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A União Europeia e o Direito Comunitário: uma manifestação regional do direito internacional

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Agenda 31/01/2014 às 08:09

III-  Conclusão: o Direito Comunitário como um ramo regional do Direito Internacional Westfaliano

O Direito Internacional Público contemporâneo veio sendo construído a partir da transição entre Idade Média e Idade Moderna[57], período marcado pelo fim da influência da Igreja nas monarquias. Em meio à lógica feudal, desenvolvia-se o poder da burguesia, cujos interesses se contrapunham àqueles dos proprietários de terras. A concepção católica de mundo, que embasava o modo de produção feudal, já não atendia plenamente aos interesses comerciais da classe ascendente. Com isso, os Estados modernos foram sendo constituídos a partir da visão jurídica de mundo da burguesia, que secularizava a perspectiva teológica, libertando a monarquia da tutela do Papa[58].

O suporte jurídico deste movimento de enfraquecimento do direito divino e de fortalecimento do poder político foi o postulado da soberania dos Estados, de reflexos internos (dentro das fronteiras territoriais) e externos (sem questionamentos por outros monarcas). Este veio a constituir o pilar das relações internacionais e, consequentemente, do direito internacional após a Guerra dos Trinta Anos[59]. No sistema interestatal, seria a premissa maior da qual irradiariam dois princípios básicos, o da igualdade (jurídica, formal) entre os Estados[60] e o da inexistência de um poder central que detivesse o monopólio do uso da força, a conhecida anarquia sistêmica[61]. Internamente, legitimaria o poder de coerção do Estado, como um poder exclusivo, uno, supremo e indivisível (BODIN, 2011).

O Estado, portanto, é colocado no centro das discussões, sempre atuando em favor do interesse nacional, que imediatamente é o de sobreviver e impor sua vontade em um ambiente descentralizado e horizontal por meio do acúmulo de poder. Não há como pensar a sociedade internacional fora de um sistema de equilíbrio de poder, que coordena o ambiente anárquico (sem um poder hierarquicamente superior) dos Estados (FIORI, 2007). Com o passar do tempo, as mudanças sistêmicas determinaram uma maior complexidade da relação entre Estados, abrindo espaço para o surgimento de organizações internacionais e para a relativização do conceito absoluto de soberania, o qual foi adaptado às novas necessidades e aos novos temas da agenda global, valorizando a cooperação interestatal (KOSKENIEMMI, 2004).

Neste panorama é que se encontra a integração regional europeia. Resultado de um arranjo geopolítico do pós-Segunda Guerra Mundial, cujos rumos foram determinados por condicionantes internas e externas, seguiu e adaptou-se às transformações da sociedade internacional, sobretudo ao ideário neoliberal do final do século XX.  Com uma estrutura remodelada pelo Tratado de Maastricht, a articulação peculiar do direito comunitário passou a ser defendida pelos pensadores liberais como modelo de um direito livre de interferência da política dos Estados, ante sua autonomia perante o direito interno e suas particularidades em relação ao direito internacional.Apesar de gozar de características próprias, o direito comunitário não está acima da vontade dos Estados e constitui uma manifestação específica regional do direito internacional público por diversas razões, as quais serão expostas a seguir.

Aprimeira e mais óbvia reside no fato da União Europeia não ser um Estado federal,mas uma organização internacional, como todas as outras que existem no direito internacional. Isto significa que pela definição doutrinária (TRINDADE, 2003 e PELLET et alli, 2003) a UE é composta por uma união de vontades dos Estados (soberanos), a qual lhe garante uma personalidade jurídica derivada (originária é a dos Estados) e própria (com a dos Estados não se confunde necessariamente), constituída por tratado internacionais (constitutivos) e instrumentalizada a um fim específico (econômico).Estas entidades são regidas pelos princípios da especialidade e da subsidiariedade. Em outras palavras, suas competências serão delegadas pelos Estados para que elas possam atingir seus objetivos. Ocorre que a distribuição de competências na União Europeia é bem complexa, envolvendo diversas áreas, ainda que, em sua maioria, voltadas a questões comerciais e econômicas, sem tocar na maior parte das prerrogativas soberanas do Estado[62]. O argentino Félix Peña rechaça a ideia evolucionista do processo de integração, ainda que dentro de uma visão funcionalista, situando-o como uma plataforma de efetivação do interesse nacional por meio da potencialização do interesse regional, em um sistema de ganhos recíprocos, o que o legitima teoricamente perante a sociedade[63].

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A segunda aborda a institucionalidade europeia, cuja sua composição difusa e complexa, que reúnea mescla de pilares supranacionais e intergovernamentais, como, respectivamente, o das Comunidades e o de Política e Segurança Externa Comum, a PESC[64].A coordenação destes vetores é feita por intermédio do Conselho Europeu, o órgão executivo de cúpula, responsável por elaborar as diretrizes políticas gerais, composto pelos Chefes de Estado e de Governo dos países membros, pelo seu Presidente e pelo Presidente da Comissão Europeia (estes dois últimos não têm direito de voto), ainda segue a lógica intergovernamental e não supranacional, como outros da Comunidade[65].Criado definitivamente na Cúpula de Paris, em dezembro de 1974, não nasce como um órgão comunitário e somente aparece pela primeira vez na arquitetura formal após a incorporação do Ato Único Europeu, em 1986. Ainda assim, é competente para debater e tomar decisões sobre o desenvolvimento e a coesão da União Europeia como um todo, sem, contudo, exercer função legislativa.Com o Tratado de Lisboa foi incorporado definitivamente no seio comunitário, tendo suas competências ampliadas e modificadas[66], sem perder a intergovernabilidade.Diante do exposto,parece um contrassenso celebrar a supranacionalidade da União Europeia, quando seu órgão norteador de rumos políticos segue ainda a lógica intergovernamental, o que só revela que a vontade dos governos influencia diretamente nas questões regionais.

A reserva de soberania do Estado é evidenciada também na terceira razão, atinente ao direito comunitário. Em primeiro lugar, o direito originário segue a lógica ordinária do direito internacional, ou seja, para ser aplicado internamente, precisa passar pela aprovação no procedimento de incorporação dos tratados internacionais. Em segundo lugar, o direito derivado, dele originado, ganha particularidade por não precisar novamente submeter-se ao procedimento de incorporação, tendo efeito direto nos tribunais nacionais. Isto garante operacionalidade e dinamicidade à organização dentro dos assuntos para os quais os órgãos comunitários são competentes. Estas competências foram transferidas pelos Estados e referem-se a assuntos específicos, os quais envolvem em sua maioria questões comerciais e econômicas. Logo, os Estados não perdem sua soberania ou são enfraquecidos, ao contrário, transferem prerrogativas e poderes para efetivar seu interesse nacional ou prioridades de suas elites, tornando por meio das normas as relações comerciais mais dinâmicas e estáveis[67]. Além do efeito direto, o direito secundário possui uma autoproclamada primazia sobre a legislação interna, feita pela jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu. Ainda que louvável na teoria, na prática dependerá de sua confirmação nos tribunais internos[68], os quais somente renunciaram a este controle, se o direito comunitário efetivar de forma satisfatória (conceito bastante subjetivo e de fácil manipulação) os direitos fundamentais (SARMENTO, 2006).

Portanto, vistas as três razões acima, percebe-se que o conceito de supranacionalidade exprime nada mais que duas particularidades do direito comunitário, as quais não são suficientes para colocá-lo acima da vontade soberana do Estado.O que há é um direito internacional regional[69], o qual respeita os ditames da soberania, ainda que se diferencie de outras manifestações jurídicas regionais. A noção de que o direito comunitário supera a soberania do Estado é datada e conveniente para suas elites controladoras e antidemocráticas[70], cujo intuito é a imposição da ideologia neoliberal que foi institucionalizada na União Europeia após o Tratado de Maastricht.


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Sobre o autor
Luiz Felipe Brandão Osório

Graduado em Direito pela UFJF. Mestre e Doutorando em Economia Política Internacional pela UFRJ. Professor de Direito Internacional na UFRJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OSÓRIO, Luiz Felipe Brandão. A União Europeia e o Direito Comunitário: uma manifestação regional do direito internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3866, 31 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26570. Acesso em: 23 dez. 2024.

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