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A função social da propriedade industrial

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Agenda 09/02/2014 às 12:13

4. A Função Social da Propriedade

4.1. A Constitucionalização do Princípio

A constitucionalização da função social da propriedade teve origem nas Constituições do México de 1917 e da Alemanha de 1919 (Constituição de Weimar). Segundo a Constituição Mexicana de 17, em seu artigo 27, “A Nação terá a todo o momento o direito de impor à propriedade privada padrões que ditam o interesse público (...)”[16]; por sua vez, a Constituição Alemã de 19 afirmava, no seu artigo 153, que “A propriedade obriga e o seu uso e exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social”[17]. Como se observa, a função social da propriedade é disciplina que está intimamente ligada às Constituições do welfare state, que consagram o bem-estar social.

Tratada expressamente como norma constitucional pela primeira vez no Brasil com a Constituição Federal de 1946 (art. 141, § 16)[18], a função social da propriedade foi mantida em todas as Constituições subsequentes, até aperfeiçoar-se nos moldes atuais em que a CRFB de 1988 dispõe, como direito fundamental do indivíduo, o direito à propriedade, e, como dever, a obediência à sua função social[19].

Como se não fosse suficiente tratar a matéria do direito de propriedade como direito fundamental, o constituinte também a mencionou, no art. 170, inciso II, da CRFB, como princípio geral da atividade econômica, e, numa demonstração de que esse direito não é mais visto como absoluto, exclusivo e perpétuo, como compreendido desde a época do direito romano até o fim da idade média, dispôs, num primeiro momento como dever fundamental e depois como, também, princípio geral da atividade econômica, que essa propriedade deve cumprir certa “função social”.[20]

Verifica-se pela interpretação do texto constitucional que a ordem jurídica brasileira continua assegurando à pessoa o direito de apropriar-se de bens de diferentes espécies e naturezas jurídicas; entretanto, impõe ao proprietário uma limitação de uso desses bens que, muito mais do que representar uma obrigação negativa do indivíduo (a de se abster de uma utilização anti-social da propriedade), implica num verdadeiro dever (uma obrigação positiva) de destinar ao bem de sua propriedade uma finalidade social, que atenda ao interesse coletivo.

No entanto, há inegável dificuldade em encontrar uma definição de “função social” num contexto genérico e abstrato; o que parecer ser uma omissão do constituinte, já que apesar de sua enorme importância não há, em regra, qualquer definição do que venha a ser esse conceito, revela, na verdade, uma escolha proposital por um conceito jurídico vago e indeterminado, o que permite à administração certa discricionariedade em sua interpretação.

4.2. A Função Social como Conceito Jurídico Indeterminado

Segundo doutrina Eros Roberto Grau, “são indeterminados os conceitos cujos termos são ambíguos ou imprecisos – especialmente imprecisos – razão pela qual necessitam ser completados por quem os aplique”.[21]

Por sua vez, Andreas Joachim Krell[22] relata as raízes históricas da teoria ao afirmar que a Teoria dos Conceitos Jurídicos Indeterminados nasceu na Alemanha no final do século XIX, quando o jurista alemão Tezner contrapôs-se à teoria do austríaco Bernatzik.

Segundo este último, autor da Teoria da Multivalência, os conceitos abertos teriam que ser preenchidos pelos órgãos administrativos especializados sem que fosse possível ao Judiciário rever tais decisões. Entendia Bernatzik, criador da Teoria da Univocidade, que a aplicação do direito exigia certa margem de apreciação subjetiva de seu executor e, sendo a Administração uma “perita do interesse público”, caber-lhe-ia determinar, segundo suas próprias convicções, quais eram as medidas necessárias para a realização desse bem comum.

Contrário a esse perigoso subjetivismo na interpretação dos conceitos jurídicos vagos, Tezner defendia um controle objetivo de todos os conceitos normativos das leis que regiam as relações entre a Administração e os cidadãos, inclusive os conceitos vagos.

Essa discussão evoluiu para o entendimento de que os “conceitos jurídicos indeterminados” não mais eram considerados como uma expressão da discricionariedade, mas, conceitos plenamente sindicáveis pelo Judiciário mediante interpretação.[23]

O advento da criação da República Federal da Alemanha no período pós-guerra contribuiu substancialmente para uma ainda maior redução da discricionariedade dos órgãos administrativos na interpretação de tais conceitos vagos, uma vez que a experiência traumática do regime nazista reduziu a confiança dos cidadãos na Administração, tendo sido essa confiança paradoxalmente transferida para o Poder Judiciário daquela nação. Essa confluência de fatores serviu para que, à época, acreditassem os alemães na possibilidade de que as decisões administrativas pudessem ser decifradas pelos tribunais através dos modernos meios da hermenêutica, interpretação teleológica etc.[24]

Essa teoria predominou entre os juristas alemães até alcançar o seu ápice no final da década de 70 do século passado, quando se verificou naquele país um controle judicial quase total dos conceitos legais indeterminados[25]. Desde então, cresce na Alemanha a corrente doutrinária que critica esse controle judicial abrangente sobre tais conceitos vagos, chegando até mesmo a defender que, nesses casos em que o conceito jurídico é indeterminado, o legislador habilita a Administração a completar, no ato da aplicação, a hipótese normativa incompleta ou a concretizar uma norma aberta.

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Em precisa definição, João Maurício Adeodato assevera que os conceitos jurídicos indeterminados “são opiniões mais ou menos indefinidas a que, ainda assim ou talvez justamente por isso, a maioria empresta sua adesão, ao mesmo tempo que preenche os inevitáveis pontos escuros e ambíguos com sua própria opinião pessoal (...)”.[26]

Não há, em linhas gerais, uma definição precisa de “função social”, e nem mesmo de “propriedade”, sendo estes alguns dos muitos conceitos jurídicos indeterminados encontrados na CRFB e em toda a legislação infraconstitucional e que, em razão de seu conteúdo vago e indeterminado, acabam por permitir ao aplicador da norma que faça a interpretação de seu conceito e defina a sua extensão, o que implica num exercício amplo de discricionariedade pela Administração pouco, ou quase nunca, sindicável pelo Judiciário brasileiro, já que há uma notável resistência de nossos tribunais em interferir no mérito da decisão administrativa.

Nestes casos, não raras são as vezes em que a interpretação do conceito jurídico indeterminado é questionada, sendo bastante comum que o Poder Judiciário se esquive da sindicância do ato administrativo sob o argumento de que essa interpretação faz parte da discricionariedade da Administração, argumentando, em regra, que “os critérios de conveniência e oportunidade não podem ser discutidos pelo Judiciário, que deve apenas se ater ao controle da legalidade do ato impugnado”.[27]

Certamente a crítica a essa liberdade da Administração em “preencher os vazios” da norma de conteúdo jurídico indeterminado contraria a corrente majoritária da doutrina que entende ser necessária essa discricionariedade; no entanto, numa democracia jovem e que apresenta sérios vícios em todas as suas estruturas de poder, como a brasileira, essa discricionariedade interpretativa leva à insegurança jurídica em razão da possibilidade de que haja uma análise subjetiva do caso concreto.

Discordâncias pontuais à parte, o certo é que a adoção da função social da propriedade como um conceito jurídico indeterminado foi proposital e plenamente justificável. Transferindo ao Judiciário o poder de interpretar o conceito, preenchendo o seu conteúdo, sintoma de uma nova racionalidade jurídica, pretendeu o legislador que esse conceito não fosse estático; ao contrário, a ideia é de um conceito que possa se transmudar em razão dos costumes e das diferentes épocas, não precisando, portanto, que nenhuma norma infraconstitucional venha definir precisamente o seu conteúdo.

E mais; levando-se em consideração que os direitos fundamentais têm aplicação imediata, não dependendo de regulamentação por norma infraconstitucional[28], não se admite que o Poder Judiciário se esquive de interpretar o conteúdo dos conceitos jurídicos indeterminados, dando-lhes a exata extensão que a realidade social requer, sob o argumento de que há imprecisão no conceito. A lógica é exatamente a inversa, já que esse exercício de discricionariedade é necessário como instrumento de legitimação do direito à propriedade.

4.3. A Teoria da Propriedade Como Função Social

Augusto Comte[29], ainda em 1850, já realçava a finalidade social que devia tocar, sobretudo, a propriedade dos bens de produção:

Em todo o estado normal da Humanidade, todo cidadão, qualquer que seja, constitui realmente um funcionário público, cujas atribuições, mais ou menos definidas, determinam ao mesmo tempo obrigações e pretensões. Este princípio universal deve, certamente, estender-se até a propriedade, na qual o Positivismo vê, sobretudo, uma indispensável função social destinada a formar e administrar os capitais com os quais cada geração prepara os trabalhos da seguinte. Sabiamente concebida, esta apreciação normal enobrece a sua possessão sem restringir a sua justa liberdade e até fazendo-a mais respeitável.

Assentadas as bases doutrinárias para a evolução do conceito de propriedade, somente a partir das lições de Léon Duguit, criador da expressão propriedade-função em substituição a direito subjetivo de propriedade, é que se elaborou uma arrojada tese da função social da propriedade. Segundo o renomado constitucionalista, “a propriedade é instituição jurídica que se formou para responder a uma necessidade econômica, como todas as instituições jurídicas, e ela evoluciona no mesmo ritmo das necessidades econômicas; e estas necessidades, transformando-se em necessidades sociais, transformam a propriedade em função social, considerando a interdependência cada vez mais estreita dos elementos sociais”.[30]

Segundo a sua teoria, flagrantemente fundada em argumentos sociológicos e econômicos, as necessidades econômicas e sociais satisfazem-se com a afetação dos bens de produção a uma finalidade produtiva, uma vez que, segundo o doutrinador, somente aqueles que detêm a riqueza podem aumentar a riqueza nacional. Sintetizando a essência de sua teoria afirmou[31]:

Está, pues, obligado socialmente a realizar esta tarea, y no será protegido socialmente más que si la cumple y en la medida que la cumpla. La propriedad no es, pues, El derecho subjetivo del proprietario; es la función social del tenedor de la riqueza.[32]

Tamanha a repercussão da doutrina de Léon Duguit nos debates jurídicos da época que, em 1917, a notável Constituição alemã, consagrou em seu texto a função social da propriedade com a expressão “a propriedade obriga”.

4.4. A Propriedade Industrial dos Bens de Produção Dotados de Função Social

Como se pode observar pelas distinções doutrinárias necessárias à compreensão do direito de propriedade e da função social que lhe foi incumbida, os bens da propriedade industrial classificam-se como bens de produção dotados de uma função social, já que as patentes de invenção e de modelo de utilidade, além das marcas e do desenho industrial, interessam à ordem econômica, sendo incontestável fonte de riquezas e de desenvolvimento social, razão pela qual deles se espera o cumprimento da finalidade de atender ao interesse coletivo.

Essa constatação pode ser feita pela referência expressa que fez a parte final do inciso XXIX, do art. 5º da CRFB às finalidades de que sejam atendidos o “interesse social” e o “desenvolvimento tecnológico e econômico do País”.

Trata-se, portanto, de um poder-dever em que ao titular desse direito de propriedade se impõe não apenas o a obrigação de abster-se de utilizar estes bens imateriais em prejuízo de outrem, mas o dever de exercê-lo em favor de outrem[33]. A função social deste tipo de propriedade impõe ao titular desse direito um comportamento positivo também de fazer, diferentemente do já superado entendimento de que a função social seria uma vertente do poder de polícia que impõe ao titular de um direito a obrigação de não-fazer.

Feitas estas distinções necessárias, afigura-se bastante razoável acolher a observação de Eros Roberto Grau[34] quanto à duplicidade de tratamento da função social da propriedade na Constituição Federal:

À propriedade dotada de função individual respeita o art. 5º, XXII do texto constitucional; de outra parte, a “propriedade que atenderá a sua função social”, a que fez alusão o inciso seguinte – XXIII – só pode ser aquela que exceda o padrão qualificador da propriedade como dotada de função individual. À propriedade-função social, que diretamente importa à ordem econômica - propriedade dos bens de produção – respeita o princípio inscrito no art. 170, III.

No mais, quanto à inclusão do princípio da garantia da propriedade privada dos bens de produção entre os princípios da ordem econômica, tem o condão de não apenas afetá-los pela função social – conúbio entre os incisos II e III do art. 170 – mas, além disso, de subordinar o exercício dessa propriedade aos ditames da justiça social e de transformar esse mesmo exercício em instrumento para a realização do fim de assegurar a todos existência digna.

A consagração da proteção à propriedade como princípio geral da atividade econômica teve como inspiração o ideal capitalista de preservação da propriedade privada dos bens de produção. Contudo, a sua destinação social, como poder-dever que se impõe ao proprietário, impele o titular desse direito que o exerça tendo em vista os ideais da justiça social e garantia de existência digna para todos.

4.5. As diferentes funções sociais expressas na Constituição Federal

A CRFB faz referências em seu texto a dois outros tipos de propriedades a quem são destinadas funções sociais expressamente definidas. São elas: a propriedade urbana e a propriedade rural. Ao contrário da função social incumbida à propriedade de bens de consumo dotados de função individual, tratada pelo constituinte no inciso XXIII, do art. 5º da CRFB, a função social da propriedade urbana é expressamente definida no §2º, do art. 182 do texto constitucional, como sendo o atendimento das “exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.”

Percebe-se, assim, que o constituinte transferiu para o legislador ordinário a atribuição de definir quais as exigências do plano diretor de cada cidade, levando em consideração, consequentemente, as peculiaridades e as necessidades locais, sendo que o cumprimento da função social deste tipo de propriedade se dá com o atendimento destas exigências. A hipótese é de um uma função social de sentido diferido, já que depende da legislação infraconstitucional para definir o seu conteúdo e a sua extensão.

Por sua vez, a função social da propriedade rural encontra sua exata definição nos próprios termos da CRFB, já que seu art. 186 descreve os critérios de identificação do cumprimento de sua função social. São eles: o aproveitamento racional e adequado, a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, a observância das disposições que regulam as relações de trabalho, e, finalmente, a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Finalmente, a função social da propriedade dos bens de produção, dentre os quais se inserem os bens da propriedade industrial, encontra seus parâmetros, ainda que pouco delimitados, na parte final do inciso XXIX, do art. 5º da CRFB; diz-se, portanto, que os bens da propriedade industrial cumprem sua função social quando visam “o interesse social” e o “desenvolvimento tecnológico e econômico do País”.

Não há uma única função social da propriedade porque esta também não é única. Como se observa do texto constitucional, para cada espécie de propriedade, de acordo com sua natureza, o legislador prescreve exigências diferenciadas para o cumprimento de sua função social. Em alguns casos, como o da propriedade urbana e da propriedade rural, o constituinte preferiu definir no próprio texto da CRFB a função social que se lhe impõe. Em outros casos, como na propriedade de bens de consumo dotados de função individual, o legislador restringe-se, apenas, a fazer uso de um conceito jurídico indeterminado amplo, transferindo à Administração a discricionariedade para que complete seu conteúdo.

Já a função social da propriedade industrial, ao que nos parece, recebeu do constituinte um tratamento intermediário. Condicionando o cumprimento de sua função social ao atendimento do interesse social e ao desenvolvimento tecnológico e econômico do País, o constituinte aproveitou-se de conceitos jurídicos também indeterminados, mas de menor grau de abstração e de conteúdo vinculado às suas prescrições, para conferir à Administração a discricionariedade de, através de seu órgão técnico-administrativo, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), definir se aqueles bens de natureza móvel[35] cumprem a finalidade que deles de espera.

Esse mesmo entendimento é defendido por Gustavo Binenbojm em interessante abordagem acerca do direito à proteção das patentes como direito fundamental:

Como se vê, o legislador não dispõe de total liberdade na definição dos contornos do direito à propriedade intelectual, senão que está jungido às finalidades pré-estabelecidas pelo constituinte originário que devem nortear o regime jurídico desse direito. Tais finalidades são, como visto, o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.[36]

É o caso da exigência contida na Lei n.º 9.279/96, em que se deverá observar na análise do pedido procedida pelo INPI, nos casos de patente, se estão caracterizados, como requisitos necessários à patenteabilidade de um invento ou de um modelo de utilidade, a atividade inventiva e a aplicação industrial[37]. Trata-se de exigência técnica destinada a saber se aquele invento ou modelo de utilidade efetivamente se constitui num verdadeiro progresso científico-tecnológico para o País, como, também, se esse avanço se opera em benefício do interesse comum. Fora destes casos, não se deve conceder o privilégio temporário de exploração exclusiva conferido pela patente.

Mesmos que já tenha sido deferido em favor do indivíduo a propriedade de bens da propriedade industrial, uma patente por exemplo, a Lei n.º 9.279/96 define as hipóteses em que, exercidos egoísticamente os direitos que a propriedade industrial confere ao seu titular, de forma a não atender ao interesse coletivo, poderá haver o licenciamento compulsório das patentes de invenção e de modelo de utilidade[38].

Sobre o autor
Fernando Antônio Jambo Muniz Falcão

advogado em Maceió (AL), professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FALCÃO, Fernando Antônio Jambo Muniz. A função social da propriedade industrial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3875, 9 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26659. Acesso em: 22 nov. 2024.

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