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A falta de um controle prévio de constitucionalidade

Agenda 23/02/2014 às 09:28

Reflexão sobre a necessidade de mecanismos para realizar previamente o controle de constitucionalidade material da norma jurídica, ainda na fase legislativa de tramitação de projetos de lei.

É assente no Brasil o entendimento de que não é dado ao Poder Judiciário realizar o controle prévio da constitucionalidade material da norma jurídica, isto é, durante o processo legislativo, tarefa que se reserva ao Senado Federal e às próprias câmaras e assembleias, notadamente através das Comissões de Constituição e Justiça. Essa estruturação é diretamente decorrente da divisão tripartite dos Poderes Republicanos, assegurando a autonomia do Legislativo na edição das leis, imune à ingerência do Judiciário. Contudo, embora se mostre uma esquematização teoricamente perfeita, há casos em que não se pode fugir do questionamento prático de sua adequação à realidade brasileira.

O processo legislativo não se esgota no plano técnico. Acima de tudo, é um fenômeno permeado politicamente, diretamente afetado pelas ideologias dominantes nos representantes da sociedade ao tempo de seu desenvolvimento. Com isso, muitas vezes a discussão de uma nova norma jurídica toma por base, não sua valia social ou tampouco sua estrita compatibilidade para com a Constituição da República, e sim o mais puro anseio ideológico de momento.

É nessas hipóteses que se passa a questionar a impossibilidade de realização do controle prévio de constitucionalidade material, com o qual se poderia evitar que uma norma infraconstitucional viciada ingressasse no mundo jurídico, produzisse efeitos, para, somente então, ser passível de questionamento judicial.

Não raros são os exemplos da falta que faz este controle preventivo. Um deles pode ser tomado por um controverso projeto de lei atualmente em tramitação no Senado Federal, o PLS 176/2011, de autoria do senador Cristovam Buarque, cujo texto propõe alterar a redação do artigo 35 da Lei nº 10.826/03, o chamado “estatuto do desarmamento”, para proibir a comercialização civil de armas de fogo e munição no país¹.

As justificativas apresentadas para o projeto bem demonstram seu cunho estritamente ideológico, fruto de uma concepção – hoje já ultrapassada² - que tenta vincular, em proporção direta, as quantidades de armas em circulação e de homicídios com seu uso. Isso, evidentemente, não contamina de inconstitucionalidade o projeto, pois o fato de um parlamentar desconhecer completamente o assunto que se propõe a regulamentar não invalida a atividade legislativa, não sendo raras as propostas que contrariam a técnica e a realidade social. A questão, contudo, é que, como frequentemente ocorre em hipóteses de prevalência ideológica sobre a realidade jurídica, a referida proposta afronta o texto constitucional.

No afã de fazer prevalecerem sua ideologia e convicção eminentemente pessoal, desconsiderou o parlamentar que a alteração legal proposta já foi submetida a sufrágio popular, decorrente da redação atual do próprio artigo 35 da Lei nº 10.826/03:

Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei.

§ 1o Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005. Original sem destaque.

Como é cediço, o resultado do referendo de 2005 patenteou a rejeição maciça à pretensão de se proibir o comércio de armas de fogo e munições no Brasil, resultado este cujo respeito, na sistemática constitucional vigente, se impõe. Isso porque, mais do que puro regramento da Carta Política, a observância aos resultados das votações populares é princípio fundamental da República Federativa Brasileira, trazido logo no artigo 1º e sedimentado no artigo 14 da Carta Magna:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Destaquei.

[...]

 “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I - plebiscito;

II - referendo;”

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Na exegese da Constituição da República, portanto, embora não exista regramento impositivo da realização de consulta popular, uma vez sendo esta efetivamente realizada, com a submissão de uma matéria à Nação por meio de uma das formas de exercício específico da soberania popular, a observância do respectivo resultado é imperativa, sob pena de flagrante violação do texto fundamental.

Nesse esteio, ao conter uma alteração legislativa completamente oposta à expressão da soberania popular, o PLS 176/11 revela-se materialmente viciado de inconstitucionalidade.

Cuida-se de um vício latente, que salta aos olhos de qualquer operador do direito que analise a proposta. No entanto, pelo sistema de controle de constitucionalidade das leis que hoje se aplica no ordenamento jurídico brasileiro, nada resta aos que já identificaram o vício, senão esperar que ele seja também identificado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal e ali o projeto receba parecer pela rejeição.

Mesmo com a latência da inconstitucionalidade, ainda não pode o Judiciário reconhecê-la e sepultar a proposta em seu nascedouro, pois que, cuidando-se de projeto de lei, sua apreciação judicial, sob o prisma da constitucionalidade, circunscreve-se ao próprio processo legislativo, não alcançando o conteúdo da pretensa norma.

Sobre o tema, já há sedimentada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, merecendo destaque o recentíssimo acórdão relativo ao julgamento do mandado de segurança nº 32.033, impugnando o projeto de lei que versava sobre a criação de novos partidos políticos, assim ementado:

CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTROLE PREVENTIVO DE CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DE PROJETO DE LEI. INVIABILIDADE. 1. Não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas em curso de formação). O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar - e somente do parlamentar - para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo” (MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23.04.04). Nessas excepcionais situações, em que o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa, a impetração de segurança é admissível, segundo a jurisprudência do STF, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não. 2. Sendo inadmissível o controle preventivo da constitucionalidade material das normas em curso de formação, não cabe atribuir a parlamentar, a quem a Constituição nega habilitação para provocar o controle abstrato repressivo, a prerrogativa, sob todos os aspectos mais abrangente e mais eficiente, de provocar esse mesmo controle antecipadamente, por via de mandado de segurança. 3. A prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento, além de universalizar um sistema de controle preventivo não admitido pela Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justificação plausível, a prerrogativa constitucional que detém de debater e aperfeiçoar os projetos, inclusive para sanar seus eventuais vícios de inconstitucionalidade. Quanto mais evidente e grotesca possa ser a inconstitucionalidade material de projetos de leis, menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo, de apor-lhe veto, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar a seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado. E se, eventualmente, um projeto assim se transformar em lei, sempre haverá a possibilidade de provocar o controle repressivo pelo Judiciário, para negar-lhe validade, retirando-a do ordenamento jurídico. 4. Mandado de segurança indeferido.” Destaques acrescentados. (MS 32033, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 20/06/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-033 DIVULG 17-02-2014 PUBLIC 18-02-2014)

Como se constata, somente caso a mácula de inconstitucionalidade não seja identificada no próprio Poder Legislativo é que se poderá provocar sua apreciação judicial, numa pré-anunciada demanda que poderia ser evitada pela hipotética disponibilidade de mecanismos prévios de controle constitucional. Isso, ainda não se cuidando de lei vigente, se poderia operar de modo mais simples – e até difuso – do que através das ações declaratórias de inconstitucionalidade e seus consequentes – e inevitáveis – recursos perante o Supremo Tribunal Federal.

Em 2011, o então presidente do próprio STF, Ministro Cezar Peluso, tendo identificado o quanto a existência de mecanismos de controle prévio poderia desafogar o Poder Judiciário, chegou a defender formalmente a criação de tal instituto. No entanto, diante de críticas severas à ideia, justamente fundadas na alegação de violação à tripartição dos Poderes Republicanos, acabou abandonando sua defesa.

Efetivamente, em face da harmônica independência que, também por regramento constitucional, há de imperar entre os Poderes Legislativo e o Judiciário, a incumbência deste sobre um controle prévio de constitucionalidade material acaba se tornando praticamente inviabilizada. Porém, diante de propostas tão descompassadas dos ditames constitucionais e amplamente identificáveis, não há como deixar de reconhecer a valia que esta possibilidade representaria.

Talvez não se possa, mesmo, atribuir mais essa tarefa à estrutura de atuação do Poder Judiciário, tal como hoje assentada, mas não se deve abandonar por completo a ideia, e sim evoluir em sua concepção. Os exemplos práticos da gestação normativa estão aí a demonstrar a necessidade de se obstar o ingresso no mundo jurídico de propostas flagrantemente desabrigadas sob o manto constitucional, desafogando os tribunais de questionamentos que há muito já poderiam ter encerrado.


Notas

¹ Texto na íntegra disponível na página eletrônica oficial do Senado -  http://www.senado.gov.br

² Vide o relatório do Global Study on Homicide, da Organização das Nações Unidas, 2011.

Sobre o autor
Fabricio Rebelo

Pesquisador nas áreas Jurídica e de Segurança Pública, Coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (CEPEDES), Professor (cursos livres), Autor de "Articulando em Segurança: contrapontos ao desarmamento civil", Assessor Jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBELO, Fabricio. A falta de um controle prévio de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3889, 23 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26766. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Artigo revisto e ampliado a partir de um ensaio de 2011.

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