lógica capitalista através da associação de trabalhadores, iremos tratar aqui de seu desvirtuamento, com a institucionalização da fraude mediante o reconhecimento de empresas que de cooperativa tem apenas o nome. É esse o caso das chamadas cooperativas de serviço, descritas na lei que estamos examinando.
A lei 12.690 esta cooptada pela lógica do capital, quando pretende tratar a cooperativa como uma nova forma de empregador: um empregador que goza dos mesmos direitos dos demais, tem apenas parte dos deveres que a legislação trabalhista impõe, e possui vantagens, fiscais e financeiras, aptas a fazê-lo concorrer, de forma desleal, com as demais empresas.
E isso, ousamos dizer, é impedi-lo de florescer onde ele realmente está tentando, com muita luta, existir.
1. A Lei 12.690: a morte do verdadeiro cooperativismo
A nova lei parece, a primeira vista, ir ao encontro do propósito de fomentar verdadeiras cooperativas, pois em seu artigo segundo menciona que “considera-se Cooperativa de Trabalho a sociedade constituída por trabalhadores para o exercício de suas atividades laborativas ou profissionais com proveito comum, autonomia e autogestão para obterem melhor qualificação, renda, situação socioeconômica e condições gerais de trabalho”.
Ocorre, porém, que a nova lei não consegue romper com o paradigma liberal calcado na prática de relações subordinadas. Se assim não fosse, certamente não se arvoraria a disciplinar cooperativas de serviço, uma verdadeira contradição em termos. A análise de seus dispositivos demonstra a falácia por trás do discurso. Sob a pretensão de fomentar o cooperativismo, a lei regulamenta a fraude, permitindo que pseudo-cooperativas contratem pseudo-empregados, aos quais apenas alguns direitos constitucionais são assegurados.
Voltamos a Marx. Desde o início de seus escritos, Marx insistia na necessidade de superação da luta de classes entre capital e trabalho, evidenciando que o caminho a ser seguido era justamente a restituição, ao trabalhador, dos meios de produção. O cooperativismo é uma iniciativa nesse sentido.
Temos de observar, porém, que também é de Marx o alerta de que o Direito, assim como o Estado, estão visceralmente comprometidos com o sistema burguês capitalista. A lei das cooperativas é prova disso. Legislar enquadrando a cooperativa em fórmulas burguesas, claramente caudatárias da relação capital x trabalho, inviabiliza a superação que o próprio cooperativismo persegue.
Uma verdadeira cooperativa prescinde dos dispositivos de uma lei trabalhista, simplesmente porque em um cooperativismo de verdade não existem empregados, reclamando piso salarial ou direito a férias. Por consequência, também não há patrões, todos são sócios, dividindo lucros e prejuízos. Todos estão ‘no mesmo barco’: o que servir a um servirá a todos. O que for decidido, assim o será por todos. Isso, entretanto, tem que se refletir na realidade da gestão cooperativa. Essa gestão socialista da produção se torna absolutamente inviável na realidade jurídica que a nova lei pretende impor. Demonstraremos o que aqui sustentamos com a análise de alguns de seus dispositivos.
2. Análise de alguns dispositivos da Lei 12.690: desmascarando a falácia.
No artigo segundo, em que define cooperativa de trabalho, a lei em exame preocupa-se em conceituar autonomia e autogestão. Aqui o intérprete aplicador mais atento já deveria ao menos inquietar-se. Porque apresentar um conceito de autonomia, se já sabemos (aliás, estamos cansados de saber) o que constitui um trabalhador autônomo, em oposição ao trabalhador subordinado, que sustenta o sistema capitalista de produção calcado, ainda hoje, em relações de emprego?
De novo as lições de Marx, que concebidas há mais de dois séculos, ainda são atuais. Marx refere textualmente que “um ser só se considera autônomo quando é senhor de si mesmo e só é senhor de si quando deve a si mesmo seu modo de existência.” Nada mais precisa ser dito sobre o que se deve entender como trabalhadores autônomos que somam esforços, de forma cooperada, para melhorar suas condições sociais.
Desnecessário, também, um conceito de autogestão. Ora, se estamos falando de uma sociedade cooperativa, é evidente que a gestão ficará a cargo dos associados. A lei, entretanto, refere que “considera-se autogestão o processo democrático no qual a Assembleia Geral define as diretrizes para o funcionamento e as operações da cooperativa, e os sócios decidem sobre a forma de execução dos trabalhos”.
O art. 4o, que já reproduzimos anteriormente, traz uma definição absolutamente problemática do que denomina cooperativa de serviço, pretensa espécie de cooperativa de trabalho. Se os trabalhadores se organizam para prestar serviços a terceiro, a figura do empregador (nos moldes do art. 2o da CLT) está necessariamente presente, ainda que sob o eufemismo de tomador dos serviços. Há quem “admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”, já que sequer é possível cogitar de prestações de atividade de limpeza, por exemplo, realizadas de forma autônoma. A única diferença, admitida e incentivada pela lei, é que esse verdadeiro empregador (denominado eufemisticamente de tomador de serviços) não assume os riscos da atividade econômica. Esse risco é transferido aos trabalhadores “cooperados”, em verdadeira afronta ao princípio que orienta, inspira e justifica o Direito do Trabalho.
Não há quebra da lógica capitalista que retira do trabalhador os meios de produção, tornando-o assim subordinado a uma empresa, que detem o capital. O trabalho verdadeiramente cooperado pressupõe que o trabalhador seja o dono do resultado do seu trabalho.
Em uma linguagem marxista, exige a ausência da alienação sob a forma de apropriação da mais valia. Quando o trabalho se insere na atividade desenvolvida pela empresa, o que temos é um modo, mesmo que disfarçado, de subordinação. A subordinação objetiva constitui conceito construído há mais de um século e atualmente incorporado e reproduzido por praticamente toda a doutrina e jurisprudência trabalhista .
Na relação de trabalho capitalista ocorre uma “mediação alienada” da atividade humana, que acaba por desumanizar o homem, reificando-o, como identifica Mészaros ao analisar o conceito marxista de alienação. Na intermediação de mão de obra a mediação se dá na própria atividade de mediar, ou seja, a alienação é potencializada, duplicada: o mesmo empregado passa a ser subordinado a dois empregadores. No caso das cooperativas de prestação de “serviços especializados a terceiros” (um eufemismo para empresa prestadora de serviços), esse duplo fetiche da alienação é ainda mais perverso, porque subtraímos do trabalhador, duas vezes, sua condição de empregado.
Se a terceirização por si só, é extremamente perversa, ao fazer com que os trabalhadores sejam “tratados como coisa, ou simplesmente não [sejam] vistos” , a terceirização por meio de falsa cooperativa, que a lei não apenas admite mas incentiva, é ainda pior.
Aliás, é interessante observar que a urgência na aprovação da lei, do mesmo modo como age o Poder Legislativo em relação ao projeto de lei sobre terceirização, parece pretender limitar a nítida reação jurisprudencial verificada nos últimos tempos. O TST vem reconhecendo a fraude na intermediação de mão de obra, sobretudo por meio de falsas cooperativas, que conseguem elevar a precarização do trabalho provocada pela terceirização ao seu expoente máximo.
São exemplos disso cooperativas que sequer tem um objetivo delineado. Prestam serviços de várias ordens, via de regra para órgãos públicos. Em geral, prestam serviços de asseio e conservação. Qual será a autonomia da assembleia ou dos supostos sócios, para decidir a “forma de execução” da varrição das ruas de Porto Alegre?
A autogestão e a autonomia dos trabalhadores cooperados, que a própria lei refere como necessárias, pressupõe que aja uma finalidade definida que permita que os trabalhadores se reconheçam como aliados para a melhoria de suas condições sociais e efetivamente cooperem entre si. Quando cada cooperado ou cada grupo de cooperados está a serviço de terceiro, realizando diferentes atividades subordinadas ao empreendimento tomador do serviços, não há sequer verdadeira cooperação, não há um objetivo comum, não há união de esforços em prol de um resultado que reverta para os próprios trabalhadores.
Aqui percebe-se, então, que o problema legitimado pela lei não é apenas o de conceituar uma cooperativa de prestação de serviços, que se afigura uma contradição em termos, mas também o de permitir que o cooperativismo seja reduzido ao mero repasse de força de trabalho a terceiros, voltando-se contra os próprios trabalhadores.
Na prática, a terceirização por intermédio dessas pseudocooperativas de serviço, descritas na lei, apenas precariza ainda mais as condições de trabalho subordinado. O objetivo de superação da lógica capitalista revela-se transmutado na mais perfeita assimilação da lógica de coisificação do homem: um verdadeiro retorno ao liberalismo que viscejava no século XIX.
Trata-se do que Zizëk denomina “cegueira proposital”, uma cegueira que conscientemente nos dispomos a reproduzir, fingindo que a realidade é um Matrix, em que os cooperados são efetivamente autônomos, em que os tomadores não são empregadores disfarçados. Enfim, em que os cooperados não são empregados com menos ou nenhum direito. Temos de fingir que realmente as assembleias das cooperativas de serviço tem poder de decisão diante de contratos que estabelecem o valor-hora do trabalho, a atividade a ser realizada, o local do serviço e a quem estarão diretamente submetidos em suas tarefas diárias.
Uma falsa autonomia, bem mais perversa do que aquela praticada sob a forma de falsas sociedades individuais, criadas para viabilizar a contratação de profissionais de grandes redes de telecomunicações. Lá, ao menos, o empregado é seduzido pela ideia de que será um empreendedor, e por vezes também ele “leva vantagens” com a burla à legislação trabalhista.
Aqui, os cooperados via de regra recebem menos de um salário por mês e trabalham de forma absolutamente precarizada. São, na maioria das vezes, pessoas pouco instruídas, às quais os pequenos “cursos” formatadores passados no momento da “contratação” vendem a ideia agora inscrita como regra legal: autogestão é decidir a forma de execução do trabalho, em assembleia, ainda que seja para decidir simplesmente aceitar os termos de um contrato (?) de intermediação de mão de obra, como comumente ocorre.
A perversidade que se verifica na relação social vivenciada entre os trabalhadores e os exploradores de sua força de trabalho se reproduz nas audiências trabalhistas. Os procuradores dessas (falsas) cooperativas insistem em tomar os depoimentos dos trabalhadores fazendo perguntas do tipo: “o senhor participou de assembleia em que lhe foi informado sobre as regras do cooperativismo?” “aderiu voluntariamente ao modelo?” “sabia que não teria a carteira de trabalho assinada?”, como se respostas afirmativas a tais perguntas tivessem o poder de transformar uma relação de emprego em um vínculo cooperativo .
A insistência dessa atitude por parte dos advogados, entretanto, não é totalmente destituída de fundamento. Decorre da condescendência de decisões que chancelam a fraude, permitindo que a forma se sobreponha à realidade. A mudança dessa tendência jurisprudencial, como antes mencionamos, é talvez hoje a arma mais importante de luta, no âmbito do Poder Judiciário, contra leis que, como a 12.690, apesar de aparentemente protetivas, estão irremediavelmente seduzidas e cooptadas pelo que há de mais visceral no sistema vigente: a exploração do trabalho pelo capital.
O artigo terceiro da Lei traz os princípios e valores de uma cooperativa de trabalho. Se levarmos a sério esse rol de preceitos, será muito difícil compatibilizar a nova legislação com a realidade das cooperativas de prestação de serviços. Dos “valores” apontados, destaca-se a (IX) não precarização do trabalho. Os índices oficiais, entretanto, dão conta de que a grande maioria das cooperativas são curiosamente contratadas por órgãos públicos, para prestar serviços, sobretudo de limpeza e vigilância, mediante licitações cujo valor total mensal do “serviço” não corresponde sequer à soma da remuneração mínima dos trabalhadores que seriam necessários para a realização das tarefas ajustadas. A conta não fecha.
A terceirização, um dos maiores males da sociedade atual, tem seu potencial lesivo acentuado, quando realizada mediante contratação de cooperativa de prestação de serviços. Todos os dias temos notícias de graves questões sociais envolvendo intermediação de trabalho supostamente cooperado .
Utilizando-se da linguagem, a lei 12.690 disfarça seu verdadeiro propósito. Quando fala de autogestão e de não-precarização parece efetivamente avançar em termos de proteção ao trabalho humano. Então estamos bem. Nada a reclamar. Trata-se de um marco regulatório. Uma lei para dizer o mesmo que já estava dito desde 1971, mas para acrescentar que não devemos utilizar o cooperativismo como meio de fraude aos direitos trabalhistas.
De novo, nos socorremos dos clássicos. No texto “O Socialismo Jurídico”, Engels e Kautski alertam para o perigo que o Direito representa à superação da exploração do trabalho pelo capital. Se queremos mudar a realidade, dizem os autores, não tenhamos a ilusão de que encontraremos no Direito um aliado. Certamente não o teremos no Direito positivo, fruto do sistema econômico adotado, fruto do Estado burguês.
O Direito serve ao sistema. Os exemplos disso se multiplicam. A propriedade privada e o contrato (expressão de uma falsa autonomia da vontade) não por acaso constituem institutos jurídicos preciosos aos “operadores” do Direito.
Não estamos condenando definitivamente o que hoje chamamos ciência jurídica. Apenas evidenciamos o fato de que o Direito (im)posto pelo Estado, é o direito comprometido com a lógica atual, é o direito que não pretende nenhuma ruptura. Por isso, é mesmo ingênuo acreditar que uma lei regulando cooperativas de prestação de serviços pretenda outra coisa, que não a absorção da tentativa socialista representada pelo cooperativismo pela lógica capitalista, destruindo completamente seu potencial emancipatório.
Sigamos, porém, a leitura da norma. Do artigo sexto em diante percebe-se não apenas uma intervenção demasiada na liberdade de contratar, como também o caráter discriminatório que efetivamente justifica o texto em exame. O artigo exige o mínimo de sete sócios, e nos faz refletir porque uma cooperativa de cinco ou seis pescadores não poderia constituir-se regularmente.
O artigo sétimo garante aos sócios cooperados “I - retiradas não inferiores ao piso da categoria profissional e, na ausência deste, não inferiores ao salário mínimo, calculadas de forma proporcional às horas trabalhadas ou às atividades desenvolvidas; II - duração do trabalho normal não superior a 8 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) horas semanais, exceto quando a atividade, por sua natureza, demandar a prestação de trabalho por meio de plantões ou escalas, facultada a compensação de horários; III - repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; IV - repouso anual remunerado; V - retirada para o trabalho noturno superior à do diurno; VI - adicional sobre a retirada para as atividades insalubres ou perigosas; VII - seguro de acidente de trabalho”.
Aqui a lei começa a revelar sua verdadeira face: estamos chancelando a fraude. Tratando trabalhadores em condições iguais de forma absolutamente desigual. Sócio não cumpre horário. Por consequência, não pode ter garantia de jornada de oito horas. Se estivéssemos falando de uma sociedade cooperativa, sequer cogitaríamos tratar de direitos devidos a trabalhadores subordinados. O Direito do Trabalho não se aplica a uma verdadeira relação entre sócios.
A cooptação da força emancipatória de um cooperativismo verdadeiro torna-se evidente: ao reconhecermos aos sócios direitos típicos da relação de trabalho subordinado, estamos reconhecendo sua realidade: trata-se de trabalhadores que continuarão destituídos dos meios de produção; trabalhadores cuja mão de obra continuará a ser explorada pelo capital, agora eufemisticamente denominado “tomador dos serviços”. E o pior, esse “tomador”, verdadeiro empregador da mão de obra dos trabalhadores, se furtará – com a benção legal – de suas responsabilidades.
A lei 12.690 é, pois, esquizofrênica. Fala de autonomia, adesão voluntária, não precarização, mas institui uma modalidade de semi-emprego, em que o trabalhador coloca sua força de trabalho à disposição de um empreendimento, mas não tem garantidos, em sua integralidade, os direitos trabalhistas. Rompe, portanto, com o projeto constitucional. Embora aparentemente protetiva, a lei – de um só golpe – condena à falência as verdadeiras cooperativas e à desigualdade e precarização os trabalhadores das falsas cooperativas de serviço.
O § 5o do artigo 4o da lei das cooperativas diz, inclusive, que poderá ser decidido em Assembleia Geral Extraordinária, o estabelecimento de um prazo de “carência na fruição dos direitos previstos”. Em claro e bom português, os empregados agora contratados como “cooperados”, além de terem apenas parte dos direitos que a Constituição assegura, poderão, eles mesmos, por assembleia, renunciar a tais direitos por determinado “prazo de carência”.
O verdadeiro objetivo da lei continua a desvelar-se no artigo 10, em que se estabelece que a cooperativa “não poderá ser impedida de participar de procedimentos de licitação pública que tenham por escopo os mesmos serviços, operações e atividades previstas em seu objeto social”. Eis aqui uma resposta clara e objetiva à corajosa ação do Ministério Público do Trabalho que vinha obtendo condenações e firmando termos de ajuste de conduta com entes públicos, a fim de evitar a contratação de cooperativas por menor preço, em vista da precarização evidente dos direitos dos trabalhadores que por intermédio destas eram contratados .
A lei ainda institui, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, o Programa Nacional de Fomento às Cooperativas de Trabalho - PRONACOOP, com a “finalidade de promover o desenvolvimento e a melhoria do desempenho econômico e social da Cooperativa de Trabalho”, com recursos a serem retirados do Ministério do Trabalho, bem como do Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT; de recursos orçamentários da União; e de outros recursos que venham a ser alocados pelo poder público. Além dos benefícios fiscais já alcançados às cooperativas, novos incentivos financeiros são introduzidos pela lei. Curiosamente, as verdadeiras cooperativas, que certamente não terão condições de reconhecer direitos trabalhistas a sócios, também não terão auxílio financeiro do Estado.
É a completa inversão dos valores constitucionais, a chancelar a fraude, fomentar a intermediação de mão de obra e condenar as verdadeiras cooperativas à extinção.