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O jogo não terminou

Agenda 18/02/2014 às 13:29

Artigo trata das controvérsias acerca da possibilidade de os torcedores de futebol questionarem decisões do STJD na Justiça Comum, focando-se na questão da legitimidade ativa e interesse de agir.

 A frase “o jogo só termina quando o juiz apita” é constantemente utilizada no futebol. Porém, o Campeonato Brasileiro de 2013 continua em discussão nos tribunais, quase dois meses após o apito final do árbitro do último jogo encerrar no campo o torneio. Tudo começou após ser divulgada a notícia de que a Portuguesa escalou, na última rodada, o jogador Heverton de forma irregular. Em julgamento da Comissão Disciplinar do STJD (Superior Tribunal de Justiça) ocorrido na sexta-feira, dia 6 de dezembro, o meia fora condenado a cumprir duas partidas de suspensão. Dessa forma, não poderia ter entrado em campo no jogo contra o Grêmio, no dia 8 de dezembro[1].

Baseando-se nesses fatos, a Procuradoria do STJD apresentou denúncia ao Tribunal. A Comissão Disciplinar aplicou a pena de perda de 4 pontos por infração ao artigo 214 e seu §1° do CBJD (Código Brasileiro de Justiça Desportiva). Posteriormente, o Pleno do STJD confirmou a decisão. Em consequência disso, a Portuguesa acabou rebaixada para a Série B do Campeonato Brasileiro. Com base em fatos semelhantes, porém com consequência menos trágica, o Flamengo também foi punido com a perda de 4 pontos, em virtude da suposta escalação irregular do lateral André Santos no jogo contra o Cruzeiro.

A partir daí, foi ajuizada uma série de ações na Justiça Comum questionando as decisões proferidas pelo STJD. Na maior parte dos casos, essas ações foram propostas por torcedores que se sentiram prejudicados, porém associações, como a ABC (Associação Brasileira do Consumidor), também intervieram na discussão.

Independentemente das questões de mérito que envolvem o caso, tais como se os times agiram de má-fé, se há antinomia entre normas procedimentais previstas no Estatuto do Torcedor e aquelas presentes no CBJD, deve-se analisar preliminarmente a legitimidade ad causam e o interesse de agir de torcedores para questionamento de decisões envolvendo o futebol.

Na semana passada, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) obteve, por meio de agravos de instrumento ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a suspensão dos efeitos de decisões liminares que haviam determinado a devolução dos 4 pontos à Portuguesa e ao Flamengo[2].

Alguns dos argumentos utilizados pela CBF negam a possibilidade de que torcedores recorram à Justiça Comum para questionar decisões que firam interesses. Esse raciocínio questiona a presença de duas condições da ação: legitimidade ad causam e interesse de agir.

Quanto à primeira das condições, alega-se que o torcedor seria consumidor apenas em raros casos, como compra de ingressos, de pay-per-view, falha na prestação de serviços pelos patrocinadores de jogos, enfim, apenas quando estabelecesse relações individuais de consumo. Dessa forma, os únicos legitimados para ajuizar ações na Justiça questionando decisões da CBF ou do STJD seriam os clubes.

Todavia, tal raciocínio peca ao ignorar o artigo 2°, parágrafo único, da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), segundo o qual “equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. Interpretando esse dispositivo, Hugo Nigro Mazzili afirma que “(...) é, pois, consumidor não só quem adquire um produto ou serviço dentro de uma relação de consumo efetiva, como aquele que, na condição de possível adquirente de produto ou serviço, participa de uma relação de consumo ainda que meramente potencial”[3].

Trata-se de um exemplo claro de consumidor por equiparação, em virtude da existência de relação de consumo potencial. O torcedor, conceituado pelo artigo 2° da Lei 10.671/03 (Estatuto do Torcedor) como “toda pessoa que aprecie, apoie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva”, participa de relação de consumo ainda que meramente potencial.

Assim reconhece o artigo 42, §3°, da Lei 9.615/98 (Lei Pelé): “O espectador pagante, por qualquer meio, de espetáculo ou evento esportivo equipara-se, para todos os efeitos legais, ao consumidor, nos termos do art. 2° da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990”. Na mesma linha, o artigo 3° da mesma lei estabelece que “para todos os efeitos legais, equiparam-se a fornecedor, nos termos da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, a entidade responsável pela organização da competição, bem como a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo”.

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A razão de existir da CBF, dos clubes e do próprio futebol são os torcedores. Essas entidades obtêm recursos financeiras com vendas de camisa, patrocínios e comercialização de jogos para televisão por causa dessas pessoas que acompanham o esporte. Protegendo essa figura do torcedor-consumidor, a Lei Pelé e o Estatuto do Torcedor estabelecem uma série de regras e princípios que devem ser respeitados.

Pois bem, ultrapassado esse ponto, deve-se analisar a natureza desses interesses dos torcedores. Nos termos do artigo 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, difusos são os interesses “transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato”. Essa definição encaixa-se perfeitamente na situação discutida neste texto. Isto é, um grupo indeterminado de consumidores (torcedores) sente que seus interesses foram desrespeitados em virtude da violação de leis federais por meio do STJD e da CBF.

Sendo interesses difusos, um consumidor (torcedor) individualmente considerado não é parte legítima para defendê-los. Os órgãos legitimados encontram-se arrolados no artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor, quais sejam: Ministério Público (I); União, Estados, Municípios e Distrito Federal (II); entidades e órgãos da Administração Pública destinados à defesa dos interesses e direitos dos consumidores (III) e associação legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos dos consumidores (IV).

Por fim, quanto ao interesse de agir, deve-se ressaltar que o artigo 217, §1° da Constituição Federal, segundo o qual “o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva regulada em lei”, não se aplica às ações coletivas ajuizadas pelos órgãos citados no parágrafo anterior. O dispositivo citado tem como destinatário apenas as entidades que podem recorrer à justiça desportiva, como os clubes.

Portanto, o torcedor é consumidor, pelo menos por uma relação de consumo potencial, e seus direitos e interesses difusos encontram-se protegidos pela legislação. Por isso, há legitimidade ativa e interesse de agir das entidades previstas no artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor para ajuizamento de ações que visem questionar decisões tomadas pela justiça desportiva ou outras entidades de administração do desporto que desrespeitem, em tese, esses direitos e interesses.


Notas

[1] Disponível em http://esportes.terra.com.br/fluminense/portuguesa-escala-jogador-irregular-e-fluminense-pode-se-salvar-da-queda,245a586eb9dd2410VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD.html. Acesso em 12/02/2014.

[2] Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-fev-08/associacao-consumidor-nao-propor-acao-beneficio-clube. Acesso em 12/02/2014.

[3] MAZZILI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 25ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 173.

Sobre o autor
Marcelo Frullani Lopes

Advogado graduado na Universidade de São Paulo (USP); Sócio do escritório Frullani Lopes Advogados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Marcelo Frullani. O jogo não terminou. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3884, 18 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26717. Acesso em: 23 dez. 2024.

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